SAÚDE
'A Covid-19 é uma doença sistêmica’, afirma pneumologista Jorge Pereira
Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, membro da Academia de Medicina da Bahia e presidente da Sociedade de Pneumologia da Bahia, o pneumologista Jorge Pereira falou com A TARDE sobre os desafios trazidos pela pandemia de Covid-19 e os sintomas duradouros da doença.
Quais os maiores desafios que a pandemia de Covid-19 trouxe para os profissionais da área de pneumologia?
Não só na pneumologia, porque o vírus penetra no nosso organismo pelo aparelho respiratório, mas com o passar do tempo o que se viu é que é uma doença sistêmica, a doença começa no aparelho respiratório, mas todos os órgãos e tecidos do organismo podem ser afetados, da pele ao fio de cabelo podem ser afetados. Então é uma doença multissistêmica. O desafio é que é uma doença desconhecida. O coronavírus é antigo, causava resfriado comum, num passado remoto, depois surgiu a Síndrome do Oriente Médio, até que chegou o Sars-CoV-2, em novembro do ano passado, que veio com características de pandemia e chegou de forma avassaladora, e agora estamos convivendo já com suas mutações, suas cepas mutantes.
Lidar com o desconhecido foi o grande desafio, porque exigiu não só o tratamento do indivíduo, do paciente individualmente, mas estruturar todo um sistema de saúde. É um vírus para o qual não tínhamos nenhum medicamento específico para usar, e o grande desafio era chegar a uma vacina, o que se conseguiu em tempo recorde, pois não havia na história da medicina uma quantidade tão grande de vacinas feitas num tempo tão curto. Nas doenças virais agudas, com características de epidemia e pandemia, você busca vacinas sobretudo, não deixa de pesquisar medicamentos para tratar a fase aguda, mas se concentra mais nas vacinas. Para algumas, a gente tem medicamento, que é o caso do H1N1, e depois a vacina anti-influenza foi ampliada para H1N1 e cepas semelhantes, mas para a Covid nós não temos medicação específica.
Atualmente, no que consiste o tratamento de um paciente com Covid-19, pensando desde os casos leves aos mais graves?
O que houve nesse período de negativo é que as pesquisas tiveram de andar muito depressa, com isso, nunca eu testemunhei um número tão grande de publicações sem nenhuma consistência, sem evidências suficientes, e até nas revistas de maior reputação foram publicados artigos que as vezes não passavam nem pelo conselho editorial. Esses artigos eram publicados e era como se tornassem verdade, porque eram difundidos, disseminados logo que eram publicados. Nós fazemos tratamento com base nas evidências dos estudos científicos e como esses estudos científicos são muito incompletos, até pela rapidez, pela celeridade com que se precisou fazer esses estudos, hoje nós temos poucas evidências sobre medicamentos que podem ser eficazes. Nós sabemos que existem quatro fases dessa doença e a primeira fase da fisiopatologia da doença é a da infecção viral, que tem início sem sintomas, a pessoa pode adquirir a doença e não ter sintomas, ou ter sintomas muito leves.
Existe a segunda fase que é a fase respiratória, que é dividida em A e B. Na fase A, existem algumas alterações de pneumonia viral, mas o paciente ainda não está com perda da oxigenação, ainda não está grave; depois vem a fase 2B, em que ele começa a ter queda de oxigenação e precisa de oxigênio. Depois vem a fase que chamamos de tempestade citocinérgica, que é uma fase de hiper inflamação, o organismo desencadeia uma reação inflamatória grave. Essa reação inflamatória é como se o organismo tivesse tentando conter a infecção, mas na verdade essa inflamação causa danos ao organismo, provocando oxigenação baixa e outros sintomas. Então vem a terceira fase propriamente dita, que é a fase com uma inflamação muito intensa, que leva o paciente para a UTI, precisando de respiração mecânica e etc.
Então, o que nós temos já de algumas evidências é que aqueles pacientes que estão com queda da oxigenação e com elevação de alguns indicadores do sangue, quando isso acontece é porque já estão sendo formados pequenos coágulos em alguns vasos do organismo, principalmente no pulmão, e é isso que leva à queda da oxigenação e à insuficiência respiratória, então para essa fase nós sabemos que usando medicação anticoagulante nós conseguimos melhorar o prognóstico do paciente. Da mesma forma, quando os pacientes estão com perda da oxigenação ou precisando de ventilação mecânica, eles se beneficiam do uso de corticoide. E nessa fase de inflamação existem alguns marcadores de resposta inflamatória, que são exames de sangue, então nós podemos usar alguns agentes que são ditos anti-inflamatórios, antiretrovirais específicos. Para isso, nós temos evidências, o que não temos é para os medicamentos ditos de fase inicial, que é o que se chama de tratamento precoce, no qual residem as maiores controvérsias. Tem muita gente abusando desses medicamentos e nós temos recebido pacientes que chegam com alterações no organismo resultantes do uso de medicamentos, o fígado, por exemplo, é um orgão que sofre muito, alguns até com hepatite medicamentosa.
Na sua avaliação, a circulação de fake news atrapalha a atuação dos médicos?
Hoje, a transmissão da informação é quase como se fosse uma pandemia de informações, essas informações exageradas, muitas vezes sem uma análise crítica, chegam à população que toma esses medicamentos inadvertidamente e muitos desses medicamentos vão fazer mal ao paciente. A questão mais difícil é você conseguir convencer o paciente que na fase 1 da doença, ou na fase 2 A, em que ele ainda está bem, sendo uma pessoa jovem sem comorbidades, que esse paciente poderia ficar sem medicação ou com o mínimo de medicações possível. O paciente diz “eu vou ficar em casa esperando que a doença fique grave para você me dar remédio?”. Tem uma pressão muito grande do paciente e dos familiares para tomar alguma medicação, mesmo medicações que não têm efeito nenhum sobre o vírus e sobre a doença, isso atrapalha muito a atuação dos médicos que procuram trabalhar com níveis de evidência. Se fosse medicações inócuas, mas não são, essa medicações causam problemas. Cada vez mais vemos pessoas chegando com suspeita de Covid que já estão tomando medicações, tem pessoas que estão tomando antiparasitário todos os dias há alguns meses, isso é um absurdo, é um medicamento para tomar dois, três dias. Isso está deixando os médicos em situação desconfortável, difícil. Nós sabemos que 85% dos pacientes que são jovens, sem comorbidades, o próprio sistema imune vai resolver a situação, só que a doença é traiçoeira, então se o paciente não é monitorado ele pode, de uma hora para a outra, evoluir para situação de maior gravidade, e o médico vai ser acusado de não ter medicado antes.
Considerando o campo da pneumologia, quais os achados mais importantes sobre a Covid-19 desde o início da pandemia até agora?
O principal equívoco que se tem usado de conduta é que a recomendação tem sido aliar a gravidade da doença a dois fatores: o primeiro é o nível de falta de ar e o segundo é que se tem quantificado o envolvimento pulmonar pela tomografia computadorizada. Eu tenho visto pacientes que já chegam com três tomografias do tórax, por alguns sintomas que poderiam ser de Covid. Está havendo um exagero, como se a tomografia pudesse servir para a triagem ou para distinguir se o paciente tem Covid ou não, se ele está mais grave ou não. Nesse método ocular que se utiliza, o radiologista estima que tem 25%, tem 50% ou tem 75% de comprometimento, é um método falho, que permite muitas variações, existem métodos mais precisos, como alguns softwares que podem fazer uma estimativa mais precisa. O médico que recebe esse laudo vai adotar uma conduta com o paciente baseado nisso. O mais importante para descobrir o nível da doença e a gravidade não é a tomografia, nem a falta de ar, temos visto vários pacientes que não têm falta de ar, não se queixam de falta de ar e quando medimos a oxigenação desse paciente, ela está lá embaixo. Então a melhor forma de monitorar o paciente e saber qual é o nível de gravidade é medindo a oximetria. Quando se mede a oximetria e fica monitorando, você vai saber o momento exato em que vai precisar fazer uma tomografia ou levar esse paciente para o hospital, a triagem tem de ser pela oximetria e não pela tomografia.
A lista de sintomas duradouros e sequelas associadas à Covid-19 parece aumentar a cada dia. Quais são as principais implicações na área da pneumologia?
Como na fase aguda, não só o efeito do vírus, mas também a resposta inflamatória, é sistêmica, pega vários órgãos, é de se esperar que quando o paciente sair da fase aguda, quer ele tenha se internado ou não, tenha precisado de UTI ou não, esse paciente poderá passar a conviver durante meses com a síndrome pós-covid. Essa síndrome pode ter inúmeras manifestações, e o que o paciente costuma dizer é “eu não voltei a ser o que era antes”. O estado de fadiga é muito comum, mas o paciente pode ter também dores musculares, dores articulares, uma sensação de fraqueza, e essa fraqueza é por falta de capacidade respiratória, porque alguns ficam com sequelas pulmonares, ou por dificuldade muscular. Uma manifestação muito importante é a sarcopenia, a perda de musculatura esquelética. O paciente perdendo massa muscular, ele fica com cansaço geral, com fadiga, mas ele fica também com dificuldade respiratória, porque a nossa respiração depende de músculo, depende do diafragma, dos intercostais, enfim, para respirarmos precisamos de atividade muscular. Não só eles, mas sobretudo os pacientes que passaram por situação de maior gravidade precisam de uma avaliação porque a sarcopenia pode ser revertida totalmente ou parcialmente mediante uma alimentação bem balanceada e um programa de fisioterapia respiratória e motora.
Alguns pacientes ficam com sequelas diretamente pulmonares, um padrão de restrição pulmonar gerado pela fibrose pulmonar que alguns pacientes desenvolvem. Isso pode ser avaliado com testes de função pulmonar, que servem para monitorar, ao longo de meses, como esse paciente ficou e acompanhar se está melhorando. Na área respiratória, especificamente, a avaliação é feita com prova de função pulmonar e tomografia do tórax. Hoje, vemos que a síndrome pós-covid começa a se manifestar em média depois de um mês depois dos sintomas de fase aguda terem desaparecido, mas os estudos têm chegado a seis meses de avaliação em busca de sequelas, que podem acontecer em vários órgãos. Talvez a situação mais crítica é que alguns pacientes ficam dependentes de oxigênio. Em muitos, a gente consegue fazer o desmame do oxigênio, vamos tirando aos poucos, e esse paciente entra num programa de reabilitação, faz fisioterapia, e até volta a fazer exercício físico com desenvoltura. Mas tem casos que o paciente desenvolve uma dependência, quando tira o oxigênio a oxigenação cai e ele não consegue sobreviver sem o uso do oxigênio.
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