SAÚDE
Protocolos rigorosos dão segurança à realização de transplantes no país
Caso de contaminação no Rio de Janeiro liga alerta, mas comunidade médica vê erro como uma rara exceção
Por Priscila Dórea
Com protocolos que envolvem uma série de medidas rigorosas que avaliam de forma detalhada doadores e órgãos, o Sistema Único de Saúde (SUS) e as centrais de transplante têm garantido transplantes saudáveis não só na Bahia, mas em todo o país nas últimas décadas. Com análises tão meticulosas, o choque da comunidade médica foi imediato com o acontecido no Rio de Janeiro: um laboratório privado e terceirizado liberou a doação de órgãos com o vírus do HIV, contaminando seis pacientes.
“Foi uma situação esdrúxula, lamentável e isolada. As investigações têm mostrado que não foi uma falha técnica, mas criminal, e as pessoas precisam entender isso, principalmente as que estão na fila de transplante. Continuem confiando no sistema de saúde e nos seus profissionais, todos estão aptos para garantir a segurança e a qualidade de todo processo”, afirma a coordenadora de educação e qualidade do Programa de Transplante do Estado da Bahia, América Carolina Brandão de Melo Sodré.
Todo processo de doação de órgãos no Brasil é de responsabilidade exclusiva do Sistema Nacional e Centrais Estaduais de Transplante. “Quando entramos no campo da doação de órgãos no país, mesmo o paciente estando na rede privada de saúde, quem cuida do processo é o SUS”, afirma o coordenador da Coordenação do Sistema de Transplantes da Bahia (COSET), Eraldo Moura. É um processo já muito bem normatizado, onde todo o histórico clínico do doador é avaliado para identificar doenças prévias e riscos de transmissão.
Segurança
São feitos exames sorológicos - que aqui são realizados pela Fundação de Hematologia e Hemoterapia da Bahia (Hemoba) e pelo Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen) -, para verificar se o doador possui alguma doença que impede ou oferece algum risco que impeça o transplante, como HIV e HTLV (Tipo 1 e 2), por exemplo. “São exames que fazemos, inclusive, duas vezes, com testes diferentes, mesmo que o primeiro dê negativo, buscando justamente prevenir a transmissão de doenças infectocontagiosas”, afirma Eraldo.
E Tereza Suellen Lima Santos (34) conhece bem esses protocolos. Bacharel em direito aposentada por invalidez, Tereza, que está entre os 1.979 pacientes na fila de transplante de rim na Bahia, descobriu sua insuficiência renal crônica aos 17 anos, faz hemodiálise há mais de nove e chegou a fazer transplante de rim, mas uma perfuração numa artéria do órgão transplantado durante uma biópsia a fez perder o enxerto.
De volta à fila de transplante, ela se viu revoltada com o descaso por trás do caso carioca. “Estou na fila há mais de um ano e achei um completo absurdo o que aconteceu. É uma situação inadmissível e desesperadora, principalmente para quem está na fila esperando sua vez. Transplante é algo muito sério”, aponta Tereza, ressaltando ainda o quanto episódios assim não devem abalar a decisão de doadores e futuros receptores. “Sempre diga ‘sim’ à doação de órgãos, avise a suas famílias. Você está dando a outra pessoa a oportunidade de uma vida nova”, pede.
Junto aos pacientes à espera de um novo rim, a fila de transplante na Bahia conta ainda com 39 em busca de fígado e 1.718 esperando por córneas, totalizando 3.736 pacientes.
Compatibilidade
Após os exames sorológicos e a autorização da família para que os órgãos sejam doados, é feita então a avaliação de compatibilidade genética, que tem como objetivo reduzir a chance de rejeição do novo órgão no corpo do paciente. Para isso é preciso uma amostra de sangue, que a Central Estadual de Transplante envia para os laboratórios do Hospital das Clínicas ou do Grupo de Apoio a Crianças com Câncer (GACC), os responsáveis pela avaliação no estado.
O laboratório faz então a tipificação dessa amostra de sangue, que ao ser jogado no sistema, gera um ranking dos prováveis receptores compatíveis com esse doador na lista de transplante. “Realizamos então um segundo teste de compatibilidade, uma simulação in vitro do processo de doação propriamente dito, uma citometria de fluxo, que é uma técnica sensível e específica que nos permite analisar essa compatibilidade a fundo a partir do material já coletado anteriormente dos pacientes que estão no sistema de doação, e que está armazenado em nossa soroteca”, explica a responsável técnica do Centro de Diagnóstico (CDG) do GACC, Tâmara Peixinho.
Além do histórico clínico, exames sorológicos para doenças infectocontagiosas (inclusive Covid-19) e a avaliação de compatibilidade genética, outros exames complementares podem ser feitos, como uma avaliação da condição da pele, por exemplo. E toda essa documentação é organizada e arquivada. “Cópias são encaminhadas junto a cada órgão doado, para que as equipes de transplante façam uma nova checagem em tudo antes da operação. Com o transplante feito, esse receptor continua sendo acompanhado pelo resto da vida pelo sistema”, explica América Carolina, do Programa de Transplante do Estado.
Alerta
Transplantada de rins e pâncreas, a aposentada Patrícia Calheiros conhece bem a eficiência do sistema de transplante, e aponta que o caso do Rio de Janeiro deve servir de alerta para que os laboratórios continuem com os cuidados rígidos, mas que também os reforcem. “E é muito importante que falemos sobre o que aconteceu e sobre tudo que é feito para garantir que isso não ocorra mais uma vez. Não podemos deixar que esse absurdo afete o sistema de doação, confio muito no sistema e não quero ouvir esse tipo de notícia”, afirma Patrícia, uma das criadoras do Projeto Amor & Gratidão (@amoregratidao27), que fala sobre a importância da doação em igrejas, faculdades e empresas.
Lado a lado com ela na criação do projeto está o transplantado de rim Silvio Roberto Pereira, que aponta que o receio das pessoas na fila do transplante é esperado diante dessa situação. “Mas acredito que na Bahia algo como isso é quase impossível de acontecer. Os laboratórios envolvidos nesses testes e exames aqui no estado estão instalados em instituições sérias que jamais cometeriam um crime desses. Eu, como um receptor de órgão e grato a essa família, fico triste porque a doação realmente transforma a vida não só do paciente, mas também a vida das famílias”, afirma.
Salva por um transplante em 2023, a assistente social Taís Luciana Oliveira Nunes de Moraes Cerqueira, que descobriu de forma repentina, “eu não sentia dor alguma”, que tinha cirrose hepática e câncer do fígado, aponta que as campanhas de conscientização deveriam ser reforçadas mais do que nunca. “Notícias assim podem deixar as pessoas muito abaladas. Então é muito importante que se explique bem como o processo funciona e o quanto é essencial avisar as famílias o seu desejo de ser doador. Isso salva a vida de quem, assim como eu, estava em uma sobrevida e ganha uma nova vida”, afirma.
Sistema simplifica processo de autorização para doações
Com o objetivo de simplificar o processo de autorização das pessoas que desejam ser doadoras de órgãos, o Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal (CNB/CF) e a Coordenação-Geral do Sistema Nacional de Transplantes (CGSNT) desenvolveram o sistema de Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (AEDO). Regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a AEDO faz parte das ações da campanha “Um Só Coração: seja vida na vida de alguém” do CNJ e permite que o futuro doador registre em cartório o seu desejo.
De acordo com a Lei nº 9.434/2007, que regulamenta a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo para fins de transplante e tratamento, a autorização para a doação de órgãos deve ser feita por um parente ou cônjuge maior de idade que deve, claro, estar ciente da intenção da pessoa em doar seus órgãos e/ou tecidos. Com a AEDO, esta manifestação de vontade fica registrada em uma base de dados que pode ser acessada por profissionais da saúde, que terão em mãos a comprovação do desejo do falecido.
Para emitir uma AEDO, o interessado deve preencher um formulário no site www.aedo.org.br, onde além de informações básicas como nome, contato e endereço completos, a pessoa deve informar quais órgãos deseja doar - coração, córneas, fígado, intestino, medula, músculo esquelético, pâncreas, pele, pulmão, rins e valva -, e ao final irá escolher em qual cartório deseja fazer sua solicitação. Em seguida, o tabelião agenda uma videoconferência para identificar o interessado e coletar a sua manifestação de vontade.
Por fim, o solicitante e o notário assinam digitalmente a AEDO, que fica disponível para consulta no Sistema Nacional de Transplantes 24 horas por dia, em qualquer dispositivo com acesso à internet. A emissão da AEDO é gratuita.
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