RESISTÊNCIA
Povo de santo comemora 20 anos de caminhada pela paz
Caminhada pelo fim da violência e da intolerância religiosa e pela paz atrai religiosos e adeptos das religiões de matriz africana às ruas
Por Gabriel Vintina*
Hoje, dia 15 de novembro, enquanto o Brasil celebra a Proclamação da República, o bairro do Engenho Velho da Federação é palco de um ato simbólico e de resistência. Há 20 anos, a Caminhada pelo fim da violência e da intolerância religiosa e pela paz leva lideranças e adeptos das religiões de matriz africana às ruas. A concentração da caminhada acontece, às 14h, no final de linha, onde fica o busto em homenagem a Mãe Ruinhó
Com o tema “20 anos de Resistência, Luta e Fé: Contra o Racismo e o Ódio Religioso”, o movimento idealizado pela ialorixá Valnizia Bianch, líder espiritual do Terreiro do Cobre, integra o calendário de mobilizações do povo de santo, reunindo uma multidão vestida de branco, reafirmando a liberdade de culto e simboliza, também, um momento de integração dos praticantes das religiões de matriz africana.
“Me sinto tão feliz, quando olho para trás e vejo aquele tapete branco, todo mundo cantando feliz, cada um com sua oração, sua nação, seu segmento, sua fé. Dentro de suas casas, nos terreiros, cada um faz o seu Axé, manifesta o seu sagrado de sua forma. Mas ali, naquele momento, todos estão com o mesmo objetivo: reivindicar o respeito pela sua religião”, conta Mãe Val, 65 anos, liderança do Terreiro do Cobre há 37 anos.
A organização da caminhada tem início na semana que antecede a marcha, com um seminário para debates e proposições em prol da segurança e manutenção das instituições religiosas. Este ano, o seminário realizado no último sábado levantou questões sobre ‘Diálogo Inter-religioso e estratégias coletivas para o enfrentamento ao racismo religioso’.
O circuito de seminário e caminhada se encerra hoje, quando, após a finalização da marcha no busto de Mãe Runhó, que liderou o Terreiro Bogum, um amalá (comida votiva ao orixá Xangô) é servido no Terreiro do Cobre.
Motivação
Iniciada em 2004, a caminhada representa para muitos um ato de resistência. A marcha simboliza a prática de um direito conquistado no artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal do Brasil, que garante a todo cidadão o livre exercício de consciência e crença. “Não deveria ser necessário reivindicar algo que já é nosso direito. No entanto, tivemos que fazer isso”, explica a liderança do Terreiro do Cobre.
A caminhada em busca da paz reúne não apenas membros das religiões de matriz africana, mas também representantes de outras religiões, líderes comunitários e pessoas interessadas em manifestar seu apoio à luta contra a intolerância.
Padre Lázaro Muniz, pároco da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e coordenador da Comissão Arquidiocesana para o Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso, acompanha a caminhada há 10 anos. “Tem uma frase do teólogo Hans Küng, que diz que se não houver paz entre as religiões, não haverá paz no mundo. Essa caminhada é justamente para pedir o direito de viver, de sobreviver, o direito de cada um poder fazer o seu culto ser respeitado e valorizado”.
Para o pastor Joel Zeferino, a caminhada representa a luta pela garantia de direitos, mas, sobretudo, a oportunidade de integração. “A caminhada fala não apenas da questão da diversidade religiosa, mas da luta contra o racismo e contra o ódio religioso instalados no Brasil. Então integrar é mostrar à sociedade que é possível vencer o ódio e que é possível que a gente controle a intolerância não apenas na religião, mas na sociedade como um todo”, conta.
A marcha religiosa é um momento de conexão. “A caminhada fortalece nossas origens e representa nossa defesa contra a intolerância religiosa. Não temos muito apoio, então dependemos muito da ajuda mútua”, explica Valter Neves Nabuco, 87 anos, líder comunitário do Engenho Velho da Federação e Ogã do Terreiro da Casa Branca.
Contexto histórico
O surgimento da caminhada está diretamente ligado ao aumento de tensões religiosas na comunidade nos anos 2000, como explica a ebomi do Terreiro do Cobre Lindinalva Barbosa.
“Com a chegada das igrejas neopentecostais, que frequentemente adotavam atitudes hostis, houve casos de invasão e tentativas de conversão forçada, o que representava uma violência contra o direito garantido por lei de professar nossa fé. Nesse contexto, ações de resistência se intensificaram e o movimento contra a intolerância religiosa ganhou força”, explica.
A ideia da caminhada surge a partir da conversa entre a ialorixá Valnizia Bianch, a ebomi Telinha de Iemanjá (in memoriam), também do Terreiro do Cobre, e Makota Valdina Pinto (in memoriam), na época do Terreiro Tanuri Junsara.
"Juntas, perceberam que precisavam fazer algo para mostrar nossa resistência e nosso direito de existir. E foi assim que nasceu essa caminhada, que sempre foi pensada como uma resposta à intolerância e ao racismo", conta Maria Angélica Pinto, Nengwa Vulasese, liderança do Terreiro do Nzo Onimboyá, irmã de Valdina.
Mãe Valnizia percorreu o bairro falando com lideranças da comunidade, com os filhos de santo e outros terreiros. “Nossa primeira caminhada foi simples. Devíamos ser uma dúzia e meia, talvez duas dúzias de pessoas batendo palma e cantando. As pessoas ficaram surpresas, pois nunca tinham visto algo assim – o Candomblé nas ruas”, relembra a ialorixá.
No segundo ano, o movimento cresceu. “Graças à caminhada, as comunidades de terreiro conseguiram chamar a atenção de lideranças políticas. Fomos até Brasília e entregamos um documento pedindo ao governo federal que interviesse diante das ameaças à religião”, conta.
Com o passar dos anos, a mobilização tomou uma proporção maior. A visibilidade alcançada ajudou a comunidade a conquistar respeito. “Hoje, certos tipos de discriminação já são passíveis de processo e prisão”, explica Mãe Val, reforçando o papel da caminhada em transformar o cenário de preconceito.
Futuro
Embora a caminhada seja uma manifestação grandiosa de fé e união, sua realização enfrenta dificuldades. Os recursos são limitados e a comunidade se mobiliza para arrecadar fundos por meio de rifas e vaquinhas. Os custos com estrutura, alimentação e som são os maiores.
Neste cenário, Lindinalva Barbosa conta que o trabalho voluntário da comunidade é essencial para a realização da caminhada. “É um desafio enorme conseguir o que precisamos, mas não desistimos. As rifas que fazemos, por exemplo, ajudam muito, mas ainda não são suficientes,” diz. Para ela, o reconhecimento da caminhada como um evento cultural e religioso importante para Salvador traria mais visibilidade e recursos, garantindo a continuidade.
Para Mãe Valnizia, a falta de apoio financeiro também reflete uma resistência institucional à valorização das religiões afro-brasileiras. “Apesar das dificuldades, estamos aqui, e cada vez mais fortes”, afirma.
Esse olhar para o futuro revela o desejo de ver a caminhada crescer ainda mais em importância e alcance. Lindinalva comenta que seria uma conquista imensa poder realizar o evento com a estrutura adequada e oferecer segurança para os participantes.
"Já conseguimos muitas vitórias nesses 20 anos, mas ainda há um longo caminho. O nosso sonho é que, com o tempo, possamos fazer essa caminhada com paz e dignidade, sem depender de tantas lutas financeiras e preocupações com a sobrevivência do evento".
Na visão das lideranças, o futuro da marcha depende não apenas dos esforços internos, mas também de um novo entendimento da sociedade e das autoridades sobre a importância de apoiar e preservar essa manifestação cultural e religiosa.
A esperança é que, com o reconhecimento da caminhada, o movimento possa fortalecer sua mensagem de resistência e paz, ganhando ainda mais força nas próximas gerações.
“Para os próximos anos, espero que não precisemos mais reivindicar o respeito, que já é um direito nosso. E sim só comemorar essa troca de energia tão bonita que acontece todos anos entre as pessoas que fazem essa ato acontecer. Só festejar o nosso sagrado”, finaliza Mãe Valnizia.
*Sob a supervisão da editora Meire Oliveira
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