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Falta de responsabilidade afetiva abala Geração Z

Relatos mostram como fenômeno emocional pode causar problemas na saúde mental

Por Felipe Sena

06/11/2024 - 9:00 h | Atualizada em 07/11/2024 - 18:31
Situação pode ser entendida como a negligência emocional ou ausência de maturidade
Situação pode ser entendida como a negligência emocional ou ausência de maturidade -

Um dos termos mais discutidos nas rodas de conversas entre amigos, principalmente da Geração Z [nascidos entre 1997 a 2012], também conhecidos como “Nativos Digitais”, é a falta de "responsabilidade afetiva”. Complexa e vivenciada de diferentes maneiras pelas pessoas, a situação pode ser entendida como a negligência emocional ou ausência de maturidade ao se relacionar afetivamente com o outro.

A depender de como acontecem as dinâmicas em um relacionamento, os jovens podem sofrer com problemas que afetem a saúde mental ao longo dos anos, principalmente em situações recorrentes de falta de responsabilidade afetiva. Esse foi o caso da estudante de Medicina Veterinária na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Giovana Barbosa, de 21 anos.

Giovana se diz “calejada” e hoje, tem a forma de se relacionar afetada pela falta de comprometimento e respeito de outras pessoas que já “ficou”. “A gente começa a ver defeito na gente, achar que a gente não é bom para o outro, que é feia. É uma loucura o que acontece na nossa cabeça”, diz.

A estudante de Medicina Veterinária, Giovana Barbosa, já passou por sucessivas situações sobre falta de responsabilidade afetiva
A estudante de Medicina Veterinária, Giovana Barbosa, já passou por sucessivas situações sobre falta de responsabilidade afetiva | Foto: Arquivo Pessoal

Carioca, Giovana se mudou para a cidade de Cruz de Almas, a cerca de 147 km de Salvador, quando foi aprovada na universidade. Nesse período teve que ficar distante do namorado. Antes da viagem, os dois tiveram uma conversa sobre o momento desafiador, e Giovana acreditou que estava "tudo bem" entre os dois.

“Eu falei para ele que queria saber como iríamos fazer e ele disse para eu ficar tranquila, que a gente seguiria com o relacionamento. E fui ficando com esperança. No entanto, antes da minha vinda para cá, ele falou apenas: ‘terminamos’. Eu disse: ‘não acredito que você segurou esse tempo todo, para fazer isso’. Eu fui muito otária”, relembra Giovana.

Ele tinha algumas falas machistas, que eu relevava, deixava passar, achando que ele me amava, e que também era recíproco.

Estudante de Medicina Veterinária, Giovana Barbosa

Comportamentos tóxicos e de “pouco caso” já eram rotina no relacionamento, o que deixava Giovana magoada. “Ele tinha algumas falas machistas, que eu relevava, deixava passar, achando que ele me amava, e que também era recíproco. No dia do meu aniversário, ele disse: ‘Saúde, você é f*** e tamo junto’, sendo que sempre fiz de tudo para estar próximo dele, inclusive em aniversários. Me marcou bastante”.

Outro caso foi um comentário preconceituoso sobre a forma que Giovana se vestia. “Certa vez eu estava com um short um pouco longo e diferente e eu mostrei para ele toda boba e ele olhou para mim e disse que eu estava parecendo um botijão de gás”, relata.

Suzzana Bernardes, psiquiatra de Terapia do Esquema
Suzzana Bernardes, psiquiatra de Terapia do Esquema | Foto: Arquivo Pessoal

De acordo com a psiquiatra especialista em Terapia do Esquema, Suzzana Bernardes, o relacionamento é construído entre duas pessoas e, por isso, é necessário cuidado mútuo, se não, o relacionamento acaba se tornando unilateral, apenas com o esforço de uma das partes. “A responsabilidade com o outro é um cuidado inerente a qualquer relacionamento, independente de ser amoroso. Isso deve ocorrer bilateralmente. A ausência desse cuidado pode causar mágoa em um dos lados”, explica.

Para Giovana, o mais difícil é lidar com os sentimentos por causa da paixão, um sentimento intenso, mas que pode ser temporário. “Quando estamos com uma pessoa, ficamos cegas para algumas atitudes, e vai 'passando pano', e depois quem sofre é a gente”, diz.

Um ghosting

Após o término com o namorado carioca, Giovana conheceu outra pessoa através de um aplicativo de relacionamentos quando chegou em Cruz das Almas. De acordo com ela, no início, o “ficante” se esforçava para manter contato, mas depois foi mudando de atitude.

Me mandava mensagem de bom dia ao boa noite. Depois de um tempo, eu quem enviava mensagem, eu quem ficava puxando assunto

Estudante de Medicina Veterinária, Giovana Barbosa

“Me mandava mensagem de bom dia, boa noite. Depois de um tempo, eu quem enviava mensagem, eu quem ficava puxando assunto. Quando tinha alguma festa, ele só podia ficar comigo depois de um certo horário, ele me via na festa, não falava comigo, me enviava mensagem e só me encontrava depois, eu quem tinha que ir atrás dele”, relembra Giovana.

Numa festa de São João da cidade, ela enviou uma mensagem para o “ficante” perguntando se ele podia “ficar mais um pouco”, o que ele negou. Chegando lá, ele estava com outras pessoas, causando uma decepção em Giovana.

Os dois chegaram a se afastar, mas depois se reaproximaram, com mais uma exigência por parte dele: os dois só podiam ficar juntos aos finais de semana. No entanto, em um período, ele simplesmente sumiu, dando o um ghosting em Giovana.

Uma nova nomenclatura para “abandono”, o ghosting sempre existiu, mas hoje, se popularizou por causa das redes sociais. “É provável que os agentes dessa ação sejam extremamente imaturos emocionalmente e tenham dificuldades em se comprometer. Isso leva a um comportamento de descaso com o outro, não importando a dor que possa por ventura causar”, ressalta a especialista Suzzana.

Após duas semanas, o “ficante” voltou a mudar de comportamento novamente. “Quando ele estava doente, eu fui na casa dele de surpresa, comprei remédio, e ele disse que eu só estava indo para casa dele porque eu gostava da companhia da mãe e irmã dele” diz.

Giovana ligou para o então “ficante”, os dois se encontraram e ela perguntou o que teria acontecido. “Ele disse que eu não era suficiente para ele e que era para eu arranjar outra pessoa. Depois de dois meses, ele estava assumindo relacionamento com outra”.

Um love bombing, um modus operandi

Após um bom período sem se relacionar com outra pessoa, Giovana decidiu dar outra chance ao amor, mas os erros do antigo “ficante” foram adotados pela nova pessoa que estava conhecendo. “Ele foi maravilhoso no início, depois sumiu, e eu fiquei maluca, porque eu achei que eu tinha feito alguma coisa com ele, que eu tinha afastado ele”.

O que aconteceu com Giovana, pode ser entendido hoje como love bombing. O termo significa uma forma de manipulação emocional que consiste em dar atenção, carinho e fazer declarações exageradas e constantes a uma pessoa no início de um relacionamento, e em pouco tempo, se tornar uma pessoa fria e distante.

Por dica da psicóloga, ligou para a pessoa. “Ele disse que não queria me machucar, e eu disse: “poxa, já machucou”.

“Eu estava com medo de brincarem comigo de novo e deixar ele ter acesso a minha casa, de ficar comigo, eu já me machuquei. Hoje em dia se eu sou insegura da forma que eu sou, se eu tenho medo de ser segundo plano de alguém, segunda opção, foi por causa dessas histórias, isso afeta a gente de alguma maneira. É mais fácil enxergar o problema na gente do que nos outros”, salienta Giovana.

Ela chegou a enfrentar um quadro depressivo e tomar remédios controlados por especialistas, mas hoje, ainda faz acompanhamento terapêutico.

“A ocorrência de modo sucessivo pode tornar a situação mais complexa e de difícil resolução. Mas, independente do fator desencadeante, tudo vai depender de como a pessoa vai responder a essa dor. Em pessoas mais suscetíveis, pode desencadear quadros de problemas emocionais como depressão”, explica a psiquiatra Suzzana.

Bloqueio de relação

O psicólogo que estuda e atende casos de pacientes ligados a relacionamentos, Elias Jefoni, de 23 anos. também já sofreu por causa da falta de responsabilidade afetiva. Ele estava iniciando o relacionamento com uma pessoa, que já tinha conhecido os amigos e saído para vários dates, quando, de repente, foi bloqueado nas redes sociais.

Elias Jefoni é psicológo e fala sobre relacionamentos
Elias Jefoni é psicológo e fala sobre relacionamentos | Foto: Arquivo Pessoal

“Na quinta-feira pela manhã, eu fui bloqueado. Não tinha outra forma de me comunicar. Eu tinha um perfil fake (falso) no Instagram, comecei a seguir ele, e vi que ele começou a postar coisas com o ex”, relata.

No sábado, os dois se encontraram, por acaso, no shopping. “Ele disse que não devia satisfação para mim”, diz Elias.

“Eu sabia que ele tinha voltado com o ex, foi um processo muito difícil, porque eu estava apegado. Ele poderia ter me avisado de forma honesta, singela”, completa Elias.

Para Elias, a falta de responsabilidade afetiva vem como ações repetidas. “Um deles é falta de interesse em conversar, às vezes a pessoa não está afim e tudo bem, mas é aqui que entra a falta de responsabilidade afetiva, dele comunicar a você que ele não está afim”.

O psicólogo explica que um ponto crucial antes de qualquer relacionamento é alinhar as expectativas, "porque a gente pode entrar ali no automático, com expectativas elevadas ou idealizações que a pessoa nos proporcionará, mas se em algum momento, as expectativas não forem correspondidas, não forem atendidas e pode acontecer uma grande frustração e uma grande rejeição também, e teoricamente, você cria gatilhos emocionais, para relacionamentos que você vive”.

Eu não tenho nenhum problema em falar sobre meus sentimentos. Eu acredito que o grande problema das pessoas hoje em expor os seus sentimentos, é não se vulnerabilizar.

Psicólogo Elias Jefoni

Hoje a precaução de Elias é não se relacionar com uma pessoa que tenha terminado um relacionamento recentemente. “Eu não tenho nenhum problema em falar sobre meus sentimentos. Eu acredito que o grande problema das pessoas hoje em expor os seus sentimentos é não se vulnerabilizar, mostrando seus sentimentos ao outro e mostrando que você é honesto".

"A precaução que eu tenho é não me relacionar com ninguém que tenha tido um relacionamento recente, e eu me questiono mesmo, eu não tenho nenhum problema em me perguntar e eu não tenho problema em falar sobre meus sentimentos", disse.

“Fui amante e não sabia”

A artista Vanessa*, de 20 anos, também já sofreu acontecimentos sucessivos de falta de responsabilidade afetiva em suas relações. Vanessa* estava se relacionando de maneira informal com outra mulher e era comum acordo que as duas se relacionassem com outras pessoas.

No entanto, a artista encontrou o primo no aniversário de uma colega e veio a ele uma revalação bombástica. A “ficante” teria dito que Vanessa* não aceitava o fato dela estar em um relacionamento. Ali a artista descobriu que estava se relacionando com uma pessoa que já estava em um relacionamento sério, só não tinha conhecimento sobre isso.

“Ela tinha um relacionamento de forma velada, além dela ter sido uma desgraçada, eu fui amante. Eu não poderia fazer nada nessa situação, porque, se não, o negócio ficaria ruim para mim”, diz.

“Eu gostava muito dele, e ela feriu mais do que o sentimento que eu tinha por ela, ela feriu o que eu acredito”, diz Vanessa*. Depois do caso, a cantora diz que teve “crises de ansiedade por causa do primeiro date, demorou meses para eu ficar psicologicamente bem”.

Para Suzzana, “a falta de cuidado com o outro pode provocar uma rotina de relacionamentos superficiais, voltados unicamente à satisfação unilateral”.

E depois?

“Não estou bem resolvida. Para mim, quando se trata de sentimento, o sentimento passa, mas quando se trata de reputação, imagem, a pessoa fere quem você é, isso não passa”, salienta Vanessa*.

Elias Jefoni sofreu decepção com uma pessoa que estava conhecendo
Elias Jefoni sofreu decepção com uma pessoa que estava conhecendo | Foto: Arquivo Pessoal

Para Elias, “quebrar a cara faz parte”, mas o importante é saber lidar com as relações após o baque de uma relação que não teve responsabilidade afetiva. “Todas as vezes que eu quebrei a cara, eu amadureci, de certa forma, é um processo, que é doloroso, mas saudoso".

"Na hora é uma angústia, a gente sente de verdade, quando a gente toma um ghosting, um fora ou pior ainda, quando você encontra a pessoa com outra, mas amadureci, muda a personalidade, a forma de ver o mundo. A gente consegue compreender que é parte do processo e não o processo todo”, complementa.

O processo

Em um novo relacionamento, a estudante de Medicina Veterinária, Giovana Barbosa, diz que as más experiências afetivas ainda afetam suas relações, mas nada que impeça de prosseguir e se entregar ao amor de uma pessoa que lhe valoriza.

“Hoje, eu estou em um relacionamento que estou passando por muita dificuldade com isso, eu sei que muitas das coisas que a gente acaba discutindo é por causa de sabotagem minha, uma insegurança minha, causada pelos outros”, diz.

Com um namorado de Salvador, Giovana diz que ele é “uma pessoa maravilhosa”. Quando eu viajo [para Cruz das Almas], ele faz questão de ficar comigo na rodoviária até eu entrar no ônibus e me dá atenção e carinho, diferente de antes, que eu tinha que implorar”.

“É preciso entender as individualidades de cada pessoa, respeitá-las. Criar um ambiente de confiança e compreensão onde se pode falar sobre qualquer assunto. A comunicação deve ser clara e contínua e a escuta deve ser sempre bilateral. Os pontos de divergência devem ser falados e é necessário tentar encontrar modos de lidar com eles. Enfim, ser honesto, respeitar, praticar a compreensão e a compaixão”, explica a especialista Suzzana.

Apesar de experiências ruins em relacionamentos, o importante é tentar e se curar.

“Eu já me relacionei com outras pessoas e hoje eu estou bem melhor em relação a isso”, diz Vanessa*.

“É o aqui e o agora, o futuro não se alinha às expectativas durante o processo, mas é importante ser honesto”, diz Elias, sugerindo o que é inevitável: encarar a jornada, através da cura emocional.

*Nome da fonte foi preservado nesta matéria

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Tags:

Geração Z responsabilidade afetiva

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