POLÍTICA
Cotistas enfrentam desafios dentro e fora das universidades públicas
Estudantes relatam experiências de como as cotas fizeram a diferença em seus percursos
Por Ana Cristina Pereira
O que a ampliação das políticas afirmativas nas universidades tem a ver com o pedido formal de desculpas feito na última quinta à população negra pelo governo federal? Junto com o perdão pela escravização e seus danos à população negra, o estado se comprometeu a ampliar políticas públicas efetivas na transformação e inclusão social.
As cotas para pretos, pardos e indígenas, oficialmente implementadas em 2012, têm sido uma ferramenta concreta para o aumento da diversidade no ambiente acadêmico e ponte para se alcançar trabalhos menos precarizados e aumentar a renda familiar.
Os ganhos têm sido demonstrado em diferentes pesquisas e serviram de base para a atualização da lei em novembro do ano passado. Após dez anos de uso, o novo texto ampliou as cotas para pessoas quilombolas e reduziu a renda per capita máxima dos beneficiários para um salário mínimo.
Dados do último Censo da Educação Superior, realizado anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) revelou que as matrículas de estudantes por cota racial no ensino superior federal cresceram 266,4%, saltando de 14,2 para 52, 2 mil entre 2012 e 2023. Lá no começo do processo, 1.780 alunos concluíram o ensino superior, e no ano passado, 26.151 venceram as barreiras que ainda se colocam no caminho de muitos cotistas.
Os estudantes baianos Ana Victória Santos dos Reis, Rute Cruz, Lucas da Hora e Ícaro Lima Sena, que têm idades entre 25 e 27 anos, vivem diferentes experiências acadêmicas, mas reconhecem o papel fundamental das cotas em suas trajetórias e na vida de muitos jovens como eles, vindos do ensino público e de famílias pobres. Ana Victória estuda medicina na Uneb; Rute cursa jornalismo, Lucas direito e Ícaro está no mestrado em psicologia, todos na Ufba.
A própria relação com o sistema de cotas foi se desdobrando aos poucos para os alunos. Rute, por exemplo, conta que não sabia nada sobre elas quando se inscreveu para cursar o ensino médio no Instituto Federal de Educação (IFBA). Tinha direito, já que estudou a vida toda em escola pública, mas entrou pela ampla concorrência. Quando foi fazer o Enem, já tinha um entendimento muito melhor do que eram as cotas raciais e sociais e como poderia utilizá-las.
“O fato de ser cotista é extremamente determinante no meu percurso acadêmico, porque facilita muito a minha vida. No sentido de concorrer com pessoas que vieram do mesmo sistema e estudaram em escolas públicas, pois é muito diferente de uma pessoa que estudou no colégio Pan-Americano”, compara.
Rute faz uma diferenciação entre as escolas estaduais e federais, e diz até entender as pessoas que não acham justo estudantes das escolas federais concorrerem em pé de igualdade com os das estaduais.
“Sendo ambos da rede pública, há um abismo muito diferente da qualidade do ensino entre eles”, diz Rute, a partir de sua experiência nos dois sistemas. Ela só não consegue compreender falas com as que ouviu, há pouco tempo, em um workshop com integrantes da defesa civil de vários estados em seu estágio na Unicef. Um dos profissionais disse que as cotas não eram válidas.
“Isso aconteceu agora, há quatro meses. Para mim esse nem era um assunto pra ser discutido, já era coisa superada. Dentro da universidade eu nunca passei por esse tipo de questionamento”, completa.
Preconceitos
Mas, infelizmente, falas como essa que Rute ouviu não são exceção. Uma pesquisa do instituto PoderData, realizada no mês de outubro, mostrou que o apoio às cotas para negros nas universidades públicas caiu 10 pontos percentuais nos últimos 3 anos. Atualmente, 50% dos entrevistados dizem apoiar a política de cotas para negros e 34% são contrários.
Dentro das universidades, ainda há espaço para episódios lamentáveis como o ocorrido no dia 17 passado, em São Paulo. Durante um jogo de handebol, alunos da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) chamaram seus colegas da Faculdade de Direito da USP de “cotistas” e “pobres” em tom pra lá de agressivo. Os quatro estudantes identificados foram afastados dos escritórios onde estagiavam e a faculdade emitiu nota de repúdio aos atos racistas.
Lucas vê na atitude de seus colegas de Direito o escape da mentalidade racista, já que a prática da presença dos alunos cotistas desfez argumentos como a diminuição da qualidade do ensino - que foi comum no começo da política.
“As pesquisas mostram o oposto e estes dados já foram amplamente divulgados. Então, essa recusa às cotas não é racional. Entra no âmbito do racismo, das coisas que não são ditas, que acontecem naqueles momentos de agito, como nessa competição esportiva. É ai que os verdadeiros valores aparecem”, reflete.
O estudante acrescenta que dentro de cursos como Direito, essa percepção permeia falas como as que ouviu de uma professora em uma reunião de congregação, de que o curso precisava voltar a atrair a elite.
Para Lucas, esses discursos atravessam as instituições, mesmo que não sejam ditos abertamente. Mas ele reconhece que o perfil do curso, sobretudo à noite, horário que frequenta, está bastante colorido.
“Eu acho que a questão principal sobre as cotas é que o acesso à universidade permanece entendido exclusivamente como uma questão de mérito. É aí que o xingamento começa a fazer sentido. Dizer você é cotista é como dizer que você é indigno de estar aqui nesse espaço”, reflete Lucas.
Em sua opinião, esses desgastes levam o tema para pontos já debatidos e superados, como o papel das cotas na superação das injustiças históricas. Ele usa sua própria trajetória, de estudante de escola pública na Ilha de Itaparica, para falar das barreiras estruturais de uma educação falha.
“Eu fiquei dois anos fora e tive de correr muito atrás para entrar na universidade”, diz Lucas, que ingressou pelo BI em Humanidades. “As pessoas precisam parar de confundir mérito com oportunidade”, reforça.
Diversidade no olhar
Durante graduação, Ícaro foi marcado por uma fala de um professor da Faculdade Getúlio Vargas em um documentário, afirmando que o estudante universitário pobre pode triplicar a renda de sua família.
Com um ano de formado e bolsista do mestrado em Psicologia, ele já ganha mais que o pai e a mãe, que não tiveram oportunidade de cursar o ensino superior. Depois de passar rapidamente pelo BI em Humanidades, ele resolveu migar e afirma que as bolsas são fundamentais em sua trajetória, já que o curso é diurno, impossibilitando os alunos de trabalharem.
Nos dia a dia da graduação, viu muitos colegas ficarem para trás ou simplesmente desistirem. “Aos poucos via os cotistas desaparecendo do curso, que historicamente é branco”, pontua.
No currículo, a falta diversidade, diretamente relacionada à falta de professores negros, foi sentida por ele na bibliografia que previlegia autores europeus ou norte-americanos. “Por conta própria estudei autores como Neuza Souza, Frantz Fanon e Cida Bento”, cita Ícaro, que tem se dedicado ao estudo da decolonialidade e outros estudiosos do sul-global. E vai focar sua pesquisa no trabalho doméstico e informal.
Assim como Ícaro, a estudante Ana Victória traz esse novo olhar para o curso que frequenta. Ela é a única mulher trans e negra do curso de Medicina da Uneb. “Quero abrir portas para outras meninas trans”, resume Ana, que cursou Biologia em Valença, e na pandemia resolveu mudar de profissão. Foi ai que descobriu a existência das cotas voltadas para quilombolas, ciganos, trans ou portadores de deficiências na Uneb.
“Me vejo com uma dupla representatividade dentro do curso. Sempre pergunto às pessoas quantas médicas negras elas conhecem e se conhecem alguma médica trans. Infelizmente, 90% das pessoas trans vivem na marginalidade”, afirma Ana, que fez o processo de transição ainda no ensino médio. Outro desafio para ela, que vem do interior, é se manter no curso, que tem uma carga horária difícil de conciliar com o trabalho.
Há um ano Ana é bolsista do Programa Prosseguir, sem o qual sua permanência seria muito difícil. “A Uneb só dispõe de um auxílio, que não atende a todos os cotistas”, afirma a jovem, selecionada para o programa criado pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) em 2019, para apoiar a permanência de estudantes negros na academia e sua aproximação com o mundo do trabalho.
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