SAÚDE
“Quando internalizado de forma brutal, o racismo se torna um fator de risco à vida”, diz psicólogo
Por Ashley Malia

Jovens negros apresentam 45% mais chances de cometer suicídio do que jovens brancos, conforme dados do Ministério da Saúde, divulgados no ano de 2019. Esses números estão diretamente ligados ao racismo vivido pelas pessoas negras na sociedade, de um modo geral. Psicólogos negros já pontuam a importância de discutir o quanto os marcadores sociais de raça, classe e gênero estão relacionados ao adoecimento psíquico, quando acometidos pelo preconceito.
De acordo com o psicólogo Leonardo Ribeiro, é inegável que o racismo pode gerar o sofrimento psíquico. Segundo ele, o olhar da branquitude sobre corpos negros define quem é o sujeito antes mesmo dele se reconhecer. Assim, os estereótipos retiram aspectos que permitam a construção saudável da identidade, como a aceitação de traços físicos, por exemplo, gerando um sentimento de inferioridade e não-pertencimento.
“O racismo acarreta, então, na naturalização da desvalorização da vida do preto, afetando a autoestima e impedindo o desenvolvimento de sentimentos positivos sobre si. Construir uma autoestima estável se torna desafiador quando a cultura envolta de um sujeito atribui sentidos negativos a negritude. Isso pode variar de pessoa para pessoa, entretanto, se dar conta da negritude também é se dar conta do racismo”, declarou o psicólogo, em entrevista ao Portal A TARDE.
A estudante de medicina na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Kleriene Souza, 28 anos, contou ao Portal A TARDE que desde a infância teve a autoestima, inclusive intelectual, abalada por conta do racismo. Da pré-escola até a graduação, a jovem teve que conviver com palavras e atitudes racistas de professores e colegas, que afirmavam que aquele não era o seu lugar e não possuía intelectualidade suficiente para conseguir algo na vida. Cotista de raça e escola pública, Kleriene sentiu o racismo com mais nitidez na universidade, onde as pessoas lhe diziam frases como: “esse povo diminui o nível da faculdade”, “você não deveria estar aqui”, “você não consegue acompanhar as aulas”.

“Para quem já tinha a autoestima baixa e a síndrome de impostor, eles só me fizeram sentir mais alheia e não-pertencente àquele ambiente”, disse a jovem, que desde sempre se viu como a única negra em diversos espaços, já que sempre morou em bairro de classe média com maioria branca. “Todos os cursos e atividades como inglês, francês, balé e natação... em todos, na maioria das vezes, éramos os únicos negros no ambiente e isso passava aquela ideia de que há algo de errado, afinal, por que os outros negros não estavam lá conosco?”, questionou.
Se não estamos aos montes naqueles espaços, é porque o racismo e escravidão nos negou isso. A culpa não é nossa e nem dos nossos.
Viver essa realidade fez com que Kleriene passasse por diversos episódios racistas, como ser confundida com vendedora ou pedinte. Além disso, ela já relatou, em um artigo para o site The Intercept, que mesmo quase formada em medicina, ainda é constantemente confundida com paciente do Sistema Único de Saúde (SUS).
Leonardo Ribeiro explica que situações de violência racial, como as descritas por Kleriene, perpassa pela desvalorização dos seus afetos e sentimentos, por causa da construção negativa sobre o corpo negro. Além da baixa autoestima intelectual, o racismo atinge diretamente a autoestima física de pessoas negras, pois, por não estarem no padrão de beleza imposto pela sociedade, os negros são constantemente rejeitados e vistos como pessoas que “não servem para relacionamentos, apenas para o prazer”. Assim, a negação do afeto pode gerar a compreensão de que, por ser negra, essa pessoa nunca encontrará o amor, ou poderá despertar o desejo de atender aos padrões de beleza. O clareamento da pele, cirurgias estéticas para “afinar” nariz e boca e o alisamento capilar são exemplos disso.
Assim, o racismo pode gerar efeitos no psicológico da população negra, causando, além da baixa autoestima e o auto-ódio, problemas como depressão e ansiedade. A mestre em psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), apontou, durante uma entrevista ao Nexo Jornal, que os desdobramentos “mais fáceis” nesses casos são dois: a dependência química e o suicídio, que se refletem nas estatísticas em que a maior parte das pessoas que cometem suicídio ou são dependentes químicas são negras.
“Eu sempre digo que a terapia salvou minha vida. Se eu não tivesse acompanhamento psicológico, eu provavelmente não estaria aqui e a depressão e ansiedade causadas pelo racismo já teriam ganhado”, afirmou Kleriene. Na terapia e no Coletivo Negrex, formado por estudantes e médicos negros, a estudante conseguiu entender que a culpa pelo não-pertencimento, síndrome do impostor e baixa autoestima eram do racismo e não de si mesma. “Com a terapia que faço até hoje, consegui ajuda para entender como lidar melhor com o racismo e tudo o que ele provoca em mim, física e psicologicamente. Sou grata aos três terapeutas que tive até hoje, eles foram essenciais para eu conseguir entender e processar as cicatrizes e problemas que a discriminação racial me deixou”.

O psicólogo Leonardo Ribeiro pontuou que, quando internalizado de forma brutal, o racismo se torna um fator de risco à vida. O suicídio surge, segundo o especialista, como uma solução à desesperança e desespero, porém não é a única saída. O profissional contou que buscar redes de apoio e ajuda profissional qualificada são algumas das maneiras de encontrar soluções para o sofrimento gerado pelo racismo.
“Não é possível chegar a uma resposta específica que solucione o racismo, porém, o autocuidado e fortalecimento de práticas saudáveis podem produzir mudanças positivas na saúde e no enfrentamento ao preconceito”, afirmou o profissional.
Realidade distante para a maioria das pessoas negras, a psicologia surgiu como uma ciência voltada para a branquitude. No Brasil e na Bahia, já existem movimentos de psicólogas e psicólogos negros que lutam para debater e estudar questões raciais, entendendo que as intersecções de raça, classe, gênero e sexualidade podem interferir na saúde mental das pessoas.
“Redobrar a atenção para sujeitos fragilizados devido ao local social que ocupa, faz parte do processo de cuidado. Estudar sobre racismo e práticas antirracistas é essencial para entender o sofrimento de pessoas pretas, tal como é importante estudar os sintomas da depressão para lidar com esse transtorno mental”, finalizou.
Grupos que atuam com saúde mental da população negra
Rede Dadaras: organização baiana que atua com a saúde da população negra e indicação de psicólogas negras.
Afya Psicologia: coletivo baiano que reúne psicólogos negros para atendimento clínico e grupos terapêuticos.
Saúde Mental da População Negra: página que trabalha a popularização do conhecimento científico, criada pela professora Dra. Jeane Tavares.
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