DIREITOS LEGAIS
Mês da Visibilidade Trans: atenção integral à saúde ainda é desafio
Especialistas comentam sobre os direitos e procedimentos cirúrgicos garantidos por Lei
Por Isabela Cardoso
Embora o Dia Nacional da Visibilidade Trans, no dia 29 de janeiro, tenha sido oficializado no Brasil em 2004, a população trans e travesti ainda busca ter a liberdade de ser quem é e ter os seus direitos reconhecidos em meio ao medo, à rejeição e ao preconceito, vivenciado nos dias atuais. Além disso, mesmo com o acesso à saúde garantido pela Constituição Federal a todos os brasileiros, este público ainda enfrenta desafios na falta de atenção integral à saúde.
A Portaria n. 2803/2013 do Ministério da Saúde (MS), pela Resolução n. 2265/2019 do Conselho Federal de Medicina (CFM) e também pelo Parecer Técnico 26/2021 da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), garante procedimentos cirúrgicos e acompanhamento profissional com psicologia e psiquiatria, tanto pelo SUS, quanto por planos de saúde.
Para realizar os procedimentos cirúrgicos, é necessário comprovar, pelo menos, dois anos de acompanhamento psicológico ou psiquiátrico. Além disso, a terapia é importante para a pessoa conseguir se entender enquanto transgênero e compreender o processo de autodescoberta.
De acordo com o advogado Nathan Lopes, caso haja uma negativa de prestação de um serviço de saúde, mesmo cumprindo os requisitos estabelecidos, o paciente pode entrar com uma ação judicial. Além disso, o advogado reitera ainda que também existem outros direitos que devem ser evidenciados.
“É possível citar a garantia de aposentadoria, adoção de crianças e adolescentes; registro de filiação de dupla paternidade/maternidade, procedimentos reprodutivos e a realização de procedimentos clínicos e cirúrgicos de acordo com a identidade autopercebida”, disse.
A otorrinolaringologista, Dra. Erica Campos, realiza cirurgia de glotoplastia em Salvador, que consiste no processo de modificação da voz. De acordo com a médica, o CFM recomenda que as pessoas trans e travestis tenham, pelo menos, um ano de acompanhamento com o psicólogo e psiquiatra antes de realizar as cirurgias de modificação, tanto de voz, quanto corporais.
“Eu procuro seguir essa recomendação do CFM, mesmo no meu consultório privado, porque eu entendo que a cirurgia vocal modifica muito a vida da pessoa de uma forma geral. Então, eu acho que tem que ser uma decisão muito bem pensada, uma decisão muito bem tomada, porque a reversibilidade dessa cirurgia é muito ruim. Existem técnicas que a gente pode aplicar para tentar reverter, mas a mudança da voz dificilmente conseguimos trazer aquela voz para o seu estado original”, explicou Dra. Erica.
A glotopastia é um dos procedimentos bastante procurado por mulheres trans, sendo minimamente invasiva, feita por dentro da boca para modificar as cordas vocais, sem nenhum corte no pescoço. Essa cirurgia pode ser particular, com valores em torno de R$ 20 mil, como também pelo SUS.
“Essa cirurgia muda muito mais do que vozes, muda a vida das pessoas, porque a voz é como a gente se apresenta. As cirurgias corporais são muito desejadas, muito sonhadas, mas eu percebo que a cirurgia da voz dá a essas pessoas possibilidades que antes elas poderiam não ter, por querer se proteger de constrangimento, querer se proteger de transfobia. É totalmente compreensível”, comentou a médica.
As cirurgias do processo transexualizador, que estão garantidas pela portaria no Ministério da Saúde, são: retirada das mamas de homens trans; colocação de próteses de silicone em mulheres trans; histerectomia e colpectomia, que é a retirada de útero e vagina; e a cirurgia de redesignação sexual, que é a retirada de pênis, testículos e construção de vagina para mulheres trans.
Estes procedimentos são disponibilizados em apenas cinco centros credenciados pelo Brasil: a USP, em São Paulo; a UERJ, no Rio de Janeiro; o Hospital de Clínicas de Porto Alegre; a Universidade Federal de Goiás, em Goiânia; e no Nordeste, apenas a federal de Pernambuco.
Até o momento, a Bahia ainda não possui entro credenciado para a realização das cirurgias. No entanto, o estado contempla o Ambulatório Transexualizador localizado no Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Hospital das Clínicas), da Universidade Federal da Bahia e vinculado à Rede Ebserh (Hupes/UFBA-Ebserh), em Salvador, que oferece atendimentos direcionados ao público trans e travesti.
Médica endocrinologista no Ambulatório, a Dra. Luciana Barros explicou que o Ministério da Saúde ainda não autorizou cirurgias na unidade, mesmo tendo sido solicitado desde 2016.
“A gente pode encaminhar um paciente para tratamento fora do domicílio, mas, muitos desses hospitais, as filas estão fechadas para novos pacientes, porque eles estavam com uma espera de cinco anos para serem operados e, por conta da Covid, piorou ainda mais”, comentou Dra. Luciana.
A unidade oferece consulta com endocrinologista, atendimento ginecológico para homens trans, tratamento de hormonioterapia e acompanhamento psicológico e psiquiátrico. O agendamento é feito no guichê do prédio Magalhães Neto, do Complexo HUPES-UFBA, de segunda a sexta-feira, das 13 às 19h.
“Se a pessoa já tiver avaliação psicológica e psiquiátrica prévia, ela é encaminhada e agendada para consulta com endocrinologia. O laudo é necessário, não por diagnóstico, mas sim para saber realmente o estado de saúde mental da pessoa, porque a hormonioterapia pode impactar negativamente, tem efeitos colaterais em saúde mental como depressão, agressividade e ideação suicida para quem já tem depressão, irritabilidade. Então são algumas coisas que a gente precisa de uma avaliação prévia. A depender do que o paciente deseje, o endócrino vai encaminhando para os demais setores”, explicou a endócrino.
A médica enfatizou também como o procedimento cirúrgico complementa a hormonioterapia no processo de adequação do corpo à identidade de gênero da pessoa. Por exemplo, no caso de mulheres trans, mesmo com o tratamento hormonal, o tamanho final da mama é genético e não é dependente do tipo de hormônio. Então, elas buscam pela colocação de prótese de silicone.
“Se a gente pegar os homens trans, quase todos eles vão querer retirar as mamas. Na nossa sociedade, a mama ainda é vista como marcos de identidade feminina. Em relação à genitália, a gente tem uma diversidade maior do que as pessoas desejam. Nem todo mundo quer fazer a adequação, uma virilização da genitália ou retirar útero, até porque isso não é construção da identidade de gênero. Muitas pessoas entendem que elas podem, sim, ser homens e ter vagina, e usar essa vagina sexualmente. Para mulheres trans, a colocação de prótese de silicone, às vezes, é para alcançar o tamanho de mama que elas desejam”, comentou Dra. Luciana.
Os medicamentos de hormônios para os homens trans são disponibilizados pelo Hospital das Clínicas, com recurso direto do Ministério da Saúde, assim como os bloqueadores androgênicos.
Segundo Dra. Luciana, essa questão é um problema para quem não faz acompanhamento em centros habilitados pelo MS, porque não há nenhum hormônio sexual seguro para pessoas trans disponível na lista de medicamentos do SUS. Além disso, há uma carência no fornecimento de hormônios feminilizantes para as mulheres trans.
“Nós estamos tentando comprar desde quando o ambulatório foi fundado, em 2018. Existem várias licitações que deram deserto. Ou seja, não apareceu ninguém para vender para o hospital. A gente já consegue comprar outras, mas o estradiol ainda tem sido uma limitação. Nesse caso, as pessoas precisam comprar, mas é essencial que seja fornecido pelo SUS, porque muitas pessoas trans não têm acesso a empregos que pagam adequadamente. A família nem sempre dá apoio para comprar medicação”, disse Dra. Luciana.
Direitos legais
A criminalização da transfobia, o tratamento hormonal e a retificação do nome e gênero nos documentos civis, sem a necessidade de ação judicial, foram alguns dos reconhecimentos mais relevantes para o público trans e travesti nos últimos anos.
Segundo o advogado Nathan Lopes, toda instituição, seja pública ou privada, deve respeitar o nome social e o gênero do qual a pessoa se identifica. Caso não seja concedido, pode configurar crime de transfobia, sem prejuízo de indenização moral.
O chef de cozinha Victor Hugo Vilas Boas, de 27 anos, contou que passou por dificuldades em relação a alteração de nome e ressaltou a importância dessa identificação ao público trans.
"Nos dá a certeza de que estamos reconhecidos pelo Estado pela forma que nos vemos. Somos e queremos ser tratados como homens. Não é nosso nome social, é nosso nome, nossa vida, é nosso e não apenas social, mas sim político. O que temos de mais personalíssimo na nossa vida é nosso nome. Se isto for negado, nós não existimos diante da sociedade e da vida", disse.
Victor também relembrou o triste momento em que sofreu agressão por transfobia, que foi alguns dos motivos de ter deixado Salvador para morar fora do país. Após a situação, Victor procurou suporte e amparo do Centro Estadual Especializado em Diagnóstico, Assistência e Pesquisa (CEDAP) e do Centro Municipal de Referência LGBT, no Rio Vermelho.
"A transfobia me acompanha diante da vida com dificuldades de conseguir emprego e até violência a qual sofri na cidade de Santo Estêvão, onde apanhei por 2 horas seguidas por ser transgenero. Esses motivos me levaram a deixar o Brasil, por medo e desencadeamento de doenças mentais provocadas pela agressão, como ansiedade, depressão e transtorno de pânico", comentou.
Em meio aos avanços nas estruturas de saúde e a busca para conseguir o acesso aos procedimentos garantidos por Lei, também há uma grande luta para que haja uma proteção direcionada pelo Governo para defender a comunidade LGBTQIAPN+.
O jovem Akin Akil, de 28 anos, morador de Dias D'Ávila, região metropolitana de Salvador, também encontra dificuldades para realizar a retificação e a utilização de hormônios.
"Estou buscando a retificação do meu nome na certidão de nascimento e tem sido cansativo. O órgão responsável pelo processo na minha cidade dificulta demais, e terei de recorrer à mutirões na capital. Além disso, ainda não me hormonizo, justamente pela dificuldade que é conseguir acompanhamento médico pelo SUS, principalmente onde moro. Por isso busco acompanhamento psicológico de forma particular, até ser encaminhado ao endocrinologista e, de fato, começar a hormonização", disse.
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