SAÚDE
Dez anos após o Zika, surto de microcefalia ainda traz desafios
Associação Amae atua em Salvador na atenção e apoio às pessoas e famílias afetadas pelo vírus da Zika

Por Priscila Dórea

Em novembro de 2015, o Ministério da Saúde (MS) declarou emergência nacional diante da explosão de casos de bebês nascidos com microcefalia: entre outubro daquele ano e maio de 2016, o Brasil registrou 1.434 casos de microcefalia. Era um surto sem precedentes, por isso a confirmação científica da relação entre o aumento de casos e o zika vírus – transmitido através da picada do mosquito Aedes aegypti – levou pesquisadores, profissionais de saúde e famílias afetadas a se mobilizarem.
Hoje, a Síndrome Congênita do Zika (SCZ) possui protocolos clínicos específicos, pensão vitalícia para as famílias, um sistema obrigatório de notificação e um amplo tratamento direcionado.
Em julho de 2015, o médico especialista em medicina fetal Manoel Sarno, professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), estava no Serviço de Medicina Fetal da Maternidade Climério de Oliveira quando percebeu algo fora do padrão: quatro fetos com microcefalia foram identificados em duas semanas – a média anual antes disso era de seis casos em um ano. Em comum, essas mães tinham episódios de erupção cutânea no início da gestação e, nas ultrassonografias, lesões cerebrais graves sugestivas de causa infecciosa.
“Esses achados me levaram a levantar a hipótese de que estávamos diante de um novo agente infeccioso com tropismo fetal. Enquanto os dados eram consolidados, outros grupos começaram a relatar padrões semelhantes em Pernambuco e na Paraíba, confirmando a dimensão do fenômeno. Poucos meses depois, o alerta se tornaria global. O Brasil foi pioneiro nesse reconhecimento, o que representou uma virada de paradigma para a ciência mundial: foi a primeira vez que um arbovírus foi estabelecido como teratógeno humano, capaz de causar malformações congênitas”, explica Manoel Sarno.
Dez anos depois, ele vê o episódio como um divisor de águas. “Mostrou o poder da observação clínica, da medicina fetal e o valor das redes de colaboração científica. Mostrou também que as grandes descobertas médicas podem nascer do olhar atento diante do inesperado”, afirma o médico.
Mãe de Mariana Paixão, de 9 anos – que tem SCZ –, Elaine Paixão recorda o medo, a angústia e o quanto se sentiu perdida quando os casos de microcefalia dispararam em 2015, enquanto exame após exame, descobria o diagnóstico da filha.
“A criança idealizada, sonhada, não era a que a gente iria receber. Foi tudo muito novo, tanto pra mim quanto para o pai dela. Na época, ninguém ainda sabia o que de fato estava acontecendo e quando a relação com o vírus Zika foi confirmada, muita coisa mudou. Algumas para melhor, outras nem tanto, pois receber todo o atendimento que ela precisa ainda é difícil, mas pelo menos conseguimos combater e aprender. Essa primeira geração, de 2015 e 2016, serviu de experiência para as próximas. Todos estavam perdidos no início, mas hoje já sabemos como cuidar e para onde encaminhar”, conta Elaine.
Médica pediatra e intensivista pediátrica pelo Hospital Martagão Gesteira, Mariana Oliveira Lessa de Assis, afirma que aquele momento ensinou ao Brasil a importância da vigilância integrada, da pesquisa rápida e da saúde pública e políticas sociais. “Ficou claro o papel fundamental da atenção básica, reabilitação e serviços especializados com equipe multidisciplinar para o desenvolvimento e melhor qualidade de vida das crianças afetadas. Outro ponto importante é a atenção à equidade. As famílias em vulnerabilidade social foram as que mais sofreram com a epidemia”, explica.
Prevenção
Descobrir a origem do surto foi essencial para a diminuição de casos e prevenção, mas para as famílias – sobretudo as mães – uma outra e importante vitória veio na forma de outras mães. “Duvido que alguém passe por essa experiência e não cresça como pessoa. A convivência com várias famílias, cada uma com sua demanda, nos transforma. Todos têm filhos especiais, muitas vezes com a mesma patologia, mas com dificuldades diferentes. E a gente se sente acolhe, divide os medos, angústias e experiência, e acaba se sentindo abraçado de verdade”, afirma Elaine.
Ela e Mariana frequentam a Abraço a Microcefalia (@abracoamicrocefalia), ONG criada em 2016 que presta diversos atendimentos para as crianças e suas famílias. E para a coordenadora da Abraço, a Andrea Morais, a descoberta da relação da Zika com a microcefalia foi fundamental para que as crianças tivessem acompanhamento especializado.
“Incluindo neurologia, fisioterapia, fonoaudiologia e outras áreas essenciais para o desenvolvimento e qualidade de vida, porém o Estado falha não ofertando esses atendimentos, e a Abraço, tenta de alguma maneira cumprir com este papel, mas sem recursos para mantermos as despesas fixas, reduzimos bastante os nossos atendimentos”, conta.
A ONG, que sobrevive de doações, têm 338 famílias associadas e atende cerca de 150 por mês. Entre os principais desafios está a continuidade do cuidado e à garantia de direitos.
Acesso
“Muitas famílias ainda enfrentam dificuldades no acesso a terapias, transporte adaptado, inclusão escolar e benefícios sociais. Além disso, as crianças estão crescendo, e com isso surgem novas demandas de saúde e reabilitação, exigindo políticas públicas que acompanhem essa fase da vida. Outro ponto importante é o cansaço físico e emocional das mães cuidadoras, que muitas vezes não têm rede de apoio nem oportunidades de trabalho, vivendo uma rotina de dedicação integral aos filhos”, explica Andrea.
Essa realidade desafiante foi o que fez Eulina Silva Farias fundar a Associação de Microcefalia com Acolhimento e Empatia (Amae) há cerca de cinco anos. Mãe do Deividy, de 9 anos, que tem SCZ, ao enfrentar os desafios do diagnóstico, ela percebeu o quanto as famílias estavam desamparadas, sem informação e sem políticas públicas adequadas. “O reconhecimento dessa relação foi um marco histórico para a saúde pública brasileira, mas também revelou as desigualdades do nosso país. A maioria das crianças nasceu em territórios de vulnerabilidade, e até hoje enfrentamos as consequências de uma epidemia que atingiu, principalmente, mulheres negras e pobres do Nordeste”, reflete ela.
Atualmente, cerca de 50 famílias são atendidas na Amae, que oferece acompanhamento psicossocial, orientações sobre direitos, articulação com serviços de saúde e assistência social, além de ações de convivência e fortalecimento familiar. E uma das associadas é a Márcia Nascimento, mãe da Raíssa, de 9 anos. “Dez anos depois, ainda tem muita coisa que essas crianças precisam. Tem criança com dor, com malformação, e ninguém olha pra isso. Teve médico que disse que a cirurgia da minha filha era estética, só porque ela não iria andar, ainda falta esse olhar humano”, desabafa.
E esse olhar humano a própria Márcia tem de sobra, sempre de braços e sorriso aberto para receber as outras mães que chegam da Amae. “Converso com elas sobre a vida, sobre os filhos. A gente ri, brinca, compartilha. É uma troca. Eu as ajudo, mas elas também me ajudam a seguir. Por isso a minha mensagem para as outras mães é: não fiquem sozinhas, vocês não estão sozinhas. Aqui tem outras mulheres que enfrentam desafios parecidos e estão dispostas a ajudar, a conversar e acolher”, garante.
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