MATRIZ AFRICANA
Povo do axé celebra 20 anos da caminhada pela paz e contra a intolerância religiosa
Criado no Engenho Velho da Federação em 2004, evento é marco em defesa da liberdade de crença
Por Gabriel Vintina*
As ruas do Engenho Velho da Federação, em Salvador, se encheram de fé, resistência e celebração, ontem, durante a 20ª Caminhada pelo Fim da Violência e do Ódio Religioso. O evento reuniu praticantes das religiões de matriz africana e simpatizantes da causa, reafirmando a luta contra o preconceito e a intolerância. Desde sua criação, em 2004, a caminhada cresceu em visibilidade e se tornou um marco na defesa da liberdade religiosa e na promoção do respeito à diversidade cultural e de fé.
A concentração começou às 14h no busto de Mãe Runhó, local de forte simbolismo ancestral, e seguiu em uma caminhada que passou por diversos terreiros da região, como o Ode Mirim, Gantois e Casa Oxumarê, antes de retornar ao busto de Mãe Runhó.
Organizada pelos terreiros do bairro, a caminhada nasceu como resposta às perseguições sofridas pelas religiões de matriz africana, em especial por ações de igrejas neopentecostais. Este ano, o tema escolhido foi “Resistência e Fé contra o Racismo e o Ódio Religioso”, que reafirma a importância da iniciativa em tempos de crescente discriminação.
Mãe Valnizia Bianch, ialorixá do Terreiro do Cobre e uma das idealizadoras da caminhada, reflete sobre as duas décadas de existência do evento e os desafios superados. “Quando os nossos santos vieram da senzala, eles resistiram. Chicoteados, escravizados, mas resistiram. Hoje, livres, continuamos essa luta. Estamos aqui para reivindicar o que já é nosso e está na Constituição. Não é fácil, mas a resistência é parte de quem somos”.
Para ela, a caminhada vai além do protesto, é uma troca de energia e celebração do sagrado. “A rua é nosso templo, nosso espaço de luta e fé. Cada passo que damos é carregado da força dos nossos ancestrais”, acrescentou.
Racismo estrutural
A intolerância enfrentada pelas religiões de matriz africana é, para muitos participantes da caminhada, uma manifestação clara de racismo estrutural. A professora aposentada e precursora do Movimento Negro Unificado na Bahia, Ana Célia da Silva, que frequenta a caminhada desde sua primeira edição, destaca que não se trata apenas de intolerância, “É racismo. Nós, que temos uma religião ancestral e majoritariamente negra, somos demonizados. É uma tentativa de apagar nossa história e cultura”.
Para Jaciara Ribeiro, ialorixá do Terreiro Axé Abassá de Ogum, estar presente na caminhada é essencial. “Demarcamos território com nossos corpos. Em um país onde as violências aumentam, ocupar as ruas é vital para mostrar que estamos vivos, fortes e unidos. O terreiro sustenta essa luta, mesmo com algumas parcerias do governo. É o nosso espaço de resistência”.
Jaciara também destaca a conexão espiritual que fortalece o evento. “Saímos da Praça Mãe Runhó, um lugar carregado de ancestralidade. Estamos protegidos por nossos orixás e antepassados, que nos guiaram em momentos difíceis”.
Este ano, a caminhada foi marcada pela inauguração do busto requalificado de Mãe Runhó, figura histórica e de grande significado espiritual para a comunidade. A Fundação Gregório de Matos (FGM) conduziu o trabalho de restauração, aproveitando o evento para devolver o monumento à comunidade, revitalizado.
Chicco Assis, diretor de Patrimônio e Equipamentos Culturais da FGM, explicou a importância do projeto. “Requalificar o busto de Mãe Runhó é um ato de valorização do patrimônio cultural e religioso do povo negro e do povo de santo. Escolhemos a caminhada para entregar a obra porque ela simboliza o mesmo espírito de resistência e união que este evento representa há 20 anos”.
Segundo Chicco, o trabalho reflete o compromisso da FGM com a preservação da memória coletiva de Salvador. “É mais do que uma obra física, é um gesto de reconhecimento da importância histórica e cultural dessas lideranças religiosas. Restaurar esses monumentos é fortalecer o respeito e combater o racismo religioso”, disse o diretor.
Ato de resistência
A caminhada também é um momento de união comunitária. Para Valter Neves Nabuco, ogã do Terreiro da Casa Branca e líder comunitário no Engenho Velho, a força do evento está na perseverança. “Participo desde o início, e é gratificante ver que estamos aqui, ano após ano, mostrando nossa força. A caminhada é vida, é energia. Estamos no universo, e o universo nos vê”.
Mesmo com desafios, a caminhada segue firme. Para Marta Zulu, musicista, que retorna ao evento após alguns anos, a emoção é palpável. “Nasci aqui e participar da caminhada é relembrar minhas raízes. O candomblé é muito desrespeitado, mas nunca deixaremos de lutar. Nossa religião é amor, conexão e força. Respeito é o que pedimos, e seguiremos em busca disso”.
Além de ser um ato de resistência, a caminhada também celebra a riqueza cultural e espiritual das religiões afro-brasileiras. Cantos, danças e rezas ecoam pelas ruas, conectando os participantes e renovando suas energias. “Não é só luta, é também celebração. Mostramos ao mundo nossa beleza e fé”, pontua Valnizia.
A caminhada mobiliza não apenas moradores de Salvador, mas também participantes de outras cidades. “É um evento que une, que conecta pessoas de diferentes lugares em torno de um objetivo comum: acabar com o ódio religioso e construir um futuro de respeito e diversidade”, acrescenta Ana Célia.
Enquanto a 20ª edição da caminhada é celebrada, os desafios permanecem. Os participantes reconhecem que, embora tenha havido avanços, a luta está longe de acabar. “Cada ataque que sofremos é uma tentativa de nos silenciar, mas nossa força vem da nossa ancestralidade. E não vamos parar”, afirma Jaciara.
A caminhada deste ano, como em todas as outras edições, deixa um recado claro: a resistência continua. Nas palavras de Valter Neves, “Estamos aqui, e continuaremos aqui. Esse é o nosso espaço, nossa vida, nossa fé”.
*Sob a supervisão do jornalista Luiz Lasserre
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