SAÚDE MENTAL
Hospitais psiquiatricos se reinventam, mas ainda estão longe do ideal
Com 14,6 milhões de habitantes, Bahia tem 197 leitos, número abaixo do preconizado pela OMS
Por Matheus Calmon
Uma jovem de 27 anos sofreu um surto e passou por uma crise de Síndrome do Pânico após ser assaltada. Ela nunca havia passado por problemas similares. A jovem chegou a ser levada a uma Unidade de Pronto Atendimento mas, devido o comportamento agitado, foi encaminhada ao Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, em Narandiba, na capital baiana.
Sua mãe, que mora na região da Chapada Diamantina, estava no local para visitar a filha. Esta havia sido sua primeira experiência com a unidade. "Esse contato, até então, foi muito bom. Foram muito atenciosos, passei por todos eles ali agora", contou a mulher, referindo-se aos atendimentos com psicólogo, psiquiatra e assistente social.
"Ela não estava querendo tomar remédio, batia aqui, nesse banco onde estamos. Agora está bem melhor, acabei de visitar ela". A expectativa era que a jovem tivesse alta nesta quarta-feira, 17. Apesar da relevância da unidade para a assistência em saúde da população baiana, seu fechamento chegou a ser discutido.
Hospitais estiveram à beira do fechamento
Em agosto de 2017, após pedido formulado conjuntamente pelo Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) e Defensoria Pública da União (DPU), a Justiça Federal determinou a continuidade do funcionamento das unidades no estado, além da suspensão dos descredenciamentos dos hospitais e a manutenção dos repasses de verbas.
A decisão teve início quando, à época, a Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab) anunciou que colocaria em prática a Política de Saúde Mental do Brasil, que prevê a redução de leitos psiquiátricos de longa permanência.
Segundo a Sesab, além do Juliano Moreira, que conta com 88 leitos, o estado tem em sua rede outros dois hospitais especializados em psiquiatria: o Hospital Especializado Mario Leal, também em Salvador, com 38 leitos, e o Lopes Rodrigues, em Feira de Santana, que conta com 70 leitos.
Orientação da OMS
Levando em consideração os 14,6 milhões de habitantes no estado, a quantidade de leitos disponibilizados vai de encontro ao preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que orienta 3 a 5 leitos para cada mil habitantes.
"No SUS, devido uma interpretação torpe, além da má intenção de alguns, os leitos são em muito menor número, o que preconiza a OMS. Na Bahia, o número de leitos é muito inferior ao que preconiza a OMS. Para alguns é importante acompanhar orientação contra Covid e etc, mas quando chega na psiquiatria o preconceito impera. Leito é uma tecnologia importante".
A avaliação é do dr. Lucas Alves Pereira, professor de psicofarmacologia, mestre em Medicina e Saúde Humana e diretor da Associação Psiquiátrica da Bahia (APB). A entidade, que tem mais de 50 anos, tem como objetivo promover o desenvolvimento da psiquiatria no estado por meio de eventos, cursos, palestras e outras atividades de atualização e capacitação para profissionais da área.
Os hospitais psiquiátricos, no início, eram chamados de asilos e eram conhecidos por tratamentos extremamente cruéis. À medida que a compreensão dos transtornos mentais evoluiu, os hospitais começaram a ser reformados, recebendo novos nomes e adotando práticas de tratamento mais humanizadas.
Segundo ele, o tema é coberto de conceitos prévios e entendimentos falhos, principalmente sobre a Lei 10.216 de 6 de abril de 2001, também conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, que instituiu um novo modelo de tratamento aos transtornos mentais no Brasil.
"O que a lei estipula é que o tratamento aos transtornos mentais deve ser completo e diversificado. As hospitalizações sem necessidade, que careciam de indicações técnicas, devem ser extinguidas. Mas ela não fala do fim das internações, isso é um erro de interpretação, está bem claro lá que em caso de falha das medidas de tratamento deve ser tratado de maneira intensiva em regime de internação".
Lucas afirma que, na prática, a lei trouxe a diminuição das hospitalizações exageradas e a promoção de um tratamento perfeito. "Hoje em Salvador tem vários hospitais privados. Quem tem plano de saúde vai ter acesso a um hospital com tratamento bastante eficiente. No SUS, devido uma interpretação torpe, além da má intenção de alguns, os leitos são em muito menor número".
Em substituição aos hospitais psiquiátricos, o Ministério da Saúde determinou, em 2002, a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) em todo o país. Os espaços servem para o acolhimento de pacientes com transtornos mentais, em tratamento não-hospitalar. Entretanto, segundo Lucas, atualmente não têm condições de substituir os hospitais.
Atualmente o psiquiatra vai lá, senta, atende os pacientes e vai para casa, e o paciente também. Então, ele veio para ser uma tecnologia complementar, para evitar internações, e não uma tecnologia substitutiva
"Esse modelo que centralizou tudo no CAPS, ambulatório, pacientes graves, tem sobrecarregado e tem perdido sua essência. Ele é o Centro de Atenção Psicossocial, é para aquele paciente que demanda assistência psiquiátrica, psicológica, para evitar internação, não para atendimento de transtornos comuns, como ansiedade, depressão, indivíduos que têm algum suporte".
Lucas sugere como solução que as orientações das grandes instituições de saúde, como a Organização Mundial da Saúde, sejam respeitadas, a existência de um projeto para criação de leitos psiquiátricos decentes, capacitação da equipe e melhoria da estrutura.
"Se a saúde se espelha no sistema de saúde privado, a gente vai dar um passo muito grande e, no final das contas, economizar, pois a cada dólar que se investe em saúde mental e prevenção, 4 retornam à sociedade. Sou totalmente à favor de investimento em saúde mental. Os países que fizeram isso diminuíram índice de suicídio, de afastamento do trabalho. Tem um retorno muito certo, não só em minha opinião, mas os dados internacionais reforçam".
No Hospital Lopes Rodrigues, atualmente a média é de 160 atendimentos por mês, com 30 internações. A gestora da unidade, Iraci Leite, afirma não ter dificuldades quanto às necessidades repassadas à Sesab. Ela lembra que a reforma psiquiátrica passou por vários caminhos e percorreu diferentes trajetórias.
"A tendência é mudar o perfil para que os Hospitais Gerais e os HPPs [Hospital de Pequeno Porte] atendam a questão de psiquiatria no que diz respeito a internamento e leito hospitalar. Essa mudança de perfil é para atender a Lei. A gente vem trabalhando no Lopes em cima disso", contou ela, listando mudanças que a unidade já viveu.
"A gente tinha ambulatórios, cuja competência é dos municípios. Nós descentralizamos. Temos várias atividades que fomos transferindo para competência dos municípios, qualificando, melhorando, conversando, sentando com secretário, levando aos espaços de discussão e transferindo esses pacientes".
"Hoje, nosso perfil mudou muito e atendemos muitos usuários de crack, álcool e outras drogas. Não somos especializados para tratamento desses casos. A comunidade em geral não separa isso, até por falta de conhecimento, acha que tratamos. Mas levando à crise, a gente recebe, estabiliza e libera", afirma a gestora.
Segundo ela, a maioria dos pacientes são reincidentes por, principalmente, não seguir o tratamento indicado. "Nossos pacientes aqui geralmente são 'com chip': vêm, saem, voltam às práticas lá fora, não faz atendimento com o CAPS e voltam de novo".
Psiquiatra, especialista pela ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria) e preceptora na residência da UNIFESP/EPM, a Dra. Danielle Admoni alerta que a psiquiatria é uma área da medicina e, assim como as outras, os pacientes podem precisar de atendimento diferenciado.
"A gente precisa pensar que as pessoas que os portadores de transtornos mentais também, eventualmente, vão precisar de atendimento mais intenso, que seria o hospital psiquiátrico. Então, sim, é fundamental que a gente mantenha ainda estes hospitais".
Ela alerta que o trabalho preventivo pode reduzir e até evitar que vários casos se agravem a ponto de demandar internação. "Aí sim a gente fala dos CAPS, que são os centros de atenção psicossocial, das unidades básicas de saúde, dos de convivência e várias outras coisas que se fosse uma rede articulada e que se funcionasse bem, a gente precisaria cada vez menos internar".
Os hospitais psiquiátricos não são lugares pra depositar aquela pessoa, como era feito até antes de 1970. É para um curto período de tratamento.
Danielle aponta que a desinstitucionalização e a reinserção social de pacientes com doenças mentais que foram internados em hospitais psiquiátricos por longos períodos é um processo complicado, mas deixar essas pessoas excluídas da sociedade não pode ser uma opção.
"Essa reinserção é muito difícil, porque a ideia realmente é jamais tirar essas pessoas do social. É estruturando a rede básica de saúde, os CAPS, centros de convivência, e pensar em programas sociais mesmo, para que essas pessoas possam pensar, achar algum trabalho, alguma atividade pra que elas possam realmente se reintegrar à sociedade".
Rede deficiente
Com essa rede ainda pouco estruturada, Danielle aponta que a manutenção dos hospitais se mostra, mais uma vez, fundamental. Ela avalia como falha a rede de sistema de saúde mental no Brasil.
"Precisaria estruturar o posto de saúde, precisa estruturar os CAPS para, então, estruturar os hospitais psiquiátricos, simplesmente fechar os leitos fica sem ter para onde mandar essas pessoas".
Segundo a Secretaria de Saúde da Bahia, os atendimentos feitos na rede seguem protocolos estabelecidos pelo Ministério da Saúde, além de seguirem condutas médicas. "As internações devem obedecer à Lei Federal 10.216 e só acontecer em último caso e pelo menor tempo possível de acordo com as necessidades do paciente".
Segundo a pasta, as unidades "prezam pelo bom atendimento ao paciente e seguem a legislação vigente, buscando sempre assegurar os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais".
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes