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10/09/2023 às 20:31 • Atualizada em 11/09/2023 às 14:33 - há XX semanas | Autor: Divo Araújo

ENTREVISTA - RENATO FRANCISQUINI

‘Uma disputa menos radicalizada é mais benéfica para democracia’

Cientista político afirma que democracia brasileira saiu fortalecida após período de 'estresse institucional'

Renato Francisquini, cientista político e professor da Ufba
Renato Francisquini, cientista político e professor da Ufba -

A democracia brasileira correu risco real de ruptura nos últimos anos? Para o professor de ciência política da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Renato Francisquini, a resposta é sim. “Olhando para o cenário internacional, houve de fato um risco de ruptura, porque nós tivemos a ascensão de lideranças que desafiavam as instituições políticas, não respeitavam as regras”, afirmou ele, em entrevista exclusiva ao A TARDE.

A boa noticia segundo o cientista político é que a democracia no país saiu fortalecida após esse período de estresse institucional. Na avaliação de Francisquini, o Brasil tem agora uma janela de oportunidade para aperfeiçoar suas instituições.

Para isso, diz ele, é preciso estabelecer um controle civil mais efetivo sobre as Forças Armadas, ‘normalizar’ a atuação do Poder Judiciário e fazer com que a direita democrática tenha protagonismo sobre a extrema direita. Entenda essa e outras reflexões sobre a democracia brasileira na entrevista que segue.

O debate sobre a democracia voltou à pauta do país na semana passada com o 7 de setembro. Nesta semana, dia 15, comemoramos o Dia internacional da Democracia. O Brasil flertou com autoritarismo nos últimos anos? Houve riscos reais de ruptura democrática?

Se a gente voltasse uns dez anos atrás e alguém nos dissesse que havia algum risco à democracia brasileira, que existia a possibilidade de nós termos lideranças que desafiassem as instituições democráticas, provavelmente daríamos de ombros. Provavelmente não consideraria uma opinião mais séria. Mas houve um processo que não é só brasileiro, a gente tem que olhar dentro do contexto internacional. Por diversas razões relacionadas a perda de confiança na democracia, nas instituições, nos atores políticos, nos partidos tradicionais, derivados entre outras coisas da perda da expectativa de melhoria de vida, tivemos a ascensão de lideranças em vários lugares do mundo com um perfil autoritário. O caso mais óbvio é o de Donald Trump nos Estados Unidos, mas temos também o da Hungria, com Viktor Orbán, e o do Brasil com o ex-presidente Jair Bolsonaro. Olhando para esse cenário internacional, houve de fato um risco de ruptura, porque nós tivemos a ascensão de lideranças que desafiavam as instituições políticas, não respeitavam as regras, a Constituição, os atores políticos. Nesse sentido, houve de fato esse risco, que foi subestimado, por exemplo, pela ciência política. Durante muito tempo, a ciência política olhou para o cenário político brasileiro e como nós tínhamos transições entre diferentes partidos e eleições em clima de razoável tolerância entre governo e oposição, ela também subestimou essa possibilidade. Se a gente olhar para 2018, por exemplo, ninguém dentro da ciência política admitia sequer a possibilidade de que Bolsonaro vencesse as eleições. A gente olhava para o caso francês, onde a extrema direita conseguia chegar no segundo turno, mas era derrotada. Porque se abria uma colisão entre os partidos, mesmo que tivessem algumas diferenças ideológicas, e derrotaram os partidos mais extremistas. Se você olhar para o caso brasileiro o Bolsonaro concorreu num partido muito pequeno, o PSL, que tinha apenas um deputado. Em 2016, Bolsonaro concorre a eleição para presidência da Câmara e tem apenas quatro votos. Quando a gente olha para esse contexto, ninguém imaginava que ele teria a possibilidade de se eleger. Ele sendo de um partido pequeno, com pouco financiamento de campanha, com pouco tempo no horário eleitoral, ninguém imaginava que ele pudesse ter esse espaço que acabou tendo na opinião pública. Mas a verdade é que a gente ainda não estava preparado para lidar com essas novas formas de comunicação que são muito segmentadas. E que são muitas vezes invisíveis, porque o que chega para mim em termos de comunicação política, de estratégia de convencimento, não é a mesma coisa que vai chegar para uma pessoa religiosa, ou para uma pessoa que tem uma visão política neoliberal. Então, a gente não sabia de fato o que estava acontecendo e eles foram muito bem sucedidos nessa estratégia. Algo que já tinha ocorrido em outros países também.

Com as devidas diferenças, pode-se dizer que foi o ex-presidente Barack Obama que inaugurou essas campanhas mais centradas na internet?

Tem diferenças muito significativas. O Obama investiu muito na tentativa de arrecadar recursos para campanha dele por meio das redes sociais. Ele teve uma campanha de arrecadação muito descentralizada. Esse é um dos problemas que a gente tinha e ainda tem no sistema político brasileiro que é o financiamento de campanha. Melhorou bastante nos últimos anos, mas ainda é um problema que sempre volta. Mas se a gente olhar para a campanha do Obama, o ponto alto é quando ele, através desses recursos que arrecada por meio das doações pulverizadas, compra um horário nobre na televisão norte-americana. O debate ainda era muito centrado nos meios de comunicação tradicionais. Diria que de 2016 em diante, e aí a campanha do Trump é um marco nesse sentido. No caso deles, utilizando muito menos o WhatsApp, como foi o nosso caso, e muito mais o Facebook. O WhatsApp foi o principal meio de comunicação política utilizado pela campanha de Bolsonaro. E hoje o foco é sobretudo nas redes sociais.

Esse foco maior nas redes é uma tendência hoje que não tem mais retorno?

É uma transformação que a gente vai ter que aprender a lidar com ela. Em 2018 houve uma tentativa muito mal sucedida das instituições de controle, sobretudo o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), de lidar com essas campanhas. E, como disse, muito mal sucedida por causa da ampla circulação de notícias falsas e não só pela internet. Me lembro que estava dando uma aula na época em Ilhéus e estava de carro ouvindo a campanha política. E na época o TSE tinha proibido a campanha do Bolsonaro de falar sobre kit gay, mas na propaganda da rádio eles continuavam divulgando isso. E o TSE não deu conta de barrar essas estratégias de utilização de informações falsas. Isso, claro, é um problema estrutural dessas novas formas de comunicação. A gente está correndo atrás de conseguir formas de regular.

Você considera que o TSE e outras instituições amadureceram de 2018 para 2022? Aproveito para perguntar se eles tiveram um papel importante para evitar que essa eventual ruptura acontecesse?

Certamente se a gente olhar para a atuação do TSE nas eleições de 2022 ele foi muito mais bem sucedido nesse esforço de tentar minimizar o espraiamento de notícias falsas. Ele teve uma atuação acho muito mais proativa nesse sentido. Obviamente não é possível evitar de todo, porque a gente está sempre correndo atrás. As informações são divulgadas e as instituições vão atuar para impedir que elas sejam disseminadas. A gente vai ter que lidar com esse problema e não apenas no período eleitoral. Esse é um problema que a gente vai ter que lidar no nosso cotidiano, porque elas continuam circulando. E há formas de fazer isso. A universidade, por exemplo, tem pesquisas em que conseguem coletar os dados que circulam no WhatsApp e no Telegram. Há um grupo da da Ufba, lá do campus de Camaçari, que é voltado para área de tecnologia, que tem pesquisas nesse sentido.Eles conseguem coletar os dados que são difundidos por meio do Telegram por exemplo. Claro que existe sempre um limite entre a privacidade e a possibilidade das instituições agirem para evitar esses crimes. É possível fazer isso, inclusive em relação a antecipação de atos criminosos. Se houver por parte das instituições vontade política de regular isso, acho que é possível fazer. Agora é um debate super espinhoso.

Temos o projeto da Lei das Fake News que vem sofrendo uma pressão enorme das big techs e ainda não andou no Congresso Nacional. Essa legislação será importante neste sentido?

Essa regulação é uma tendência no mundo. Vários outros países de democracias mais longevas, mais avançadas, têm agido no sentido de regular essas novas tecnologias da informação. É preciso, inclusive, que a sociedade também pressione o Congresso, porque obviamente que o processo democrático funciona dessa forma. A gente tem obviamente os lobbies que vão agir ali para proteger seus interesses.

E nesse caso são lobbies muito fortes...

Talvez hoje um dos lobbies poderosos do mundo. Todas as big techs fizeram campanhas. O Google, o Telegram... Agora, essas empresas têm que ser chamadas a prestar contas. Afinal, elas têm um impacto sobre a vida social muito significativo. Houve aquele episódio de uma representante do Twitter numa audiência pública com o ministro (da Justiça) Flávio Dino em que o discurso dela era muito no sentido de dizer, ‘Ah, nós temos os nossos protocolos’. E uma das coisas que o ministro chamou atenção muito importante foi: “O protocolo de vocês tem que está dentro do marco constitucional que é a lei do país”. Não importa se você não considera, por exemplo, que o discurso de ódio seja algo necessário de ser excluído. Se o texto constitucional criminaliza esse tipo de discurso, o protocolo da empresa tem que ser adequado ao texto constitucional. Na Europa, nos Estados Unidos, está havendo um esforço para se regular a difusão desse discurso e regular também a forma como essas plataformas lidam com as informações. O principal risco é deixar na mão dessas empresas a prerrogativa de armazenar e excluir os conteúdos. Que elas sejam, digamos, responsáveis por definir aquilo que pode circular e aquilo que não pode. É preciso ter critérios que sejam tanto quanto possível claros nesse sentido. E, como disse, que essas plataformas sejam acima de tudo responsabilizadas Elas têm uma responsabilidade pública.

Na sua tese de doutorado, o senhor relaciona a democracia e liberdade de expressão ao ‘valor equitativo’ das liberdades comunicativas. Qual é o papel da opinião pública no regime democrático?

Em qualquer definição de democracia como governo do povo a opinião da sociedade tem um valor muito significativo. O ponto de partida para lidar com essa relação é o reconhecimento do que a gente pode chamar de pluralismo. É uma premissa de que a operação da mente humana, em condições de liberdade, dá origem a concepções diferentes sobre o que é uma vida digna, sobre o que é o bem comum. Haverá pessoas na sociedade que entendem que uma vida digna é aquela que se vive de acordo com a verdade revelada no livro sagrado. Outras vão entender que uma vida digna é aquela que se vive de acordo com os seus próprios preceitos. Enfim, vão existir diferentes concepções sobre o que é uma vida digna. Nesse sentido, a gente precisa ter um enquadramento institucional que respeite essas diferentes opiniões, desde que elas não queiram impor sobre a sociedade nessa verdade do que consideram ser o bem comum. Um grande exemplo nesse sentido foi o caso das pesquisas com células-tronco. O Supremo Tribunal Federal teve que lidar com questões muito espinhosas ali. Uma parte da sociedade entendia que não poderia haver pesquisa porque a vida começa na concepção. Isso é parte de um argumento que está imbuído de critérios religiosos. Tudo bem uma pessoa entender que não pode fazer pesquisas com células-tronco porque acredita que a vida começa na concepção. O que ela não pode é demandar que o Estado seja utilizado para impedir pesquisa com células-tronco porque essa pessoa e as pessoas que compartilham dessa visão religiosa acreditam que a vida começa na concepção. Isso que eu chamo de tolerância. O ponto de partida é esse reconhecimento que existem concepções diferentes sobre o que é uma vida digna de ser vivida, sobre o que é o bem comum, o interesse público. Na sociedade, como existe essa divisão, isso gera inevitavelmente conflitos políticos pelos critérios que vão ser utilizados para as decisões coletivas. O sistema político é desenhado de uma maneira que todas essas concepções diferentes sobre o que é o interesse público possam ser consideradas nas decisões coletivas. Por isso que nós temos o multipartidarismo, nós temos partidos com visões políticas e ideológicas diferentes. Por isso que nós temos, dentro do nosso sistema político, a representação para esses diferentes grupos. Então, a opinião pública é fundamental nesse sentido. Mas a opinião pública não é a única.

A internet contribuiu para fortalecer o pluralismo ou ocorreu justamente ao contrário?

Uma das ideias que circulava com o surgimento e ascensão da internet como sendo uma das principais fontes de informação, de difusão de discursos era que nós conseguiríamos escapar um pouco de um certo monopólio dos grandes meios de comunicação em relação à opinião pública. A ideia era que, com a internet, a gente não precisa mais passar pelo filtro dos meios de comunicação. Que, de alguma maneira, cada um de nós pode através do nosso computador, difundir nossas próprias informações. Mas a gente sabe que não é bem assim. O alcance desses discursos vai depender de diversos fatores como, por exemplo, os algoritmos. Na pesquisa, eu tinha duas questões que considerava importante para realizar isso que chamo de um valor equitativo das liberdades. De um lado era a regulação dos meios de comunicação para que houvesse mais diversidade das informações que circulam por meio desse espaço público dos meios de comunicação. E de outro lado um esforço justamente para poder evitar a difusão e a propagação de discursos de ódio, que rebaixam uma parcela da sociedade que já é de algum modo marginalizada por questões históricas. Essas duas facetas eram parte daquilo que eu considerava fundamental. Mas quando terminei a minha tese a gente estava nesse momento de ascensão mais forte da internet, das redes sociais, principalmente como sendo a principal fonte de informação da sociedade. Quando a gente olha para a importância da opinião pública é justamente nesse sentido de exercer influência sobre as decisões coletivas. E aí claro essa influência vai ser processada pelas instituições de uma maneira que as decisões coletivas considerem essa diversidade de opiniões e de concepções diferentes sobre o que é o interesse público. Uma democracia precisa necessariamente considerar as opiniões que circulam na sociedade. Quando a gente tem o que a literatura costuma chamar de crise da representação, é quando as instituições políticas passam a agir de uma maneira a considerar apenas os interesses daqueles que estão no Congresso Nacional e não os interesses da sociedade.

Aproveitando o gancho, hoje temos um Congresso cada vez mais empoderado. Em muitas situações, ele parece não se importar com o que a sociedade pensa. A opinião pública tem um peso menor nas decisões do Legislativo?

Na verdade, a expectativa era o oposto. O Congresso Nacional, sobretudo a Câmara dos Deputados, deveria ser mais sensível a essas opiniões, a essas demandas que partem da sociedade porque os deputados estão mais próximos da sociedade. Há um tempo era muito comum afirmar que os deputados não trabalhavam, que só ficavam em Brasília três, quatro dias por semana. Na verdade, boa parte do trabalho deles não é em Brasília, mas nas cidades, nas comunidades onde tiveram mais votos. Então, o trabalho deles é justamente ser sensível a essas demandas que partem da sociedade. Até pouco tempo, a gente tinha um problema muito grave no Brasil, que era a concentração muito grande dos financiamentos de campanha. A gente tinha cinco, seis empresas que doaram bilhões e bilhões de reais para as campanhas. Como o teto para o financiamento privado no Brasil era proporcional, se uma empresa tem faturamento de R$ 100 milhões, ela pode dar uma proporção desses R$ 100 milhões. Isso cria um criado um desequilíbrio muito grande. As empresas - sobretudo as empreiteiras, os bancos, a JBS - tinham verdadeiras bancadas no Congresso Nacional. Boa parte do poder que Eduardo Cunha, por exemplo, teve quando foi presidente da Câmara, era derivado do fato de que ele negociava esse financiamento de campanha para uma parte significativa do Congresso Nacional. Com a proibição do financiamento empresarial, a gente tem uma mudança nesse sentido, porque os nossos representantes deixam de depender fundamentalmente dessas grandes empresas no momento de viabilizarem sua campanha. Porque a chance de êxito eleitoral está muito associada à quantidade de recursos que se investe nas campanhas. Só que agora estamos com um problema que é o oposto. Como a gente focou muito no financiamento público, hoje os deputados não dependem mais da sociedade. Quem tem mais poder derivado do sistema de financiamento que a gente tem hoje são os líderes partidários. Porque a gente tem uma quantidade de recursos muito grande e derivada tanto do fundo partidário quanto do fundo eleitoral. Boa parte desses recursos faz com que os deputados, embora dependam do voto dos eleitores, dependam também para conquistar esses votos dos recursos que são destinados pelo Estado e distribuídos pelos partidos. E a gente teve outra mudança muito significativa que diz respeito à afetação do orçamento público. Até a reforma que foi feita pelo Eduardo Cunha, em 2015, toda vez que um deputado precisava, por exemplo, levar recurso para sua base, para construir uma escola, uma praça, levar atendimento médico, ele dependia que o Poder Executivo liberasse as emendas ao orçamento. Hoje, depois da reforma, uma parte significativa dessas emendas ficou com o Congresso. E a gente ainda teve uma outra prática instituída durante o governo Bolsonaro que abriu mão de uma parte do recurso para as lideranças. Essas emendas já existiam antes, mas o Executivo controlava. O governo Bolsonaro abriu mão do controle sobre o orçamento para poder lidar com problemas relacionados com a manutenção do mandato. Aí, as lideranças da Câmara e do Senado utilizaram essa brecha para poder ter um controle muito significativo sobre os partidos, deputados e senadores. O Rodrigo Pacheco, no Senado, mas principalmente o Arthur Lira na Câmara conseguiram ter um controle muito significativo sobre os parlamentares. É só você olhar para o que foi a eleição na Câmara este ano. Lira teve mais de 400 votos, é um resultado muito expressivo.

Esta semana mesmo, estão entrando no governo dois novos ministros do Centrão, sob uma chuva de críticas, inclusive da ala esquerda do PT. Isso tudo é reflexo desse poder do qual você se refere?

A gente tem que tomar cuidado para que o pragmatismo não nos cegue absolutamente para aquilo que nós consideramos como interesse público. Olhando pelo lado do pragmatismo, uma figura como a Ana Moser, por mais admirável que ela seja, politicamente é muito você ter uma figura como ela nesse contexto de uma força muito grande do Congresso e principalmente do Arthur Lira. Por isso ocorreu a substituição de Ana Moura pelo André Fufuca. O Republicanos tem mais de 40 deputados, o PP tem mais de 40 deputados. Então, eles têm uma representação muito significativa na Câmara. Eles conseguiram uma votação muito expressiva para ter esse número de deputados. Por mais que a gente não saiba identificar ideologicamente esses partidos, por isso que se chama de Centrão. A gente sabe identificar o PL, sabe que o PL é um partido de direita a gente sabe que o PT, o PSOL, o PCdoB são partidos de esquerda. Mas esses partidos, o PP, o Republicanos têm um viés à direita, mas eventualmente dão apoio a propostas que seriam identificadas com a esquerda.

Voltando à questão do autoritarismo. O que difere o autoritarismo moderno daqueles do passado, marcados por golpe de estado? Os autores do livro “Como as democracias morrem”, argumentam que hoje ele aparece através das próprias vias democráticas. Concorda com isso?

Esse é um fenômeno que está relacionado a essa ascensão de lideranças, sobretudo da extrema direita, mas claro de algumas também de esquerda. Uma parte da literatura vai chamar de lideranças populistas, embora esse termo seja um termo disputado. Se, no passado, quando a gente teve a ascensão aqui na nossa região desse autoritarismo que era levado adiante por meio de golpes do estado, da deposição de lideranças por meio do uso de armas, mais recentemente a gente tem visto, não só na América Latina, mas em outros países é uma corrosão interna das normas de funcionamento das democracias por meio de lideranças que se elegem pelo voto popular. O livro de Daniel Ziblatt e Steven Levitsky teve como motivação inicial a eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos. Eles fazem uma análise histórica de vários outros contextos em que lideranças eleitas depois acabaram fechando o regime, como é o caso do Peru, com Fujimori. O que eles tentam mostrar no livro é que a democracia não é simplesmente o funcionamento das instituições da forma correta. Ou talvez para dizer de outra maneira, a democracia não é apenas um conjunto de regras escritas. Que eles mostram neste livro é que há normas democráticas que não estão escritas no texto constitucional. E aí tem os Estados Unidos que é o caso exemplar que vão utilizar. Eles vão mostrar o seguinte: havia tanto por parte das lideranças do Partido Republicano quanto do Partido Democrata, um controle sobre a escolha daqueles que concorreram às eleições. Já apareceram em outros momentos da história dos Estados Unidos lideranças autoritárias, extremistas, e que foram impedidas de concorrer. No caso do Donald Trump, eles não conseguiram evitar isso por diversas razões. Claro, isso tem a ver com o clima de opinião, tem a ver com uma certa radicalização do Partido Republicano. Tem a ver com um termo que, embora esteja muito em voga, talvez não seja o melhor, mas com essa polarização. A intensificação da polarização política levou a que figuras como Donald Trump nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro, no Brasil, conseguissem se viabilizar eleitoralmente. A partir do momento em que eles conseguem se viabilizar eleitoralmente vão pouco a pouco corroendo não apenas as normas não escritas, mas tentando subverter as próprias normas escritas. Promovendo mudanças no sistema eleitoral, desacreditando ou tentando retirar poder das instâncias de controle, como o Poder Judiciário. E aí é até importante considerar que nós tivemos, claro, em parte, competência das forças de oposição e das próprias instituições brasileiras que conseguiram evitar que essa liderança que trabalhou o tempo inteiro, desde o primeiro momento do seu mandato, para destruir as instituições democráticas, fosse reconduzido ao poder. Os Estados Unidos conseguiram isso evitando que Donald Trump se reelegesse e o Brasil conseguiu fazer isso. Se a gente olhar para o caso da Hungria, por exemplo, eles não foram capazes. Então o Vicktor Orbán conseguiu ser reconduzido ao poder e aumentou o número de ministros nos tribunais de controle de constitucionalidade. Atuou para impedir a liberdade de cátedra nas universidades. Quando a liderança autoritária consegue passar por esse crivo da reeleição, daí é muito mais difícil para que as instituições consigam conter esse ímpeto autoritário.

Recentemente, ao falar sobre o governo da Venezuela, o presidente Lula afirmou que o conceito de democracia é relativo. O que difere o autoritarismo de esquerda e da direita?

Não há nenhuma razão que leve a gente considerar que a Venezuela seja uma democracia. Por mais que a linha que distingue a democracia do autoritarismo seja difícil de definir, a Venezuela já ultrapassou essa linha em muitos aspectos. Mesmo que a gente tenha um critério minimalista para definir uma democracia. Tem um autor polonês chamado Adam Przeworski, muito importante na ciência política contemporânea, estabelece como critério central para definir se é um regime democrático é se tem eleições e se as eleições são respeitadas. Só por esse critério mínimo, a Venezuela já não pode ser considerada um regime democrático. Afinal de contas há frequentemente prisões de lideranças da oposição. Houve o aumento do número de ministros do tribunal, que é o roteiro muito próximo ao que está sendo seguido pelo Viktor Orbán na Hungria. E a Hungria também me parece que não pode ser, sob qualquer critério, considerado um regime democrático. Claro, ninguém podia prever o que o Bolsonaro ia fazer. Mas se a gente olhar para a história política dele, os discursos dele... Uma das propostas que estava colocada era aumentar o número de ministros no STF. Inclusive isso apareceu nas eleições de 2022. Uma figura como Ciro Nogueira, que é uma influente no mundo da política, que já esteve em muitos governos diferentes, que tem uma trajetória política longeva, ele mesmo admitiu que isso estava colocado. Valdemar Costa Neto também foi outro que admitiu que isso era uma das possibilidades dos planos do governo Bolsonaro. Se a gente for pegar por elementos básicos, o que difere o autoritarismo de direita e de esquerda é a ideologia, mas da forma como eles atuam não há muita muita diferença. Agora, o Lula é uma liderança popular que reconhecidamente tem uma história política, uma história de vida que é sobre muitos aspectos admirável. Se nós não tivéssemos o Lula, a gente provavelmente não conseguiria vencer o Bolsonaro nas eleições. Qualquer outro candidato me parece que perderia. É só a gente olhar o que aconteceu em 2018, quando uma pessoa que tem uma preparação, como é o caso do Fernando Haddad, que foi um bom prefeito de São Paulo, mas na hora de lidar com a disputa popular ele está muito distante de uma figura como o Lula. Talvez um problema dessas figuras populares é querer opinar. E a sua opinião acaba reverberando de diversas formas por essa posição que eles ocupam. Mas numa coisa acho que o Lula tem razão. É importante que o povo venezuelano seja ouvido e que eles possam, através dos seus próprios mecanismos, recuperar a democracia. Outra diferente é você dizer que o povo venezuelano tem legitimamente optado por esse caminho. São coisas diferentes. Há inúmeros eventos que acontecem na Venezuela que impedem a livre expressão da opinião pública, a livre expressão do voto popular.

Para concluir, professor, você considera que a democracia no Brasil saiu fortalecida de todo esse processo? Ou ainda há riscos de uma ruptura democrática no país?

Nosso sistema político eleitoral, nosso arranjo funcional deu mostras de fortalecimento nesse último período, porque ele passou por um estresse muito grande. Um esforço deliberado por parte de figuras que estavam no poder para desconstruir o nosso regime político. Mas os riscos a gente sempre corre. Se a gente olhar para nossa organização política, uma coisa que é fundamental é que haja um controle civil mais significativo sobre as Forças Armadas. Nós temos uma oportunidade inclusive histórica para estabelecer esse tipo de controle civil mais efetivo sobre as Forças Armadas. E um dos elementos que pode ser utilizado nesse sentido é a anulação do artigo 142 da Constituição, que coloca as Forças Armadas como poder moderador e dá ensejo para interpretações indevidas. É preciso também um esforço para gente normalizar a atuação do Poder Judiciário. Houve um momento em que o ataque às instituições democráticas, ao sistema eleitoral, de algum modo legitimou uma atuação do Poder Judiciário no sentido de conter essas ameaças. O Supremo Tribunal Federal assumiu um protagonismo muito grande enquanto instituição de controle para evitar que o regime político democrático fosse subvertido. Mas a atuação do Poder Judiciário também precisa, com a normalização das coisas, retornar digamos a um patamar de atuação mais leve, menos proativo. Por exemplo, em relação aos processos que estão sendo conduzidos contra o ex-presidente Bolsonaro e as figuras que tiveram próximas a ele durante seu governo. Eu menciono só um exemplo que é o caso da da atuação do STF para poder lidar com a difusão de notícias falsas. Esse esforço para tentar juntar no mesmo processo, fake news, golpe de estado, o caso das joias mais recentemente. Precisa ter um esforço da das instituições do Poder Judiciário para normalizar a sua atuação. Talvez daqui a um ano a gente não tenha mais essa janela de oportunidade e, ao mesmo tempo, não tenha mais a necessidade do Poder Judiciário atuar dessa maneira para evitar as ameaças ao regime democrático. A gente tem outro desafio importante para o futuro que é fazer com que a direita democrática tenha protagonismo sobre a extrema direita. Da forma como estamos hoje a direita democrática perdeu muito espaço no nosso sistema político sendo substituído por radicais de extrema direita. É preciso que elas assumam novamente o protagonismo nessa disputa eleitoral. Uma disputa menos radicalizada é mais benéfica para democracia, para estabilidade do regime político democrático. Esses são os desafios principais que a gente enfrenta neste momento.

Raio-X

Renato Francisquini possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2004), é mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007-2009) e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (2010-2014). Atualmente é professor no Departamento de Ciência Política da Ufba.Atua na área de Teoria Política, principalmente nos seguintes temas: teoria democrática contemporânea, democracia deliberativa, teorias contemporâneas da justiça, liberdade de expressão, entre outras.

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