COMOÇÃO
Caso de desistência de adoção gera reflexões
Casal do Paraná foi sentenciado a pagar uma multa de R$ 50 mil por, em 2023, ter “devolvido” três irmãos
Por Priscila Dórea
Expectativas irreais, pressão social, falta de preparo no que diz respeito a aprender (dentro do possível) o que é ser mãe e pai… São inúmeras as causas por trás da desistência de pretendentes à adoção. O tema ganhou holofotes na última semana, quando um casal do Paraná foi sentenciado a pagar uma multa de R$ 50 mil por, em 2023, ter “devolvido” três irmãos – de 1, 6 e 7 anos – ao sistema de adoção, por “brigas constantes e ausência de gratidão” das crianças.
A comoção em torno do caso tem sido grande e trouxe à tona discussões sobre o preparo dos pretendentes e o papel da Justiça. Hoje na Bahia, 237 crianças e adolescentes estão aguardando a adoção.
“Desistir da adoção após a concessão da guarda provisória pode acarretar diversas sanções legais aos adotantes, como a sentença dada no caso do Paraná, já que a convivência socioafetiva caracterizada pelo vínculo de confiança e afeto costuma estar formada, e os adotados deverão ser indenizados”, explica o advogado Marcus Magalhães, vice-presidente da Comissão dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB-BA, e coordenador técnico do Centro Estadual de Atendimento a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência (Proteja).
Assim que um caso de desistência é registrado, a criança é encaminhada para atendimento psicológico e, a depender da situação, para uma Família Acolhedora, aponta o juiz de direito titular da 1ª Vara da Infância e Juventude de Salvador, Walter Ribeiro.
“Isso visa minimizar os danos emocionais e psicológicos pela fragilidade de vínculos. É uma decisão provisória prevista no artigo 34, § 2º do ECA, e busca aprofundar os estudos sobre o caso, respeitando o direito da convivência familiar”, explica.
Considerando que essa criança/adolescente passou por uma primeira ruptura de vínculo com sua família biológica, aponta a psicóloga clínica Infantojuvenil Jéssica Cirqueira, uma segunda quebra de vínculo pode reforçar o sentimento de abandono.
“Isso gera, muitas vezes, mais insegurança, retraimento e isolamento, podendo interferir nas relações sociais das crianças. Diante dessa situação, elas podem apresentar comportamentos agressivos, dificuldade de entender e expressar sentimentos, além de culpa, ansiedade e dificuldade de confiar”, lista.
A lei protege e prioriza o bem-estar da criança, garantindo que os responsáveis pela desistência enfrentem as consequências legais de seus atos, explica o advogado de Direito de Família e Direito Penal Fábio Oliveira.
“Adotar é um ato de amor e responsabilidade que exige reflexão profunda. Situações como a do Paraná mostram o impacto devastador de uma desistência. Por isso, quem deseja adotar deve avaliar suas motivações, participar dos cursos preparatórios e entender que a adaptação leva tempo”, afirma.
Mãe por adoção de Glória (16) – adotada aos 10 anos –, a professora Tereza Pereira do Carmo, do Instituto de Letras da UFBA, afirma que ela e o marido Eustáquio precisaram ensinar a linguagem do amor para a filha, que não conhecia o amor de pai e mãe.
O casal aprendeu que comportamentos como regressão, fazer xixi na cama, pedir para voltar para o abrigo, dizer que você não é a mãe/pai de verdade, chorar por qualquer bobagem e ter um medo enorme de ser esquecido em algum lugar ou ser devolvido, “são esperados e independe da idade em que eles chegam”, explica.
“Ouvir que você não é a mãe de verdade ou que a ‘outra’ era melhor, dói, mas esse problema é com o passado de nosso filho e não conosco. Nessas horas é preciso respirar, ter paciência e dizer para nosso filho que estamos fazendo o nosso melhor e que não vamos desistir. Eles precisam ouvir que é para sempre. Foram muitas noites dizendo no ouvido de minha filha enquanto ela dormia agitada ou chorava dormindo: mamãe te ama, mamãe te protege, você é minha filha para sempre. Durma tranquila, meu amor, que mamãe está aqui e nada e nem ninguém vai nos separar”, conta Tereza.
Grupo de apoio
Todo o processo foi desafiador e não teria sido possível se ela e o marido não participassem do Grupo de Apoio à Adoção da Bahia, o Nascor, explica Tereza, apontando que “o curso que o TJBA oferece hoje, por exemplo, é muito bom, melhor do que ofereceu na nossa época, mas ainda assim é pouco”. Analista judiciária integrante da equipe técnica da Coordenadoria de Infância e Juventude do Tribunal de Justiça da Bahia (CIJ TJBA) e psicóloga, Alessandra Meira explica que é essencial que os pretendentes invistam na sua preparação.
“Na maioria dos casos, a realidade não corresponde ao que foi idealizado, mas, ainda assim, o exercício da parentalidade pode trazer uma enorme realização. Por isso que, para além dos cursos oferecidos pelos tribunais, é preciso que haja um trabalho pessoal em relação à motivação e expectativas em torno da adoção, que reflitam sobre o lugar que essa criança irá ocupar em suas vidas e o que estão dispostos a oferecer a ela”, reflete a analista. Essa é a melhor forma de entender as mudanças que essa criança poderá trazer para sua vida e ter ferramentas para não desistir no meio do caminho.
O problema é: onde encontrar essas ferramentas? “É certo que cada caso é um caso, mas não podemos dizer que essa desistência ou ‘devolução’ é 100% culpa dos pretendentes, pois devemos colocar na balança as responsabilidades dos entes envolvidos. Diversas Varas e Comarcas que tratam da infância e juventude propõem um ‘curso preparatório’ para os pretensos pais com duração de 6 a 8 horas. Quando muito, realizam em dois dias e acham que a partir deste curso está tudo resolvido”, afirma o fundador da Nascor, Vidal Campos.
Pai por adoção de Luiz Eduardo e Sofia, Vidal há vários anos vem militando na área da adoção de forma voluntária e aponta que os grupos de apoio fazem grande parte do trabalho que é da Justiça no que diz respeito a orientação desses pretendentes e, por já ter presenciado várias falhas no sistema de Justiça, se diz contrário a punição de pretendentes, “pois no geral não há um preparo eficaz e um acompanhamento efetivo, principalmente quando os pretendentes são chamados para adoção em outras cidades ou estados”.
Situações diversas
Vidal recorda de um casal de Salvador que foi até Linhares (Espírito Santo) iniciar o processo de adoção de quatro crianças. Lá, a equipe técnica não tirou todas as dúvidas do casal e os rechaçou após citarem que “Deus está na frente de tudo”. Resultado: tiveram o processo parado e a equipe recomendou à Vara da Infância que os tirasse do sistema de adoção.
“Outra situação negligente foi a de quatro crianças de Eunápolis adotadas por um casal de Maceió. Após alguns meses, o casal devolveu as crianças, que ficaram quase dois anos no limbo jurídico do estado sem poderem ser adotadas até que o grupo de apoio interviu”, relata.
Quem também possui uma longa lista de casos de desistência ao longo dos anos – inclusive uma menina que passou por três famílias até encontrar em definitivo a sua –, é Jozias Sousa, presidente do lar de acolhimento Organização de Auxílio Fraterno (OAF), que aponta ainda o quanto a burocracia da Justiça como um todo deixa o processo lento além do necessário, o que acaba prejudicando as próprias crianças.
Hoje na OAF, por exemplo, das 71 crianças acolhidas, apenas uma pode iniciar o processo de adoção, enquanto as outras esperam que a Justiça permita que elas encontrem um novo lar.
A Justiça prioriza que a criança volte para a família biológica, aponta Josias, no entanto, muitas dessas famílias não têm condição alguma de cuidar dessa criança. “Mas isso é ignorado. Há determinados defensores que vão totalmente contra ao que a instituição, que acompanha essa criança e sabe sua origem, e vai lá na última página do processo, vê apenas o último despacho e toma a decisão apenas com base nisso, com o argumento de que está preservando o direito da criança”, explica Josias.
“Um acolhido da OAF, por exemplo, que fazia aula de música no projeto Neojiba, foi devolvido à família apesar de nossos relatórios e um tempo depois apareceu morto em Piatã”, recorda o presidente da OAF.
“Há muitas melhorias que precisam ser feitas em todo o processo de adoção. As burocracias são necessárias, afinal estamos falando de crianças e adolescentes, que não são brinquedos para, por exemplo, serem devolvidos ao bem querer. E entre essas melhorias, é preciso priorizar a fala das instituições durante esses processos, porque são esses lares de acolhimento que melhor conhecem essas crianças”, afirma Josias Sousa.
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