SAÚDE
Hesitação vacinal: como antivacinas disseminam fake news da Covid-19
Desinformação e medo fazem com que muitos brasileiros não se vacinem e fiquem expostos à doença
Por Felipe Sena
O Brasil, que por décadas foi considerado símbolo global de exemplo em vacinação, viu este status despencar nos últimos anos, culminando, em 2021, na menor cobertura vacinal em um período de 20 anos.
Com relação às vacinas contra a Covid-19, não foi diferente: mesmo após o ápice da pandemia, em 2020, muitos brasileiros não tomaram nenhuma dose dos imunizantes. A relutância é incentivada especialmente através de grupos antivacinas nas redes sociais, que disseminam desinformação e fake news, seja por questões político-partidárias, ideológicas ou religiosas.
O fenômeno da hesitação vacinal pode ser descrito como a relutância ou recusa à vacinação, mesmo dispondo de vacinas.
Para Mateus Vilalva*, de 36 anos, enquanto a medicina e saúde pública “dependerem do governo, é de se desconfiar” das iniciativas para a vacinação em massa. Ele, que não tomou nenhuma dose de vacinas contra a Covid-19, afirma que a morte do irmão, aos 40 anos, após se imunizar contra a doença, também o levou a tomar a decisão.
Segundo Mateus, o irmão recebeu duas doses da vacina Pfizer, e depois disso, teve Acidente Vascular Cerebral (AVC) e problemas cardíacos.
“Foi atleta a vida toda e nunca teve nada. Passava por exames periódicos anualmente para competir. Comece a observar jovens que estão morrendo de ‘mal súbito’, sendo atletas”, argumenta.
A coordenadora do Programa Estadual de Imunizações (Divep) da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab), Vania Rebouças, rebate a alegação e destaca que, quando acontece uma morte súbita, é necessário investigação médica e não atribuí-la diretamente à vacina, que tem o objetivo principal de reduzir o número de quadros graves e óbitos.
“Se por exemplo, um idoso morre, alguns atribuem à vacina, sendo que essa pessoa já teria [algum problema de saúde]. Por isso, precisamos investigar qualquer evento supostamente atribuído à vacinação para que, de fato, possamos fazer associação causal ou não com a vacina”.
Segundo o estudo "Entendendo aqueles que não entendem: uma breve análise do movimento antivacina", dos médicos e pesquisadores Gregory Poland e Robert Jacobson, a origem de muitas das preocupações do movimento antivacina incluem a ideia de que os imunobiológicos são materiais ‘estranhos’ injetados no organismo de pessoas saudáveis. No entanto, a pesquisa demonstra que a falta de vacina causa diversos prejuízos à população mundial.
"A controvérsia e o alarme causados pelos grupos antivacinas têm um efeito prejudicial demonstrável nas taxas de cobertura vacinal. Isto, por sua vez, aumenta o sofrimento humano, aumenta os custos dos cuidados de saúde e consome recursos que seriam úteis para uma economia produtiva", destaca a conclusão do estudo.
Homens x Mulheres: quem mais resiste às vacinas?
Quando se trata dos homens, os números de não vacinados são mais alarmantes. Segundo dados de junho deste ano do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 11,2 milhões de brasileiros com mais de 5 anos de idade não se vacinaram contra a Covid-19 até o primeiro trimestre de 2023, o que corresponde a 5,6% do público alvo da imunização. Deste total, 6,3 milhões eram homens, 4,9 milhões mulheres.
Durante a reportagem, foram identificados vários grupos antivacinas no Facebook, e um deles é o que Mateus Vilalva participa, que tem mais de 2 mil membros que compartilham do mesmo pensamento. No grupo, são publicadas imagens com frases e vídeos de influenciadores digitais que disseminam falsas informações sobre a falta de eficácia da Covid-19, e falam de supostos estudos - que não contêm embasamento científico - que comprovariam suas teses. Falam também sobre gravações com falas retiradas de contexto e da suposta manipulação da imprensa em relação à eficácia das vacinas contra a Covid-19.
Uma pesquisa realizada neste ano pelo Conselho Nacional do Ministério Público, em conjunto com a Universidade Santo Amaro (Unisa), mostrou que, a partir de 3 mil entrevistas em todas as regiões do Brasil, um a cada cinco brasileiros afirmam já ter sentido medo de se vacinar ou desistiu de tomar a vacina após ler uma notícia negativa em plataformas digitais.
Esse é um dos casos de Letícia de Sá*, de 33 anos, que faz parte do mesmo grupo antivacina que Mateus. Ela contou que, por receio da vacina ter sido produzida de forma rápida, não tomou nenhuma dose da vacina. “Sempre fui contra desde quando começou, porque eles desenvolveram essa vacina de um modo muito rápido”, afirma. Ela contou ainda que, de sua família, também não se vacinaram um tio, uma tia, a irmã e o cunhado.
Assim como Letícia, Ana Rosa*, de 35 anos, que também faz parte do mesmo grupo antivacina, não se imunizou com nenhuma dose das vacinas pelo mesmo motivo.
“Desde o início eu já tinha decidido não tomar, pela pressa do governo em obrigar as pessoas a tomarem a vacina. Isso me deixou com uma pulga atrás da orelha. Eu, meu marido, meus pais, meu irmão, minha cunhada, nenhum de nós tomamos”, diz.
A diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Isabella Ballalai destaca que o antivacinismo é composto por grupos bem estruturados, feitos com a intenção de desinformar em um ambiente em que os integrantes “trocam postagens, falsos alertas, através da tecnologia, que podem causar medo da doença, do desconhecido”, principalmente em um contexto de pandemia.
“Uma população que não acredita que está em risco para essas doenças infecciosas preveníveis por vacina não se imuniza. Ou seja, ter a percepção de que talvez a vacina possa causar um evento adverso faz a pessoa concluir que é melhor não se vacinar”
Para Vania Rebouças, coordenadora do Divep, as notícias falsas influenciam a decisão das pessoas sobre a decisão de tomar ou não a vacina. “Quando se tem um fortalecimento de fake news, a população que ainda não se vacinou fica em dúvida sobre se vacinar”, pontua.
Outro motivo que para Vania Rebouças levou à baixa adesão à vacinação contra a Covid-19, mesmo após o ápice da pandemia, é o controle do cenário epidemiológico.
“A população tem uma falsa sensação de segurança e, por causa disso, temos os números da hesitação vacinal”, afirma. Além disso, segundo Vania, há um risco de reintroduzir mais casos de doenças na sociedade, como foi o caso da Poliomielite, que no final na década de 1980 teve alta adesão à vacinação no país, mas que depois de alguns anos teve o índice diminuído.
Com base em publicação nas redes sociais e "casos de pessoas próximas", Letícia teve ainda mais certeza de que não tomaria a vacina. “Tenho visto que depois que pessoas se vacinaram, tiveram problema de trombose e embolia pulmonar. Tiveram alguns conhecidos que tiveram ‘apagão’ ao volante”, relata.
Segundo o pneumologista Thiago Cerqueira, cientista de dados da Fiocruz Bahia e vencedor do prêmio Capes de melhor tese de doutorado sobre a eficácia das vacinas contra a Covid-19, estes 'argumentos' dos grupos antivacinas se chamam 'evidência anedótica', que é quando uma pessoa relata algum acontecimento em uma única pessoa, que não se traduz em evidência real e nem tem embasamento científico.
“No Brasil, cerca de 190 milhões de pessoas foram vacinadas, então é possível que existam casos de eventos mencionados que aconteceram após a vacinação e não por causa da vacinação”, explica o especialista.
Já que não se vacinou, como forma de ‘prevenção’, Letícia toma medicamentos e vitaminas, sem prescrição médica, que acredita imunizar contra doenças. Além disso, aponta a existência da proteína Spike em vacinas contra a Covid-19, como um dos pontos para não confiar na eficácia do imunizante.
De acordo com o imunologista Thiago Cerqueira, a proteína Spike está presente na superfície do SARS-CoV-2, vírus causador da Covid-19, e que ela é um dos melhores alvos para as vacinas.
“As vacinas, diferentemente do vírus, apenas contêm instruções de como produzir essa proteína (vacinas de RNA mensageiro ou vetor viral) ou contêm o vírus morto”, explica.
Consequências da falta de vacina contra a Covid-19
As vacinas da Covid-19 evitam problemas de saúde e doenças que podem acometer as pessoas em curto e longo prazo, como é o caso da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), que pode ser ocasionada tanto pela Covid-19 quanto pelo vírus da Influenza.
O imunologista Thiago Cerqueira ressalta ainda que a Covid-19 pode causar sintomas agudos após infecção, aumentando o “risco de diversas doenças, como infarto agudo do miocárdio, diabetes, dentre outros”,.
Vacinada, a pessoa reduz o risco de contrair a doença e também reduz os eventos associados à infecção, caso a pessoa tenha a doença mesmo após a vacinação.
Desinformação e fake news
Para Vania Rebouças, é necessário continuar a fortalecer os planos estratégicos de incentivo à vacinação feitos pelo governo junto às secretarias de saúde. No caso da Bahia, têm sido desenvolvidas políticas para atualização das cadernetas de vacinação, além de programas implantados para apoiar os municípios do estado, como a disponibilização de carros de vacinação em comunidades de difícil acesso. Além disso, cada macrorregião do estado possui um veículo específico.
Vania destaca também que é fundamental um plano de estratégia, em âmbito nacional, para combater as fake news e a desinformação, disseminadas pelos grupos antivacina.
“O combate às fake news faz parte das políticas, tanto do Governo do Estado quanto das secretarias municipais de saúde”, afirma.
O Ministério da Saúde, inclusive, tem canais para realizar este combate, como o ‘Saúde com Ciência’, de defesa das vacinas e combate à desinformação. Esse programa faz parte da estratégia para recuperar as altas coberturas vacinais do Brasil diante de um cenário de retrocesso.
Uma luta que vem de antes
A cobertura vacinal do Brasil teve picos em sua trajetória, que representou um reflexo de questões políticas e sociais de cada época. Se um dia foi considerado exemplo em vacinação, nem sempre foi assim.
Tudo se iniciou com a Revolta da Vacina, em 1904, no Rio de Janeiro, durante o governo do presidente Rodrigues Alves, quando o médico Oswaldo Cruz fez um projeto de vacinação em massa. Na época, a vacina era contra a varíola e gerou um levante de cinco dias, por falta de informação à população. Depois disso, a vacina tornou-se voluntária.
Em um salto, na década de 1980, o Brasil implementou diversas medidas para melhorar a vacinação, incluindo o fortalecimento do Programa Nacional de Imunizações (PNI), com amplas campanhas e criação de planos de ação para doenças específicas. Já em 1981, foi criado o Plano de Ação Contra o Sarampo.
Em 2020, quando se iniciou a pandemia da Covid-19, muitos episódios pró e contra vacina foram registrados.
De acordo com o cientista político Bruno Soller, a posição do governo que comandava o país na época, somada à desconfiança quanto à rapidez com que a vacina contra a Covid-19 foi criada, pode ter levado a uma queda vacinal no período e ainda hoje.
“Isso se liga com um aumento de vertentes religiosas. As pessoas ficam temerárias ao que pode ser essa vacina”, explica.
Para a presidente do SBIm, Isabella Ballalai, um dos fenômenos que dificultou que a informação sobre a importância da vacinação chegasse de forma compreensiva foi a infodemia, que significa o excesso de informação. “Isso confunde as pessoas e se torna um cenário de antivacinismo”, diz.
De acordo com o imunologista Thiago Cerqueira, as vacinas são muito confiáveis, sobretudo porque, para serem aprovadas, passam por diversos estudos clínicos [fase 1 a 3], e em seguida precisam ser aprovadas pelas agências reguladoras, como Anvisa, FDA e EMA.
“Além desses estudos, as vacinas contra Covid-19 [CoronaVac, AstraZeneca, Pfizer e Jassen] foram vastamente avaliadas no que chamamos de estudo de fase 4, que são estudos de efetividade”, ressalta.
Além dos quatro primeiros imunizantes contra a Covid-19, passou a ser disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), em junho deste ano, a nova vacina contra a Covid-19: Spykevax. Ela protege contra as cepas ômicron do vírus SARS-CoV-2, da subvariante XBB. Essa nova vacina é destinada, em primeiro momento, para crianças de 6 meses a 5 anos de idade e idosos a partir de 60 anos, entre outros grupos.
*Nome fictício
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