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A TARDE DESTAQUE

Dia dos Povos Indígenas: O que realmente deve ser comemorado?

Portal A TARDE conversou com alguns representantes indígenas para desconstruir ideias colonizadoras

Por Isabela Cardoso

19/04/2023 - 6:00 h | Atualizada em 08/05/2023 - 12:52
Na foto: Ynaykan, Idyarrury, Yaponã
e Idyarony, da esquerda para a direita
Na foto: Ynaykan, Idyarrury, Yaponã e Idyarony, da esquerda para a direita -

O mês de abril é repleto de ações pedagógicas de diferentes etnias indígenas para reafirmar a cultura das comunidades no período em que se celebra o Dia dos Povos Indígenas, no dia 19. Anteriormente, a data, instituída em 1943 pelo então presidente Getúlio Vargas, era conhecida como Dia do Índio.

>>> Assista: A TARDE Destaque debate Dia dos Povos Indígenas

Para além das celebrações nas escolas e instituições, este é um momento em que os povos originários trazem outras pautas políticas para destacarem suas lutas e desconstruírem a imagem primitiva criada nos livros de história. O Portal A TARDE conversou com alguns representantes indígenas das etnias Pataxó Hã-Hã-Hãe, Xukuru-Kariri e Fulni-ô, para entender o real significado do Dia dos Povos Indígenas e as problemáticas atuais das aldeias.

Patrícia Pataxó foi a primeira indígena a ingressar no curso de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e atualmente é superintendente de Políticas para os Povos Indígenas na Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Bahia (Sepromi). A representante destaca que a data que era conhecida com o termo “índio” trazia um sentido pejorativo.

“Esse dia do índio é altamente debatido e questionado, como se o índio fosse um termo pejorativo, é como se todos fossem iguais, mas temos aqui uma riqueza cultural de vários povos. Essa era a inquietação dos povos indígenas do Brasil. Foi feita essa alteração para o Dia dos Povos Indígenas quando tivemos a primeira mulher indígena eleita deputada federal. O Projeto de Lei foi da deputada Joenia Wapichana, do estado de Roraima, que hoje, inclusive, é presidenta da Funai”, explica a superintendente.

De acordo com o Senado Federal, a mudança do nome da celebração tem o objetivo de explicitar a diversidade das culturas dos povos originários. O termo "indígena", que significa "originário", ou "nativo de um local específico", é uma forma mais precisa para se referir aos diversos povos que vivem no território brasileiro desde antes da colonização, explicou o senador Fabiano Contarato (PT-ES), relator do Projeto de Lei.

Patrícia Pataxó foi a primeira indígena a ingressar no curso de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Patrícia Pataxó foi a primeira indígena a ingressar no curso de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) | Foto: Denisse Salazar | Ag. A TARDE

Patrícia Pataxó também ressalta que a mudança de nome traz a ideia de coletividade e diversidade dos povos. “Nós não temos um povo indígena, são diversas etnias, são culturas diferentes, são línguas diferentes, são modos de vidas diferentes. Então, por isso esta mudança. Nada mais do que justo, do que ficar com a ideia colonizadora”.

O cacique do Coletivo Cultural Wetçamy, Idyarrury Xukuru-Kariri, trabalha, durante todo o mês de abril, com imersões e vivências pedagógicas ao lado do seu grupo, que é formado por 12 indígenas das etnias Xukuru-Kariri, Fulni-ô, Kariri-Xocó e Pankararu. Para o líder, o trabalho que realiza é um movimento de desconstrução nas escolas e contação da verdadeira história dos povos indígenas.

“Não é uma data para ser comemorada, mas sim uma data para ser lembrada, de quem somos nós e porque estamos aqui. Inclusive, é uma data que a gente vai para as escolas fazer essa desconstrução da história que é contada. Somos pessoas que mereciam o crédito por resistir a esse tempo de massacre e descolonização [...] O dia 19 apenas nos fortalece para que a gente mantenha realmente a nossa cultura de pé e firme”, diz o cacique.

O Doutor Honoris Causa e líder da reserva indígena Tha-Fene, Wakay Fulni-ô, também realiza trabalhos pedagógicos em escolas e instituições, levando ensinamento e desconstrução sobre a cultura dos povos originários. Ele questiona o que deve ser realmente comemorado no Dia dos Povos Indígenas.

"Nós estamos aqui com vários instrumentos, o que significa esses instrumentos? O que é que nós temos para comemorar? Cada um com seu movimento ritualístico, cada instrumento desse. O colar que usamos do dente do animal não é só um enfeite, existe um ritual para isso. O arco e flecha, que normalmente, na história, mostra como arma e nunca foi, colocar hoje também como artesanato e venda. Estamos comemorando ou estamos fazendo comércio de alguma forma? [...] Eu não vejo comemoração no dia do índio”, ressalta Wakay.

Wakay Fulni-ô é Doutor Honoris Causa e líder da reserva indígena Tha-Fene
Wakay Fulni-ô é Doutor Honoris Causa e líder da reserva indígena Tha-Fene | Foto: Fábio Santos | Ag. A TARDE

Além disso, também existem termos que ainda precisam ser debatidos por uso desrespeitoso aos povos indígenas, como a própria palavra “índio”, citada por Patrícia Pataxó. Idyarony Xukuru-Kariri, membro e produtor do Coletivo Cultural Wetçamy, também considera o termo pejorativo por, na visão dele, fazer parte de um apagamento cultural dos povos originários e remeter à procura dos colonizadores pela Índia no descobrimento do Brasil.

“A gente sabe que o termo índio está equivocado, que é um termo inadequado, porque foi no entendimento de quem aqui chegou, por engano, há 523 anos. Por estarem procurando a Índia, colocaram o nome de índio. O termo é incorreto até para definir a nacionalidade que eles pensaram que estavam chegando, que seriam indianos”, conta o produtor.

Idyarony explica ainda, que o termo tribo para fazer referência às etnias indígenas também é inadequado por estar associado à sociedades primitivas. O uso desta palavra exclui a individualidade de cada aldeia existente dentro de toda essa cultura.

“Quando se fala em tribo, a gente pensa lá no homem da caverna, nos caras do período pré-histórico ou então, em um contexto atual, nas tribos urbanas. Tribos do pessoal do hip-hop, do rock, do funk e várias outras junções de pessoas que comungam do mesmo entendimento, da mesma visão de vida. Porém, os povos indígenas têm uma cultura própria”, explica.

Veja reportagem em vídeo do A TARDE Play

A superintendente Patrícia Pataxó destaca que a população, em geral, necessita de uma formação para entender o uso desses termos nos dias atuais e abandonar essa linguagem.

“A nossa sociedade como um todo, e a sociedade baiana, em especial, precisa de formação, precisa estar nos convidando para nos ouvir, para estar nos colocando com as escolas, para que a gente possa estar contando a nossa história e não se basear em livro de colonizadores. A sociedade precisa saber que nós, indígenas, estamos aqui e que somos protagonistas dessa história, que eles precisam nos ouvir e que eles precisam de fato dessa formação”, diz a representante.

Wakay reforça a ideia do respeito através da educação, sem a necessidade de imposição de uma pessoa sobre a outra. “De alguma forma, a humanidade está precisando, a gente sabe que está dispersa. Isso não significa que o conhecimento que eu tenho, tem que impor em cima dos meus irmãos diferentes. Eu tenho que ensinar de acordo com o que eles também queiram aprender, na origem ancestral que nós temos. Nosso papel é educar, precisa-se bancar o respeito diante da cultura de cada povo. Mesmo sendo indígena ou não-indígena, não importa, eu só estou aqui porque encontrei uma pessoa que me educou”, destaca.

Integração com a “civilização”

A aproximação dos indígenas com a sociedade urbana se deu de forma violenta e desigual, resultando em processos de exploração, dominação e marginalização. No entanto, também houve um intercâmbio de conhecimentos que gerou oportunidades econômicas para as comunidades indígenas, por meio do acesso a recursos e tecnologias modernas, assim como o fortalecimento do turismo cultural.

Indígenas Xukuru-Kariri, membros do Coletivo Cultural Wetçamy
Indígenas Xukuru-Kariri, membros do Coletivo Cultural Wetçamy | Foto: Raphael Muller | Ag. A TARDE

“Existe esse choque quando chegam em uma aldeia. Atualmente, ela é toda feita de casas de alvenaria, todas com televisão, todas com Wi-Fi, a grande maioria pelo menos. A pessoa chega no interesse de entrar na selva amazônica [...] Essa integração nossa com a civilização, com as tecnologias, com melhores moradias, traz o fato de que indígena é ser humano, indígena adoece, indígena passa por problemas de saúde. Se há uma melhoria no modo de vida, a gente também merece”, explica Idyarony.

“A gente passou a abandonar, digamos assim, a moradia em ocas, porque a região onde a gente mora, por exemplo, é uma região extremamente fria e a taxa de mortalidade de crianças recém-nascidas, ou até 7 anos, era muito alta. Foi necessário que houvesse essa construção de alvenaria para que protegesse”, completa.

O membro do Wetçamy destaca também que houveram mudanças na cultura indígena para sobrevivência dos povos, no sentido financeiro e na preservação da natureza.

“Nossos territórios estão reduzidos, por isso a nossa saída das aldeias até às cidades, para estar trazendo a nossa cultura, estar vendendo nosso artesanato, porque se tornou uma fonte de renda forte dentro da nossa comunidade. Caçar e pescar no mato para nós, pelos Xukuru-Kariri, e grande parte do povo indígena no Brasil, se tornou algo cultural, mas não é algo de sobrevivência, é algo para manutenção de cultura. Se a gente caça o pouco que resta na nossa mata, a gente acaba. A gente não quer uma floresta nova, não quer uma floresta deserta [...] Indígenas sem natureza, sem terra, não existe”, completa.

Já Wakay ressalta que as comunidades indígenas necessitam se organizar internamente para a preservação da identidade de cada aldeia. “Cada povo precisa ver no que realmente está a fortaleza ou, de repente, podemos sofrer uma dizimação hoje mais perigosa [...] Todo mundo quer internet, todo mundo quer falar. Isso tudo é risco, porque vai distanciar da realidade do que é realmente: dormir debaixo de uma árvore, debaixo de uma oca, sentir o cheiro da fumaça, sentir a brisa. A gente vai perdendo, mas acha que está conquistando".

Menino Xycê Fulni-ô no Instituto Owca Ayam
Menino Xycê Fulni-ô no Instituto Owca Ayam | Foto: Fábio Santos | Ag. A TARDE

Medicinas indígenas

A consagração de medicinas indígenas, também chamadas de medicinas da floresta, tem se popularizado nos meios urbanos por seus poderes de cura e conexão com a ancestralidade. Algumas delas são conhecidas como Ayahuasca, Rapé, Jurema e Sananga, sendo reverenciadas em rituais e cerimônias.

“Rapé é uma medicina extremamente importante para os povos indígenas. É uma medicina sagrada e que precisa ser consagrada em ritual. Sem isso, ela não passa de apropriação. A gente precisa que a pessoa que consagre qualquer outra medicina tenha o mínimo de base de conhecimento, porque ela vai estar prejudicando os povos originários [...] A nossa missão é de cuidar e o nosso cuidado vem também através da cura”, destaca Idyarony.

Para o Xukuru-Kariri, é necessário o ensinamento sobre cuidado e responsabilidade com essas medicinas para não se tornarem banalizadas. “Não existe você estar em uma roda, em uma mesa de bar com o kuripe [autoaplicador de rapé] e um rapé na mão. Nunca vai ser uma consagração, vai ser um uso indevido”, completa.

Idyarrury Xukuru-Kariri, cacique do Coletivo Cultural Wetçamy, fazendo uso do cachimbo chanduca
Idyarrury Xukuru-Kariri, cacique do Coletivo Cultural Wetçamy, fazendo uso do cachimbo chanduca | Foto: Raphael Muller | Ag. A TARDE

A realização de rituais com medicinas indígenas também acontece no Xamanismo, que é um conjunto de práticas que envolve a natureza, os animais, o mundo espiritual e toda a filosofia do sagrado. Para Wakay, é preciso ter cuidado com essas ações para que não se torne uma nova religião.

“Tem que passar para as pessoas o que é realmente preciso e não o que elas acham que precisam. A gente tem que tomar muito cuidado nesse sentido. O que vai acontecer com esse povo? Uma nova religião. Então agora é a nossa vez de catequizar esse povo que um dia nos catequizou? Não é das nossas leis catequizar [...] Cada líder precisa ficar atento, sendo manipulado em todos os sentidos, politicamente, religiosamente e, principalmente, dentro de um poder que não constrói nada. O que constrói é uma atração, onde todo mundo cai na festa”, conclui.

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