GENTRIFICAÇÃO
Santo Antônio Além do Carmo: o preço de virar moda em Salvador
Sobrados estão à venda e valores milionários chamam atenção

Por Jair Mendonça Jr

O bairro do Santo Antônio Além do Carmo, no Centro Histórico de Salvador, caminha a passos largos para concretizar o processo de gentrificação: a substituição dos antigos moradores por residentes de maior renda, por conta da crescente valorização imobiliária e turística de um bairro.
É uma coisa absurda, e não tem uma pessoa que tome a frente disso
A equipe de reportagem do A TARDE percorreu todo o bairro e encontrou dificuldades para localizar moradores antigos. Na principal via, a rua Direita, em um trecho de 100 metros, pelo menos 10 placas de “vende-se” ou “aluga-se” estão fixadas nas fachadas dos sobrados.

Segundo especialistas, o fenômeno da gentrificação se manifesta através de:
- Reforma e aquisição de casas/sobrados por estrangeiros e classes médias;
- Crescimento de bares, restaurantes e pousadas;
- Transformação de áreas residenciais em pontos comerciais;
- Mudança do perfil do bairro, que se torna mais voltado ao turismo e lazer.
A mudança no perfil do bairro é visível, segundo alguns moradores mais antigos. Manoel Nogueira, 73 anos, que nasceu no bairro, saiu e retornou em 2005, expressa um misto de resignação e apego ao comentar as transformações.

A tendência aqui é cada dia mais concretizar o processo de gentrificação
"Aqui é um bairro histórico e, assim como em qualquer lugar, depende do turista. Não tem pra onde correr em relação a essa mudança que você está vendo. A tendência aqui é cada dia mais concretizar o processo de gentrificação”, constatou Nogueira.
No entanto, essa "modernização" traz o custo da nostalgia. Manoel lamenta a perda da tranquilidade do passado, quando o bairro era predominantemente residencial e frequentado por "muitos moradores", incluindo figuras de autoridade e a presença de mercearias de família, hoje substituídas por novos empreendimentos.

Apesar da aceitação da nova dinâmica, a resistência de Manoel é um retrato da teimosia de quem viu o bairro mudar drasticamente, mas ainda encontra motivos para ficar. Ele se apega à baixa violência da região e à centralidade, optando por “ainda vou resistir um pouco”, mesmo com todos os percalços de uma vida que se equilibra entre o casarão histórico e o comércio pulsante.
O relato de Manoel sintetiza o desafio do bairro Santo Antônio Além do Carmo: garantir o desenvolvimento econômico sem apagar a memória e expulsar os habitantes que construíram a história e a alma do lugar.
Se Manoel Nogueira demonstra uma aceitação resignada da modernização, Miguel Carneiro, 68 anos, morador há 36 anos do Santo Antônio, revela uma visão mais crítica e um forte sentimento de invasão. Para ele, o aumento do turismo e do comércio se traduz em perda de qualidade de vida.

"Há 36 anos, quando eu me mudei para cá, a vida era mais tranquila. Não havia tanto barulho e falta de respeito para o bairro, porque os turistas não estão tão preocupados que aqui mora gente, não é só restaurante e vida noturna. E isso impacta a nossa vida", disse.
A preocupação de Miguel gira em torno do desrespeito gerado pela atividade turística, que transformou a tranquilidade residencial em "algazarra". No entanto, ao contrário de outros relatos que apontam o êxodo de vizinhos pela especulação imobiliária, Miguel afirma que seus vizinhos não se mudaram e que o problema principal é a desordem na rua.

Outro ponto que Miguel destaca é a situação dos flanelinhas, que cobram abusivamente pelo estacionamento, que é público, chegando a R$ 25. Para ele, essa situação reflete a falta de controle e a pouca atenção do poder público com a ordem local.
"É uma coisa absurda, e não tem uma pessoa que tome a frente disso”, desabafa Miguel.
O relato reforça a divisão interna do bairro, onde o avanço do turismo, embora traga divisas, é visto como um processo que prioriza o visitante e o lucro do comércio em detrimento do direito dos moradores ao sossego e à gestão da rua.
A permanência dos vizinhos sugere que, para alguns, a gentrificação de consumo e ruído está sendo mais evidente e perturbadora do que a gentrificação pelo preço do aluguel.
Enquanto a desordem do comércio incomoda, o fator que impulsiona o êxodo de muitas famílias é a especulação imobiliária. A moradora Márcia Fernandes, 60 anos, que vive no bairro há 40 anos, aponta diretamente para a diminuição da presença de famílias proprietárias de casas.
"Moradores antigos só têm por aqui (na rua Direta). No geral, Santo Antônio não tem mais moradores antigos, continuam sendo proprietários de algumas casas, mas eles não vivem mais aqui”, disse Márcia.
A pressão do mercado imobiliário se reflete diretamente no valor de sua própria casa, que está à venda. Ao descrever o imóvel (uma casa de dois andares com 4 quartos e 2 varandas), Márcia revela o preço exigido: "Um milhão e quatrocentos mil reais".
Esse valor ilustra a valorização exponencial do m² no Santo Antônio, tornando a permanência inacessível para novos moradores de baixa renda e, ao mesmo tempo, atraente demais para ser ignorada pelos proprietários mais antigos.
Identidade e memória

O Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Andreza Carvalho de Almeida, realizado em 2023 na Universidade Federal da Bahia (Ufba), faz uma investigação minuciosa sobre o bairro, com foco na relação entre identidade e memória.
No TCC, Andreza ressalta que o bairro é um marco histórico para a cidade de Salvador, sendo considerado o berço da construção da cidade. Ele faz parte da Cidade Alta e o local foi importante no sistema defensivo da cidade, destaca Andreza.
A pesquisa demonstrou a relação entre identidade e memória do bairro a partir da visão de alguns moradores, os quais reconhecem a importância dos lugares de memória para retratar os monumentos.
O estudo constatou que a memória individual dos moradores é essencial para a construção da identidade deles com o bairro. O sentimento de pertencimento e de se sentirem acolhidos por fazerem parte do bairro foi o mais destacado para os moradores entrevistados.
Um dos entrevistados demonstrou grande apreço pelo bairro, afirmando que seu sentimento é o de ter sido acolhido e ter a pretensão de viver ali até o fim de sua vida, pois “é um lugar ideal para se viver”.
Origem da gentrificação

Segundo Jolivaldo Freitas, escritor, jornalista e pesquisador, o processo de gentrificação do bairro, na verdade, teve início no século XVII. “Foi quando as aldeias daqui foram colocadas pra fora e as tabas (habitação dos indígenas) foram substituídas por casas de alvenaria”, relembra o pesquisador.
Sobre o processo atual, Jolivaldo explica que aconteceu primeiro em 1970. “Quem chegava aqui, em 1970, se encantava com a beleza. Via que as casas estavam abandonadas, mesmo já tombadas pelo Iphan, e com um preço relativamente baixo, e compravam”, disse.
Conforme Jolivaldo, nos anos 1980, o bairro deu início a uma transformação mais radical. “Foi quando os empreendedores decidiram transformar o bairro em um local de luxo. Surgiram as primeiras pousadas boutiques, os restaurantes de alta gastronomia, galeria de arte e etc”, ressalta.
O pesquisador e escritor finaliza pontuando que o processo de gentrificação, no Santo Antônio, tem dois lados: bom e ruim.
“O lado bom é que o bairro estava abandonado e foi revitalizado e, com isso, ficou mais seguro. O ruim é que moradores antigos se viram obrigados a vender, a princípio, a preços razoáveis. Depois viram o local ficar supervalorizado e perderam dinheiro. Exemplo disso é que atualmente uma casa simples custa em média um milhão de reais. Essa mesma casa, se fosse em outro lugar, custaria cerca de 200 mil”, compara.
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