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SAÚDE

O vício tem origem em uma vida ruim, diz neurocientista

Por Maíra Azevedo

08/12/2014 - 13:45 h
Carl Hart
Carl Hart -

Sem medo de ser polêmico e de desafiar conceitos já institucionalizados, o professor de psicologia e psiquiatria da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, Carl Hart, defende que as desigualdades sociais causam muito mais danos que o uso constante de drogas e entorpecentes.

Em sua terceira visita ao Brasil, e primeira à Bahia, o neurocientista fala com exclusividade ao A TARDE e diz que a política repressora de combate às drogas, em especial o crack, é um grande equívoco. De acordo com Carl Hart, a criação de políticas que combatam às desigualdades sociais e possam garantir acessos e oportunidades para todas as pessoas é capaz de alterar os índices de pessoas que vivem nas "cracolândias", termo que ele não utiliza, pois acredita que estigmatiza os usuários e fomenta a estruturação de castas sociais.

O professor afirma que a proliferação de dependentes químicos é fruto da falta de interesse dos governantes em tratar o tema da forma adequada, por isso aconselha a sociedade a "constranger" os gestores públicos, fazendo denúncias constantes aos órgãos internacionais, como a Organização das Nações Unidas. Ciente de que as suas afirmações podem soar como controversas, Carl Hart afirma que não desconhece os prejuízos causados pelas drogas. Por proporcionarem sensação de prazer, podem causar dependência em quem não tem outras fontes de satisfação pessoal. Mas para o cientista, criminalizar os usuários e estimular a repressão não resolve a questão e ainda coloca no limbo pessoas talentosas, que passam a viver sem alternativa.

O que levou você a pesquisar sobre o impacto do uso de drogas nas pessoas?

A ciência foi a forma que eu encontrei de tentar equalizar uma situação ruim. Sendo negro nos Estados Unidos, fazendo parte de um grupo que é excluído, eu tinha várias saídas, mas escolhi a ciência. Em 1986, me falaram que o crack estava destruindo a população negra. Então, eu pensei: se eu puder curar o vício em drogas, utilizando meu conhecimento em neurociência , eu conseguirei resolver o problema da comunidade negra, que era e ainda é a mais atingida. Então, durante esse processo de pesquisar, a ciência me mostrou que o crack não era o pior problema que afetava a sociedade. Mas, se não fosse pela ciência, eu não teria chegado a essa conclusão. E agora eu tento disseminar esse conhecimento, para salvar vidas.

E a qual conclusão você chegou e por quanto tempo estudou o assunto?

Foram 24 anos de estudos e eu cheguei a conclusão que o consumo de drogas pode ser utilizado para acobertar outros problemas, como ansiedade, a depressão, a angústia. E esses sentimentos são muito mais presentes em pessoas que não tem acesso as questões sociais básicas, como emprego, alimentação, habitação. Então, as drogas não são os verdadeiros problemas.

Então quais seriam os problemas?

Se as drogas não eram os problemas, tornou-se necessário pesquisar mais profundamente o que estava afetando a população. E isso eu fiz por meio da ciência. Uma pessoa com qualidade de vida, mesmo que use drogas diariamente, dificilmente ela será considerada dependente. Porque ela continuará a realizar todas as suas atividades.

Como foi realizado o seu estudo, para chegar a essa conclusão?

Comecei fazendo pesquisas com animais e me consideram um especialista em drogas. Só depois comecei a realizar os estudos com pessoas. Em alguns dos nossos experimentos, realizados com pessoas consideradas dependentes de drogas, tidas como altamente viciantes, como o crack e metanfetamina, observamos que quando oferecíamos outras opções, nem sempre elas escolhiam as drogas. Essas substâncias não são tão viciantes como se é propagado. Levamos para o laboratório indivíduos que usavam crack todos os dias. O estudo foi feito de forma legal, com autorização do governo dos Estados Unidos. Era oferecido US$ 5 a cada dependente para que não tomassem uma segunda dose de crack. E o número de quem escolhia a droga ou o dinheiro era praticamente igual, mas quando aumentávamos o valor para U$ 20 todos optavam pelo dinheiro. Isso demonstra que devemos oferecer outras opções, como empregos de qualidade, educação, alimentação, participação efetiva na sociedade. Foi isso que a ciência nos disse. É uma questão de bom senso, mas fingimos não entender.

A sua fala possibilita a compreensão que apenas pessoas pobres, vítimas de alguma exclusão social, podem se tornar dependentes. Mas temos casos de pessoas famosas, ricas que perderam tudo por causa das drogas.

Não é isso que eu defendo. Sim, as drogas podem causar dependência e se forem utilizadas da forma errada levar até a morte. Mas o que constatamos é que algumas pessoas tem problemas psiquiátricos, sofrem de depressão, ansiedade e ao usarem as drogas esses problemas "desaparecem" e elas não procuram tratamento. Nos referimos de forma inversa. Não são as drogas que causam depressão, ansiedade, são esses problemas que levam até o uso de drogas. A origem do vício está em uma condição de vida ruim. Mesmo pessoas ricas, músicos, celebridades podemos pensar nessas pessoas da mesma maneira. Eles sempre tem alguém para dizer a eles o que devem fazer, determinando a agenda deles, uma espécie de monitoramento direto. E quando usam drogas, não fazem isso de forma responsável. Quero deixar bem claro que existem múltiplas razões que podem levar uma pessoa a se tornar viciada. Mas, nem todo usuário é um dependente.

Como seria a melhor forma para identificar uma pessoa dependente?

Seria submeter essas pessoas a uma avaliação cuidadosa no primeiro encontro. E isso praticamente nunca acontece nos tratamentos dos viciados. Identificar que tipo de pessoa é essa que está dependente. Ela tem outro problema psiquiátrico? Tem problemas emocionais?

O senhor diz que tem pessoas que podem usar drogas todos os dias e não ser considerado um viciado. Como diferenciar um usuário de um dependente?

O senso de responsabilidade. Uma pessoa que bebe todos os dias uma taça de vinho, durante o jantar será considerado um alcoolatra? É a mesma coisa com o crack, com a cocaína. Se a pessoa vai ao trabalho, realiza suas atividades sociais sem causar danos para outras pessoas. Por exemplo, os três últimos presidentes dos Estados Unidos (Bill Clinton, George W Bush e Barack Obama) assumiram publicamente que já usaram substâncias consideradas ilegais, e nem por isso deixaram de cumprir com seus papéis sociais, com suas responsabilidades.

Então por que a maioria das pessoas, inclusive profissionais de saúde, tratam usuários como dependentes?

Na medicina existe uma linha muito clara para fazer esse tipo avaliação, fazer esse diagnóstico e detectar um viciado. O problema na medicina é que existe um conflito de interesse. E existe esse conflito porque queremos ser necessários, e se alguém está usando uma droga e eu sou especialista em drogas, aquela pessoa portanto vai precisar de mim. Ou pelo menos é o que eu digo.

Seriam as drogas um problema de saúde pública?

Eu não concordo e vou te dizer porque. Eu tenho um amigo francês que ficou 20 anos preso por causa do uso de drogas. E ele me disse, recentemente, que se sente sentenciado a ser para sempre prisioneiro das pessoas que propiciam tratamento para drogados. E por que isso? Porque existe a pressuposição que um viciado em droga será sempre um viciado e que isso é um caminho sem volta, uma prisão perpétua. E nós não queremos trocar um sistema carcerário pelo outro. E é preciso lembrar que a maioria dos viciados em drogas não necessita viver sob cárcere.

Sabendo disso, como devemos então lidar com as drogas? Como combater?

O primeiro passo é educar. Desmitificar algumas informações e se possível orientar uma pessoa até mesmo sobre a maneira correta de usar. Essa política repressora é um erro. Um grande equívoco é atribuir qualidades biológicas ao crack. É uma substância química e pronto. Não devemos associar a qualidades boas ou ruins. Quando vejo aqui no Brasil aquelas frases de efeito no carros da polícia 'Podemos vencer o crack', vejo o quanto estão adotando uma postura equivocada diante disso. É preciso mudar a abordagem, não tratar o usuário como um bandido. Até porque sabemos que a maioria dos usuários são pessoas que já não tem outras opções, que se tornaram dependentes por causa da pobreza. Observe que a maioria dos usuários de cracks são pretos e pobres.

Da forma como o senhor fala é muito simples combater as drogas. Por que não é feito?

Essa é uma ótima questão. Te faço a mesma pergunta. Por que não temos uma política eficiente no combate as drogas? Existem interesses e essa postura de tratar o crack como um grande vilão, o maior inimigo da sociedade, envolve muito dinheiro. O problema não é o crack. A questão são todos os problemas que já estavam lá antes do vício e que a sociedade tem que reconhecer que não há atalhos para resolução desses problemas sociais. É preciso lutar por uma melhor qualidade de vida para todas as pessoas. Isso seria um beneficio coletivo.

Qual o seu objetivo com suas pesquisas?

É fazer com que sejamos mais eficientes e para sermos mais eficientes, não deveríamos escolher atalhos para a solução de problemas sociais como culpar o crack. Na verdade não precisa ser um neurocientista para dizer que a discriminação, a pobreza, a falta de oportunidades, o subemprego são nossos verdadeiros problemas.

A entrevista teve tradução simultânea de Raquel de Souza, doutoranda em Antropologia na Universidade do Texas, Estados Unidos.

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