CULTURA
Caruru de Cosme e Damião ‘é coisa nossa’
Devoção religiosa e festejo é declarado Patrimônio Imaterial da Bahia em aprovação unânime do Conselho
Por Gabriel Vintina*
Na manhã de ontem, o Caruru de São Cosme e Damião recebeu oficialmente o título de patrimônio imaterial da Bahia, conforme aprovação unânime do Conselho Estadual de Cultura (CEC). O registro dessa importante manifestação cultural será publicado no Diário Oficial da Bahia em 27 de setembro, dia dedicado aos santos gêmeos, em um marco histórico para a preservação das tradições baianas.
O Caruru de São Cosme e Damião, uma celebração que mescla devoção religiosa e festividade, é uma tradição secular que ocorre em várias regiões da Bahia, especialmente durante o mês de setembro. As famílias baianas preparam um prato à base de quiabo cortado, camarão seco e azeite de dendê, oferecendo a refeição inicialmente às crianças, numa prática conhecida como "caruru de sete meninos".
Segundo Gilmar de Faro, presidente do CEC, a patrimonialização do Caruru representa um reconhecimento formal da importância cultural e afetiva dessa prática para o povo baiano. “Esse registro especial fortalecerá a identidade da cultura baiana relacionada ao Caruru de São Cosme e Damião. É importante que essa manifestação seja fortalecida e não caia no simbolismo do esquecimento, especialmente para aqueles que já vivenciaram essa tradição”, declarou Faro.
A tradição do Caruru está profundamente enraizada na história do estado e carrega uma rica simbologia, que vai além da comida em si. O ritual reforça laços afetivos e sociais, promovendo a união das comunidades e alimentando memórias de infância e fé.
O reconhecimento
Tatá Ricardo, autor do pedido de patrimonialização e presidente da Câmara de Patrimônio do CEC, explica que o processo de reconhecimento envolveu uma extensa pesquisa etnográfica e historiográfica, liderada pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC). "Segundo estudos, a festa do Caruru de São Cosme e São Damião é a maior festa popular em vários territórios da Bahia, porque ocorre em muitos lugares ao mesmo tempo, diferente de festas como a Lavagem do Bonfim, que se concentra em um só lugar. A festa acontece na periferia, em terreiros, igrejas católicas e até nas casas de quem não tem uma religião definida, mas que celebra a cultura baiana", afirmou Ricardo.
O processo, iniciado em novembro de 2021, teve uma participação ativa da sociedade civil, com escutas públicas e consultas a mestres da tradição com mais de 90 anos de experiência. A partir dessas informações, foi elaborado um dossiê com mais de 200 páginas, que serviu de base para a decisão do Conselho.
Uma visão aprofundada da importância do caruru na cultura baiana foi oferecida pelo antropólogo e babalorixá do Ilê Oba L’okê, Vilson Caetano, que destacou a complexidade desse ritual e a importância de evitar simplificações. “Não é muito correto abordar o caruru como sincretismo religioso. Ele vai além disso, sendo uma celebração que une as culturas africanas e cristãs, sem simplesmente adaptá-las. As influências africanas moldaram profundamente a representação de Cosme e Damião na Bahia, mas o caruru não pertence exclusivamente a uma religião”.
Caetano enfatizou que o caruru é muito mais do que uma refeição. "É um ritual que marca a identidade afro-brasileira, simbolizando não apenas fé, mas a preservação de uma herança cultural profunda." Ele também pontuou que a patrimonialização garante que essas tradições permaneçam vivas, resistindo ao tempo e às transformações sociais.
Outro ponto relevante é a associação do caruru com figuras mitológicas africanas. Vagner Rocha, doutor em Estudos Étnicos e Africanos e pesquisador da culinária afro-baiana, ressalta que o prato vai além de um simples símbolo religioso. “O caruru de Cosme e Damião mistura elementos de devoção aos santos cristãos e às tradições africanas, como a relação com os ibeji, gêmeos reverenciados na cultura iorubá”. Ele também menciona que cada prato servido no caruru tem uma conexão com os orixás, reforçando a interseção entre mitologia e culinária.
Rocha ainda destaca o papel das crianças nesse contexto. "As crianças, tanto representadas pelos santos quanto pelos orixás, têm a prerrogativa de comer primeiro. Isso simboliza a continuidade e o respeito pelas gerações futuras." A patrimonialização, segundo ele, é fundamental para garantir que essa rica diversidade cultural continue sendo transmitida.
Marcelo Lemos, diretor-geral do IPAC, aponta que a partir de agora o Caruru de São Cosme e Damião será alvo de políticas de salvaguarda. "Nosso papel é garantir que essa manifestação cultural continue viva. Isso inclui a realização de oficinas, palestras e outras atividades que promovam a transmissão do conhecimento para as próximas gerações", disse Lemos.
Preservação
Para o IPAC, a patrimonialização de um bem cultural não significa apenas reconhecimento, mas também responsabilidade na preservação e promoção do patrimônio. "O Estado não se torna proprietário do bem, mas assume o compromisso de preservá-lo para que a tradição não caia no esquecimento", acrescenta Lemos.
A patrimonialização do Caruru de São Cosme e Damião é mais um passo no processo de preservação da cultura popular baiana. Nos últimos anos, outras manifestações, como o Acarajé e a procissão de Dois de Julho, também foram reconhecidas como patrimônios imateriais, ampliando o leque de tradições protegidas pelo Estado.
Para Vilson Caetano, o desafio futuro será garantir que a patrimonialização não se restrinja a um ato simbólico, mas que resulte em ações práticas de preservação. "A festa do Caruru acontece em lares, terreiros e comunidades, e muitas vezes ultrapassa os limites da Bahia. É essencial que o Estado continue a apoiar essas manifestações e garanta que o saber seja transmitido para as próximas gerações", alerta o antropólogo.
*Sob a supervisão do jornalista Luiz Lasserre
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes