ENTREVISTA
Especialista revela quais são as principais causas de cegueira
Expectativa é que número de pessoas com cegueira ou algum grau de deficiência visual dobre até 2050
Por Jane Fernandes
Pesquisa publicada pela revista científica The Lancet aponta que 61 milhões de pessoas estarão cegas e 474 milhões terão deficiência visual de moderada a severa em 2050. Supervisora da residência médica de Oftalmologia do Hospital Universitário Professor Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia (Hupes/Ufba), Mariluze Sardinha explica as principais doenças relacionadas à cegueira irreversível e destaca a importância de prevenir o agravamento dessas patologias.
RAIO-X
Chefe do Setor de Oculoplástica e Órbita da Residência Médica de Oftalmologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (FMB/Ufba), Mariluze Sardinha é doutora em Ciências Médicas pela USP Ribeirão Preto e supervisora da residência médica de Oftalmologia FMB/Ufba. Graduada na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, em sua trajetória tem atuado principalmente nos distúrbios funcionais e estéticos das pálpebras, doenças do sistema lacrimal e cavidade anoftálmica.
Estima-se que o número de pessoas com cegueira ou algum grau de deficiência visual dobre até 2050. Quais são as principais doenças que podem comprometer a visão de forma permanente? Tem havido aumento na incidência destas doenças?
As principais causas de cegueira de forma irreversível são glaucoma, retinopatia diabética, degeneração macular relacionada à idade, essas são as principais em pacientes adultos. Existe um aumento da incidência de degeneração relacionada à idade, justamente porque é uma doença que acomete o paciente idoso. A degeneração macular relacionada à idade hoje é a principal causa de perda de visão acima dos 50 anos, quando a pessoa está jovem não vai ter esse tipo de doença. A idade não vai ser o único fator, mas à medida que ele fica mais velho, ele tem mais risco de desenvolver a degeneração macular relacionada à idade.
O que caracteriza cada uma dessas doenças mais implicadas nas perdas irreversíveis?
O glaucoma hoje é considerado uma síndrome, porque não é uma única doença, e ela causa um dano irreversível no nervo óptico e isso leva à perda de visão. Normalmente, o paciente tem associado um aumento da pressão intraocular e tem como principal tratamento, o controle da pressão intraocular. É uma doença que não tem cura, mas que tem controle, normalmente é um controle com medicações, com o uso de colírio. Hoje se tem usado muito um tratamento à base de laser também, nos casos refratários, aqueles casos que não respondem bem aos tratamentos convencionais ou conservadores, com colírio e com laser, pode ser necessário cirurgia. A retinopatia diabética tem como princípio uma doença que deve ser prevenida, tem que começar pelo paciente diabético como um todo, tentar controlar, ao máximo, a glicemia desses pacientes, porque o paciente que tem uma glicemia elevada, que não tem um bom controle, ele vai desenvolver complicações como a retinopatia diabética num prazo menor. Mesmo aqueles que tenham um excelente controle, depois de um tempo de doença, em torno de 10 anos, pode ter algum grau de retinopatia diabética, mas os pacientes com um controle ruim podem ter antes e uma forma de doença mais grave. O que acontece na retinopatia diabética é uma vasculopatia, tem uma alteração nos vasos sanguíneos da retina que leva a sangramento dentro do olho, pode levar ao descolamento de retina e ao aumento da pressão ocular também, aí seria um glaucoma secundário que a gente chama glaucoma neovascular. A principal prevenção seria um bom controle glicêmico e avaliação oftalmológica periódica. Já a degeneração macular relacionada à idade tem alguns fatores predisponentes, tem o fator genético e a idade. Existem dois tipos de retinopatia relacionada à idade, uma é chamada de retinopatia úmida, na qual o paciente desenvolve uma anomalia vascular na retina e se formam membranas neovasculares, então são feitas injeções de medicações para inibir esses vasos anormais que se formam numa área específica da retina, que é chamada de mácula, normalmente esses pacientes apresentam uma baixa de visão no centro da visão, é como se tivesse uma mancha preta no centro da visão, então ele tem uma visão ruim porque onde ele consegue ter algum grau de visão é pela periferia da retina fora dessa área central da retina. A outra forma, que se torna mais grave, é a degeneração macular relacionada à idade seca, ela não tem essa formação de neovasos, então não responde ao tratamento com a medicação antiangiogênica, vai ocorrendo uma atrofia do tecido retiniano e nesses casos não tem nenhum tipo de tratamento ainda.
Qual o cenário do Brasil em relação ao diagnóstico e controle destas doenças? Onde estão os gargalos?
A grande dificuldade no Brasil quando a gente fala em sistema público de saúde diz respeito à demanda, que é muito grande, há uma dificuldade de encontrar médicos especialistas que façam o diagnóstico de forma precoce e consigam intervir de forma precoce. Com relação à tecnologia, disponibilidade de tratamento, isso não difere muito do restante do mundo, o que é feito aqui hoje é feito basicamente no restante do mundo. A grande dificuldade é que a nossa demanda de assistência pelo Sistema Único de Saúde é muito grande e há dificuldade de se ter acesso a médicos, porque aí já seriam especialistas, não seriam oftalmologistas gerais. Embora a gente não tenha estimativas, a gente não tenha uma estatística como os países europeus e os Estados Unidos, provavelmente o Brasil tem índices mais elevados, justamente por essa dificuldade e essa demora no diagnóstico, então a gente está pegando pacientes em casos mais avançados.
A população em geral dá atenção para a saúde ocular ou a falta desse entendimento também auxilia no atraso do diagnóstico?
Tem essa questão do paciente às vezes negligenciar o que está acontecendo com ele, por outro lado, também existe uma fase da doença muito silenciosa. O glaucoma, por exemplo, na grande maioria dos casos não vai ter dor, não vai ter inflamação no olho, é uma doença assintomática no início, então se o paciente for esperar ter algum sintoma, esperar perceber que está com perda de visão, a doença dele já vai estar muito avançada. Por isso é importante, principalmente a partir dos 40 anos, fazer uma avaliação oftalmológica anual com um oftalmologista geral, que vai medir a pressão ocular, vai fazer o exame do fundo do olho, para ver o aspecto do nervo óptico, e se já houver algum indício de glaucoma, associado com uma história familiar positiva, tudo que contribui para um diagnóstico de glaucoma, o médico vai intervir, vai começar o tratamento mais precoce. Já a degeneração macular relacionada à idade tem sintomas que surgem de uma forma mais inicial, aí o paciente começa a ver uma mancha, alguma coisa no campo de visão, porque no glaucoma, ele vai perdendo aos poucos, da periferia para o centro, na degeneração macular a perda é central, então chama mais a atenção do paciente. Claro que continua tendo dificuldade no acesso ou à medicação, pois até pouco tempo tinha que ter uma demanda judicial para iniciar o tratamento, então outros fatores contribuem para que esse paciente só inicie o tratamento já com a doença mais avançada. No caso da retinopatia diabética, o paciente também não vai ter sintoma de dor, nada disso, muitas vezes ele vai se adaptando àquela perda visual progressiva e quando vai procurar oftalmologista já tem uma doença na retina muito avançada, principalmente se é aquele paciente que não trata o diabetes, porque não foi diagnosticado ou porque negligencia o tratamento.
Segundo a Sociedade Brasileira de Oftalmologia, o Brasil tem cerca de 550 mil novos de catarata a cada ano. Qual a importância da catarata quando falamos na preservação da saúde ocular?
A catarata é a principal causa de cegueira reversível no mundo. Hoje é difícil a gente encontrar um paciente cego por catarata nos países desenvolvidos, mas aqui e na África ainda tem paciente com uma visão muito baixa por conta de uma catarata avançada. Catarata é um processo da senilidade, é um processo involucional, então todo o paciente numa determinada idade vai desenvolver catarata. A faixa etária média de aparecimento da catarata é de 60 anos, mas tem pessoas que têm catarata mais precoce, até 40 e poucos, 50 anos, ou que vai ter mais tardiamente, com 80, quase 90 anos, mas esses pacientes já têm algum grau de catarata, que é a turvação de uma lente que a gente nasce com ela: o cristalino. A catarata nada mais é do que a turvação, a opacidade do cristalino, então algum grau de catarata já vai ter, mas às vezes é uma catarata muito leve que permite que o paciente enxergue bem, então ele consegue retardar bastante a cirurgia. O tratamento da catarata é cirúrgico e tem uma reabilitação praticamente instantânea, coloca-se uma lente intraocular para substituir o cristalino que foi retirado e resolve-se o problema do paciente, se o problema for só a catarata. Hoje, se o paciente procura o médico e é diagnosticado com catarata existem vários serviços do SUS onde são feitas cirurgias de catarata de forma gratuita, além disso, nos interiores existem vários mutirões para cirurgia de catarata, então se tornou muito raro a gente encontrar um paciente com uma catarata muito avançada. Eu tenho 24 anos de oftalmologia e, na Residência, logo no início, a gente ainda encontrava paciente com catarata muito avançada, que a gente chama de catarata rubra, hoje praticamente não se vê mais isso, os pacientes são operados de uma forma mais precoce, o que é melhor porque a catarata mais inicial tem uma cirurgia mais tranquila, com menos riscos. A técnica feita pelo Sistema Único de Saúde é uma das técnicas mais modernas e as lentes que são colocadas nos olhos desses pacientes são lentes boas.
Parte da população tem receio de participar de mutirões para operar catarata por conta de notícias sobre pacientes que tiveram problemas. Há como prevenir intercorrências?
A questão é que qualquer cirurgia tem um risco de infecção. Segundo a Organização Mundial de Saúde, se eu não me engano, numa cirurgia eletiva, numa cirurgia limpa como é a cirurgia de catarata, gira em torno de 2% a 5% a cinco o risco de ter infecção, e essa infecção não necessariamente é contraída durante o ato cirúrgico. Precisa ver como é que esse paciente conduziu o pós-operatório, a higiene das mãos, o cuidado para usar o colírio, o uso dos colírios como foi indicado. Hoje já se usa, profilaticamente, colírios antes da cirurgia, para diminuir o risco de infecção, mas esse risco existe, não tem como assegurar 100% de que não vai ocorrer risco de infecção numa cirurgia. A incidência é muito baixa, considerando o número de cirurgias que são realizadas. Claro que a rotina não vai gerar notícias, a cirurgia que deu tudo certo não vai gerar notícias. Eventualmente acontece em um mutirão, não sei porque - pode ser questão da técnica ou do material que foi utilizado, até da esterilização - de ter um número um pouco maior de pacientes com essa contaminação, mas via de regra o risco é muito baixo. Se você for fazer um levantamento ao longo de um ano, de todas as cirurgias que foram realizadas em mutirões de catarata no Brasil e aqueles casos que evoluíram com infecção, esse é um número muito baixo.
Vivemos uma época hiper conectada, com mudança significativa nos estímulos e esforços visuais cotidianos. Quais desafios essa realidade trouxe para os profissionais da oftalmologia?
Um dos principais problemas com o uso excessivo de tela na vida adulta é porque o paciente fica com o olhar fixado por muito tempo, então ele vai começar a desenvolver sintomas de olho seco, porque para a gente lubrificar o olho precisa piscar, o paciente que está usando a tela por um tempo mais prolongado precisa parar um pouco, piscar bastante, olhar para a distância. Mas eu acho que o grande impacto desse uso excessivo de telas, que tem chamado atenção no mundo todo, é em relação às crianças. Esse uso excessivo da visão de perto tem aumentado muito o número de casos de miopia e de miopia elevadas entre as crianças porque não existe o estímulo visual para longe, ela fica ali sempre com essa visão de perto, quando antigamente se brincava e o tempo de assistir televisão era bem mais restrito. De qualquer forma, a televisão já é mais distante, hoje eles ficam naquelas telinhas de computador, de iPad ou de celular, telas menores que eles têm essa necessidade de manter mais perto e isso acaba comprometendo o desenvolvimento normal do globo ocular. Já existe um esforço para diminuir esses casos, não só controlando, orientando os pais e os cuidadores a essa redução do número de horas com o uso de telas, mas também com estratégias de tratamento, que pode ser o uso de colírios, uso de lentes de contato durante o sono para inibir a progressão dessa miopia, existem algumas estratégias já voltadas exatamente para esse público infantil.
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