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Com 450 mil partos anuais, parteiras são reconhecidas pelo Iphan

Ofício de 60 mil pessoas no país é considerado patrimônio imaterial

Publicado domingo, 26 de maio de 2024 às 06:00 h | Autor: Priscila Dórea
A enfermeira obstetra e parteira domiciliar Visiane Batista com Giovanna Samia
A enfermeira obstetra e parteira domiciliar Visiane Batista com Giovanna Samia -

Ajudando inúmeras vidas a nascerem, o ofício de parteira tradicional foi reconhecido, neste mês, como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo Iphan. Em todo o país, de acordo com o Ministério da Saúde, estima-se que existam cerca de 60 mil parteiras assistindo 450 mil partos por ano. “Ser parteira é ser uma estrela de luz que ilumina, com a ajuda do Grande Espírito, a mente e o coração da mulher que está parindo. Participar de algo assim é especial e não existem palavras para descrever”, afirma Dxony Fulni-õ, parteira tradicional da etnia Fulni-õ (Pernambuco), que já fez 253 partos.

A primeira experiência de Dxony com um parto foi aos 10 anos, quando ajudou a mãe a dar a lua ao seu irmão, mas ela também aprendeu com o pai, parteiro de animais, que lhe dizia: “Uma criança, assim como o bezerro, não deve ser apressada por nós pra nascer. Ela vem quando quer”.

Mas foi a experiência ruim no parto de seu primeiro filho que a fez parteira. “Ali eu entendi que a mulher precisa ser ouvida. A médica queria cesárea, mas eu disse não, mesmo ela insistindo. Cantei para meu bebê e repetia que aquela era a dor do amor. Pedi que os médicos observassem e meu bebê nasceu como deveria ter nascido”.

Ao longo dos anos ela já fez partos na Bahia, Recife, Minas Gerais, São Paulo e outros lugares, sempre indo para onde a chamam. Nessas idas e vindas, ela já ensinou o ofício e cruzou o caminho de muita gente, à exemplo da enfermeira obstetra e parteira domiciliar, Visiane Batista. Pesquisadora dos Saberes da Parteria Tradicional, foi em um curso de doula que Visiane abriu os olhos para o parto domiciliar, e se encantou pelo ofício quando conheceu Dona Francisquinha, parteira tradicional da reserva Kariri-Xocó (Acre).

Observar a sabedoria de parteiras como Dona Francisquinha, Dxony, Dona Prazeres, Dona Zefa da Guia e outras mais, motivou Visiane a seguir com essa missão. “É muito gratificante apoiar uma mulher na gestação: preparar, ouvir e acolher. Hoje, enquanto enfermeira, peço essa licença para usar o termo parteira com muita honra, respeito e reverência. Esse reconhecimento pelo Iphan é muito merecido, pois são saberes antigos que foram massacrados e desvalorizados por médicos que aprenderam com essas parteiras”, afirma.

Para a internacionalista Giovanna Samia Lopes, que teve Visiane como sua parteira, o título de Patrimônio coroa o saber dessas mulheres que navegam com instrumentos ancestrais no pré natal. “Elas conhecem pelo toque na barriga aquele bebê e, pela escuta da mãe, sabem amparar suas inseguranças, angústias, sentimentos e alegrias”, conta ela, que escolheu o parto domiciliar com uma parteira depois de muita pesquisa junto ao marido, que mostrou ambos “que o parto natural nada mais é do que a conexão pura com o bebê e a força de vida que o traria para meus braços como a natureza quis e me fez: uma mulher capaz de encarar a dor e a delícia do parir”, afirma Giovana.

Conhecimento essencial

O médico Aureo Augusto, que possui os títulos de Comendador da Ordem do Mérito Médico e de parteira (no feminino mesmo!), e introduziu na Bahia o parto domiciliar planejado e o de cócoras, aponta que “a ciência pede que a gente não se identifique com o que a gente está estudando, mas isso é um erro”. O conhecimento e a sensibilidade das parteiras, ele ressalta, são essenciais e incomparáveis. “Elas são uma instituição antiquíssima e necessária, e muitas não cobram por seu trabalho. São mulheres de uma dignidade e bondade incríveis, que perdem noites e se entregam para aquela criança nascer”, afirma.

Aureo conta que, dos muitos partos que acompanhou, nunca soube de uma infecção nos assistidos por parteiras, ao contrário dos hospitalares. Atuando há anos no Vale do Capão - não mais como parteira -, ele afirma ser um erro abdicar da presença das parteiras nos hospitais. “O parto domiciliar não é inimigo do hospitalar. As parteiras podem, como ninguém, dar o diagnóstico sobre qual o parto ideal e, se necessário, indicar o parto hospitalar. Nos dias de hoje muita gente diz: “Parir em casa, onde já viu?”. Ora, sempre se viu, desde que o mundo é mundo as mulheres parem em casa”, afirma o médico, categórico.

Um questionamento que a mãe, jornalista e escritora Fernanda Carvalho também ouviu. Ela e os irmãos nasceram de parto natural, mas as gerações seguintes optaram pela cesárea. Quando ela contou que queria parto natural, a mãe perguntou: Mas pra que isso? “Hoje a gente vive numa sociedade em que o natural, óbvio e simples precisa ser dito e repetido para que poucos ouçam. É triste, mas é a realidade, estamos caminhando em direção oposta às coisas naturais, saudáveis e que nos fazem bem. Parir de forma natural hoje é um ato de resistência”, afirma.

Aos 25 anos e grávida do primeiro filho, o universo conspirou para que Fernanda conhecesse Gerson de Barros Mascarenhas, um médico de 90 anos aposentado que possibilitou a ela, “por mais inacreditável que pareça, uma experiência extraordinária de parto natural sem anestesia”. Ela sentiu as contrações sabendo que o corpo podia recebê-las e como atuar em prol do nascimento. “Foi um momento lindo, sem sofrimento, gritos ou gemidos. Pari sorrindo, literalmente”, recorda ela, que publicou o livro “A Luz da Maternidade”, que relata nuances de seu parto e o que aprendeu com o médico.

Visão natural

Pupila de Aureo Augusto, a enfermeira e parteira domiciliar Natália de Andrade Souza, explica que a parteira traz segurança, experiência e uma visão muito mais natural do parto. “Parir é fisiológico, não uma doença, logo, não deve haver tanto medo e insegurança ao lidar com ele, fatores tão presentes no ambiente hospitalar. É uma honra ser parteira. Agradeço muito ao universo por ter me colocado nesse caminho e, mesmo que eu queira não ser, já foi, já sou. É minha cachaça e paixão. Não é fácil, mas é um prazer muito grande viver isso”, afirma.

Mestra em antropologia médica pela Universidade de Amsterdam e doutora em antropologia pela UFBA, Aischa Schut é doula desde 2013 e afirma que o avanço da tecnologia na área de obstetrícia traz benefícios, porém, o mal uso dessa tecnologia pode ter efeitos iatrogênicos: fazer mais mal do que bem. “Um exemplo é que o Brasil hoje é um dos líderes mundiais em cesáreas, fato que já se tornou uma questão de saúde pública. A taxa está em torno de 50%, mas existem maternidades com taxas acima de 80%, enquanto a OMS recomenda no máximo 15%”, explica Aischa, mãe de Noah (7), que nasceu em casa.

Nesse contexto, as parteiras, implicitamente, representam uma inversão dessa lógica “tecnocrata” e medicalocêntrico, argumenta Aischa, pois fazem uso limitado dessas tecnologias. “E esse reconhecimento dos seus conhecimentos e práticas abre espaço para pensarmos sobre o sentido e o manejo desse evento existencial, e possibilita o desenvolvimento de políticas públicas que as integrem ao sistema de saúde para trocas de conhecimento, e também para refletirmos sobre práticas inadequadas e racistas para, assim, melhorar esse índice tão essencial na saúde de um país”, salienta a antropóloga.

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