FORA DA LEI
Sem licitação, transporte metropolitano opera de forma precária
Falta de regulamentação dificulta fiscalização, penaliza usuários e precariza relações de trabalho
Por Alan Rodrigues
Ônibus velhos, horários limitados, roteiros reduzidos, atrasos constantes, superlotação e ausência de fiscalização. A realidade do transporte metropolitano, que liga Salvador às cidades vizinhas, é o retrato do descaso.
A ausência de regulação é terreno fértil para a proliferação de empresas que operam com base em liminares ou autorizações precárias e, o pior, abre espaço para a expansão do transporte clandestino, ao qual o usuário acaba se submetendo por absoluta falta de opção.
O transporte metropolitano de Salvador opera sem licitação desde 2017. Desde então, o Ministério Público (MP) vem cobrando da agência estadual de regulação dos transportes (Agerba) a normalização da situação.
“A gente acompanha o transporte metropolitano há algum tempo. A pandemia agravou a situação, mas o sistema está praticamente abandonado, não é licitado, os contratos estão vencidos, não tem como renovar a frota, não tem como cobrar”, diz a promotora Rita Tourinho.
Na próxima quinta-feira, dia 11, Agerba e MP devem se reunir para discutir a formatação do edital de licitação. Mas, o cenário atual oferece uma série de desestímulos ao investimento no setor, o que permite especular que a solução ainda está distante.
O principal obstáculo é o transporte clandestino, conhecido em muitas cidades da Região Metropolitana de Salvador (RMS) como “ligeirinhos”. São veículos de passeio, sem qualquer identificação ou vistoria, conduzidos pelos proprietários, sem cadastro, tarifa definida e muito menos os benefícios previstos em lei, como gratuidade para idosos ou meia passagem para estudantes. Esses e outros fatores afastam as empresas convencionais.
“É uma disputa dura com quem tem obrigações trabalhistas. É preciso entender, uma coisa é exigir contrato, outra coisa é fazer licitação e dar deserto. Quem vai comprar ônibus, pagar folha, impostos?”, questiona Helder Almeida, diretor superintendente de trânsito e transporte de Camaçari.
O transporte clandestino se expandiu durante a pandemia, quando a circulação de ônibus foi suspensa. O que antes se colocava como alternativa para trechos mais curtos ou não atendidos pelas linhas regulares, ganhou escala e hoje desafia os órgãos reguladores de transporte do estado e dos municípios.
Situação que se agravou não apenas devido à pandemia mas em função do desemprego em massa resultante do fechamento da fábrica da Ford em Camaçari. “Quando a Ford fechou deixou 12 mil desempregados. Aumentou substancialmente os clandestinos”, diz Helder Almeida.
Celso Batista, gerente regional da Univale, empresa responsável pelo transporte entre Salvador e Dias d´Ávila, vai além. “Caiu o número de passageiros (em função da pandemia), as demissões da Ford aumentaram o número de motoristas rodando por aplicativos e diminuiu o movimento de prestadores de serviço”, diz ele, referindo-se a trabalhadores antes empregados pelos funcionários da montadora.
Tanto em Dias d´Ávila quanto em Camaçari, a expansão do transporte clandestino levou algumas lideranças políticas a sugerir a liberação dessa modalidade de transporte. Possibilidade rechaçada por Helder Almeida.
“Regularizar clandestinos é conversa de vereador. Transporte regular é por ônibus, a forma mais econômica e segura de transporte. Tem que manter as regras com frota compatível com a população”, diz o superintendente, que pretende “investir pesado” na fiscalização dos clandestinos.
Contratos precários
O município de Camaçari acaba de realizar um chamamento público e identificar quatro empresas que irão operar três lotes de roteiros urbanos, com contratos temporários de seis meses, conforme acordo firmado com o MP.
A ideia é produzir números relativos à gratuidade e meia passagem, para embasar o cálculo das tarifas e eventuais subsídios. O próximo passo é realizar um chamamento para empresas interessadas no transporte complementar, hoje explorado prioritariamente por clandestinos ou cooperativas amparadas em liminares concedidas pela justiça.
Em Lauro de Freitas, a crise no transporte metropolitano por pouco não provocou um apagão no serviço. O Superintendente de trânsito e transporte do município, Smith Neto, lembra que quando os ônibus da BTM deixaram de rodar, foi preciso montar um esquema emergencial para não deixar a cidade desassistida.
“Há um ano, após duas paralisações da BTM, tive que redistribuir as linhas”, lembra Neto, que sugeriu um contrato emergencial à Agerba, hoje operado pelas empresas Avanço e Atlântico. Ele lembra que Lauro de Freitas nunca teve sistema próprio de transporte público, uma vez que as linhas metropolitanas atendiam a demanda.
Smith Neto, que também é vice-presidente do Fórum Baiano de Mobilidade, acredita que clandestinos, cooperativas e transporte por aplicativo afastam as empresas da concorrência pelo transporte público e defende maior investimento governamental no setor. “O transporte público está morto. Se cada município for cobrar o que deve, não roda mais um ônibus”, acredita Neto, que acrescenta: “Sem o poder público não há perspectiva de melhora”.
Celso Batista reforça a dificuldade de se atender as expectativas do poder público. “Querem ônibus novo, com ar condicionado, wifi, mas não temos nenhuma contrapartida, linhas de crédito ou tarifas mais realistas”, reclama.
Trabalhadores penalizados
O encerramento das operações de empresas como a BTM e VSA suscitou a entrada de outras empresas para manter as linhas em funcionamento, mas sem o devido processo licitatório. Em Camaçari, a Avanço transportes assumiu as linhas da VSA, que havia absorvido as mesmas da BTM.
Ambas decretaram falência, deixando 513 trabalhadores desempregados. O sindmetro, um dos sindicatos que representam os rodoviários do transporte metropolitano, cobra da Secretaria de Infraestrutura do Estado (Seinfra), o pagamento de R$ 36 milhões repassados pelo governo federal para compensar as empresas de transporte que tiveram perdas durante a pandemia.
Na próxima quarta-feira, 10, uma reunião está marcada para discutir a indenização dos trabalhadores, segundo o presidente do sindicato, Mário Cléber.
Mas, a pandemia também serviu como justificativa para precarização das relações de trabalho. Em Dias d´Ávila, segundo um rodoviário que falou sob anonimato, trabalhadores tiveram seus contratos suspensos e salários reduzidos, dentro do programa de manutenção dos empregos bancado pelo Governo Federal, que complementou parte dos vencimentos com verbas do seguro-desemprego.
A Univale, porém, utilizou-se de outra medida adotada na pandemia para enxugar o quadro e a folha salarial. Algumas linhas ficaram sem cobrador e os rodoviários foram coagidos a assinar um acordo aceitando a rescisão de contrato e a recontratação com salários reduzidos. A empresa nega.
“Quando parou na pandemia, demitimos em massa. Com a liberação recontratamos todo mundo com a mesma base salarial”, diz Celso Batista, que admite a redução do número de cobradores em função da demanda.
De acordo com a portaria 16.655/2020, assinada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, as empresas ficaram autorizadas a recontratar funcionários demitidos em bases diferentes das anteriores (incluindo redução salarial), desde que os termos do contrato fossem aprovados através de acordo coletivo.
Segundo o rodoviário ouvido por A TARDE, nenhuma assembleia foi realizada e quem nãpo aceitasse o acordo não poderia ser recontratado. Procurado pela reportagem, Mário Alberto, conhecido como “Mário dos Rodoviários”, presidente do Sindrod, outra entidade que representa trabalhadores do transporte metropolitano de Simôes Filho e Dias d´Ávila, prometeu enviar nota de esclarecimento, mas, após quatro dias, não houve mais retorno.
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