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Inclusão de crianças autistas na educação é desafio a ser superado

Mesmo garantido por lei, o acesso à educação inclusiva é reivindicação das famílias

Publicado quarta-feira, 02 de novembro de 2022 às 06:00 h | Atualizado em 08/05/2023, 14:25 | Autor: Rafaela Souza
A engenheira Claudenira Gonçalves é mãe de Eric
A engenheira Claudenira Gonçalves é mãe de Eric -

Em tempos de discussão sobre acessibilidade de pessoas com deficiência aos espaços, a inclusão de crianças autistas no ambiente escolar é um desafio para muitas famílias. Mesmo com o direito assegurado pela legislação brasileira, o acesso à educação é mais uma reivindicação da comunidade. 

Além do despreparo de profissionais e falta de abertura à diversidade, a recusa de matrícula nas instituições de ensino ainda é uma queixa comum entre mães de crianças autistas. A turismóloga Maíra Cavalcante, de 48 anos, relatou que já passou por situações de preconceito em algumas escolas quando tentou matricular o filho Gabriel, de 10 anos.

“Já ouvi que a culpa do autismo do meu filho era minha. Autismo não é culpa da mãe, é uma condição genética. Na época, eu não sabia e a minha reação foi apenas chorar. A gente foi lutando até encontrar uma escola realmente inclusiva. Ele é apaixonado pela escola que está estudando. Ele vai e volta feliz. Quando a gente encontra uma escola que promove a inclusão, a gente fica radiante”, afirmou.

A busca por uma educação mais inclusiva, garantia de direitos e acolhimento às mães de pessoas autistas foram as motivações para a turismóloga idealizar a Associação Mães Autismo. Criada em 2017, a entidade tem o objetivo de empoderar mães atípicas, além de oferecer acolhimento e suporte jurídico a essas mulheres. O projeto atende cerca de 600 mães na Bahia.

“A associação surgiu em 2017, após várias situações de preconceitos que eu vivi na minha maternidade. Eu sou autista, mãe atípica e solo. Enfrentei vários preconceitos por essas três questões. Além disso, sempre me veio a pergunta ‘Cadê o olhar para as mães?’, porque surgiram outras situações com meu filho em escolas, parques. Esse projeto foi criado para fortalecer também as mães. Eu via muito o olhar para os filhos, mas não para as mulheres”, destacou.

Maíra Cavalcante, Marleide Nogueira, Iara Pereira e Rosangela Souza administram a Associação Mães Autismo
Maíra Cavalcante, Marleide Nogueira, Iara Pereira e Rosangela Souza administram a Associação Mães Autismo |  Foto: Arquivo Pessoal
  

Além de ser presidida por Maíra, a Associação tem como vice-presidente a servidora pública Marleide Nogueira, de 48 anos, e como diretora a psicóloga Iara Pereira, 40 anos. Elas são mães de Igor Nogueira, de 27 anos, e Benjamin, de 8 anos. O desafio de conseguir um ambiente escolar inclusivo para os filhos autistas é uma questão em comum para elas.

Iara é uma das mães que teve a matrícula do filho recusada em uma escola de Salvador. “Mesmo com o aparato legal, eu vivi isso há pouco tempo. Eu passei mal no telefone. Tinha feito uma entrevista com uma pessoa e foi só falar que meu filho era autista que a conversa mudou de história. A gente percebe que isso acontece muito e trabalhamos com a perspectiva de inclusão. Marcaram uma entrevista que nunca chegava. Precisei ligar para a escola porque o tempo estava passando e não recebi nenhum retorno. Me deparei com a recusa e precisei buscar outra escola. Encontrei uma por indicação de uma amiga. Diferente da outra, meu filho foi muito bem recebido e está muito feliz”, relatou.

Desafios

Ainda com todas as dificuldades enfrentadas atualmente, a vice-presidente da Associação Mães Autismo, Marleide Nogueira, relembrou os desafios na busca por uma educação inclusiva para o filho, além do processo que enfrentaram até a confirmação do diagnóstico.

Marleide revela que os anos escolares do filho Igor foram mais difíceis pela falta de inclusão e acolhimento nas escolas. Segundo ela, o filho ainda sofria com o estigma e bullying.

“Ele iniciou em escolas regulares e era excluído de tudo. A partir disso, passou a apresentar um comportamento mais agressivo com os colegas. A minha vida era na coordenação da escola, até o dia que fui chamada e ouvi que a escola não era o lugar de Igor. Depois disso, fiquei muito abatida. Ele ainda chegou a ir para uma escola especializada no período, mas não deu certo. Nesse momento, eu vi a importância dele estar em um ambiente diverso como todo mundo. A pessoa autista pode aprender como todo mundo, mas precisamos de um ambiente que propicie isso”, relatou.

Em meio à falta de inclusão e dificuldades, a servidora pública diz que o ambiente escolar deixou de ser uma angústia quando Igor se sentiu acolhido em uma instituição. Em 2016, ele se formou no Ensino Médio. Além dos estudos, Igor também se encontrou no jiu-jitsu e se tornou atleta profissional da categoria. Ele é campeão mundial desde 2018.

Para defender o título, o atleta está promovendo uma vaquinha para custear a participação e a viagem para o Mundial de Jiu-Jitsu em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes. O evento vai acontecer no dia 11 de novembro.

“O esporte transformou minha vida e proporcionou reescrever minha história. [...] Esse ano, no dia 11 de novembro, acontecerá o Mundial de Parajiujitsu e quero muito defender o título, trazer mais uma vitória e reconhecimento para Bahia, para o Brasil e, principalmente, a todos autistas, vencendo o capacitismo e mostrando que, havendo inclusão e o apoio da família, podemos tudo”, declarou.

Inclusão na prática

A psicopedagoga Ildeci Bessa destaca que a inclusão é importante para o desenvolvimento das crianças autistas. Contudo, segundo ela, é necessário empregar as técnicas adequadas para cada indivíduo. “É preciso um olhar diferenciado. Todas as crianças precisam. A filosofia de inclusão prevê que todos os alunos aprendam juntos, mas respeitando o tempo e as condições de cada sujeito. A escola precisa respeitar a diversidade e singularidade da criança e os momentos de aprendizagem na sala de aula”, explicou.

Segundo a psicopedagoga, a inclusão deve ser promovida com a interação de todas as crianças no espaço. “A gente vê crianças separadas com o acompanhante no canto e a professora fazendo as intervenções com as outras crianças. Por isso, a gente precisa chamar essa criança para perto, mostrar que ela é capaz. Fazer as intervenções com objetivos precisos e focar nas habilidades. Com o estímulo adequado, a aprendizagem vai ser uma consequência”, frisou.

Psicopedagoga defende inclusão no ambiente escolar
Psicopedagoga defende inclusão no ambiente escolar |  Foto: Arquivo Pessoal
  

Além da abordagem didática, as instituições deveriam se preocupar com as condições dos ambientes. A especialista alerta que questões estruturais podem impactar na forma como as crianças autistas lidam com o espaço.

“Antes de receber o aluno, é importante organizar o espaço da sala de aula. Esse espaço precisa ter um pavimento confortável, antiderrapante, as portas largas, janelas que ajudam na ventilação, o teto claro, iluminação natural, conforto térmico, a adaptação do material. Depois de organizado o espaço, a gente precisa estudar a criança, as dificuldades, as capacidades. A partir disso, a escola pode formular o programa de educação individual e a proposta pedagógica voltada para cada criança”, pontuou.

A criação de um núcleo de inclusão nas escolas como forma de suporte no planejamento das atividades e atendimento aos alunos também é uma medida apontada pela especialista. Para ela, a atuação da escola deve ser feita em parceria com os profissionais e familiares das crianças. Além disso, a psicopedagoga ressalta os benefícios de promover o acesso de crianças autistas no ensino regular.

“As crianças autistas merecem estar em escolas regulares com outras crianças. Antes do diagnóstico, ela é uma criança como outra qualquer. A inclusão delas viabiliza questões de socialização, aprender a conviver com o outro, com a diversidade. Incluir é muito importante, e restringir a criança a um espaço único é um retrocesso. A exclusão no ambiente escolar deve ser combatida. Por isso, é importante termos um ambiente diverso, onde as crianças entendam a importância de cada indivíduo. É uma postura que deve ser adotada para além das escolas”, completa.

Independência e estímulo de habilidades

A engenheira civil Claudenira Gonçalves, 53 anos, não teve recusa na matrícula do filho Eric, de 11 anos, mas contou que já tirou a criança de uma escola após perceber que ele não estava sendo incluído no ambiente escolar. "A gente percebia que, na creche, tinha uma ou outra professora que acolhia todas as crianças, mas houve um momento que mudou a profissional e eu, como mãe presente, percebia que ele ficou quase que escanteado. A gente mudou e colocou em outra escola, onde ele está até hoje", diz.

Claudenira destaca ainda que a educação vai para além da escola. Segundo ela, é importante que a família atue em conjunto no estímulo das habilidades e autonomia da criança.

"A gente sempre estimula ele a ser independente. Ele vai de transporte escolar. É importante para gente que ele saiba ler, escrever e interpretar dentro das suas condições. A gente compreende e respeita os limites. A escola entende isso e Eric é tratado como as outras crianças. A escola precisa ter afinidade com os profissionais que acompanham as crianças e os pais”. 

Mesmo com a boa experiência com a escola atual do filho, a engenheira afirma que o acesso à uma educação mais inclusiva é um “trabalho de formiguinha”. “As escolas precisam melhorar o acolhimento, as crianças necessitam dessa consciência, paciência e inclusão na sala de aula”.

Legislação e garantia de direitos

Os direitos das pessoas com autismo no Brasil são assegurados por leis como a Nº 12.674, de 2012, e a Nº 13.146, de 2015. O direito à educação é uma das reivindicações contempladas pela legislação.

A primeira institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista e estabelece diretrizes para o seu cumprimento. Segundo o texto, a pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência (PCD). A lei institui os direitos dos autistas e suas famílias em diversas esferas sociais. Por meio desta legislação, pessoas no espectro são consideradas com deficiência para todos os efeitos legais e, portanto, têm os mesmos direitos assegurados.

A lei garante que as pessoas que estão no espectro autista e as famílias tenham acesso ao serviço oferecido pela assistência social na cidade onde reside, além de direito à educação com atendimento especializado garantido pelo Estado.

A lei assegura também o acesso a ações e serviços em diversos âmbitos. Entre eles estão: diagnóstico precoce, atendimento multidisciplinar, medicamentos, ensino profissionalizante, moradia, mercado de trabalho, previdência e assistência social.

Já a Lei Nº 13.146, também conhecida como a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) ou Estatuto da Pessoa com Deficiência, visa assegurar e promover os direitos das pessoas com deficiência em todo território nacional, garantindo mais inclusão social e cidadania a esse público. Na LBI, as pessoas com autismo também são consideradas pessoas com deficiência. A partir disso, para todos os efeitos legais, as determinações da lei se aplicam também àquelas no espectro e suas famílias.

Em relação à avaliação da deficiência, a lei considera a pessoa com deficiência como aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. Por conta disso, a avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar. 

A lei também alterou normas estabelecidas anteriormente, como no Código Eleitoral, Civil e Consolidação das Leis de Trabalho. Além disso, trouxe algumas modificações à Lei 12.674, de 2012.

A garantia da inclusão escolar é um dos objetivos da LBI. As pessoas com deficiência, incluindo as autistas, têm direito a um sistema educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades. O modelo de ensino deve levar em consideração e respeitar as características, interesses e necessidades de cada indivíduo.

Nesse sentido, o Estado é responsável pela instituição de um projeto pedagógico que promova um atendimento educacional especializado, além de serviços e adaptações necessárias para atender um aluno com deficiência, como a oferta de um material adaptado às necessidades e auxílio de profissionais especializados.

A lei se estende tanto para as instituições de ensino públicas quanto privadas. A legislação proíbe a cobrança de valores adicionais de qualquer natureza em suas mensalidades, anuidades e matrículas, recusa, procrastinação, suspensão e cancelamento da inscrição de qualquer curso ou grau por conta da deficiência.

Para a presidente da Associação Mães Autismo, Maíra Cavalcante, as leis são garantias de direitos às pessoas autistas. "As leis protegem nossos filhos e dão o direito deles estudarem em escola regular, ter o material adaptado e o direito ao Auxiliar de Desenvolvimento Infantil e Acompanhante Terapêutico na escola".

Diagnóstico

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um distúrbio do neurodesenvolvimento caracterizado por déficits na interação social e na comunicação, interesses restritos e comportamento repetitivo.

A partir dessa definição, a neuropediatra Renata Maria Episcopo explica que o autismo pode se manifestar de formas variadas em cada indivíduo.

“O  TEA é um espectro, com uma ampla gama de comportamentos. É classificado em níveis um ou leve, que necessita de pouco suporte para comunicação, socialização, planejamento e organização de suas atividades; o dois ou moderado necessita deste suporte; e o três ou severo demanda maior suporte”, aponta.

Neuropediatra destaca importância do diagnóstico precoce
Neuropediatra destaca importância do diagnóstico precoce |  Foto: Arquivo Pessoal

Mesmo com a diversidade presente na forma como o autismo se apresenta, algumas características podem ser mais evidentes e devem ser observadas pela família da criança. Segundo a neuropediatra, sinais precoces podem aparecer desde o primeiro ano de vida, como a falta de contato visual, não atender pelo nome, atrasos na fala e na linguagem, comportamentos repetitivos, alterações sensoriais, dificuldade para mastigar alimentos, aversão a determinados sons e texturas. 

Em relação ao diagnóstico, a especialista pontua que é necessário uma avaliação multidisciplinar. "O diagnóstico do TEA  é clínico e não é simples; requer, muitas vezes,  avaliações com diferentes profissionais além do médico, observação do paciente e entrevistas estruturadas com os pais sobre os sintomas atuais e passados da criança", ressaltou.

Além da necessidade de uma assistência multidisciplinar, a neuropediatra destaca a importância do diagnóstico precoce e os impactos positivos no desenvolvimento. “O diagnóstico tardio pode comprometer habilidades sociais e cognitivas, como dificuldade na alfabetização, de adequação do comportamento em vários ambientes levando a criança ao isolamento social, atraso nos marcos do desenvolvimento, principalmente da fala e piora dos alterações sensoriais. Assim, o diagnóstico precoce é o que vai permitir que as crianças recebam tratamento adequado, ainda na primeira infância”, pontua.

Após o diagnóstico, o tratamento do TEA deve ser realizado de forma individualizada e com base nos déficits e habilidades da criança. A partir disso, a especialista destaca a atuação e o acompanhamento de outros profissionais, como fonoaudiólogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, psicomotricista, psicopedagogas e fisioterapeutas.

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