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ESCOLHA

Testamento Vital preserva vontade de pacientes em caso de doenças graves

É possível registrar em cartório regras para atendimento em situação de emergência e tratamentos intensivos

Por Ana Cristina Pereira

24/11/2024 - 23:00 h
Carolina Catizane: 
“DAV é pouco conhecido”
Carolina Catizane: “DAV é pouco conhecido” -

Você sabia que é possível registrar em cartório o hospital que gostaria de ser levado em caso de emergência? Ou deixar claro que não gostaria de ser submetido a um determinado tratamento ou mantido vivo artificialmente? Ou ainda, deixar definido quem tomará as decisões por você em caso de incapacidade física ou mental. Estas são apenas algumas situações que podem ser formalizadas nas Diretivas Antecipadas de Vontade (DAVs), popularmente conhecidas como testamento vital, um documento relativamente simples de ser feito, em qualquer Cartório de Notas. E até mesmo de forma digital.

Ainda pouco conhecidas, as DAVs voltaram a ser citadas no debate em torno da morte do poeta carioca Antônio Cícero no último dia 23 de outubro na Suíça, que aconteceu através de um procedimento de morte assistida. No Brasil, onde a eutanásia é proibida, as DAVs são uma alternativa para que uma pessoa possa, ainda em consciência, expressar suas escolhas sobre tratamentos futuros, especialmente em casos em que uma condição de saúde o impeça de manifestar sua vontade, como nas doenças terminais.

Segundo dados do Colégio Notarial do Brasil, o país já conta com mais de 8,1 mil documentos deste tipo registrados em Cartórios de Notas. Na Bahia, foram apenas 51 DAVs. A tabeliã Carolina Catizane, do 8 Cartório de Notas de Salvador, afirma que, embora não exista uma legislação federal específica sobre o Testamento Vital no Brasil, o documento é reconhecido pelo Conselho Federal de Medicina. “Mas acho que ainda é pouco conhecido, sobretudo por uma uma questão cultural do brasileiro, que não costuma pensar muito na hora da morte”, pontua.

O primeiro testamento vital que fez foi justamente de um americano que morava em Salvador. Entre os baianos que atendeu, Carolina lembra o caso de uma jovem que ia fazer uma cirurgia no cérebro e deixou algumas especificações caso ela morresse ou ficasse incapaz, mas como ficou tudo bem voltou e refez o documento. Em outros casos, as pessoas especificaram que gostariam de ser cremadas ou que seu corpo fosse doado a uma instituição de pesquisa médica. Ela explica que a própria pessoa pode fazer o documento, que custa R$ 203, sem necessidade de testemunhas ou advogados.

“Acho que a DAV poderia evitar discussão desnecessária nas famílias em relação a essa tomada de decisões difíceis, de responsabilidades. Ela é mais uma ferramenta de planejamento pessoal para garantir as preferências e para respeitar a autonomia da vontade nos momentos críticos que a pessoa não pode se expressar”, destaca a tabeliã.

Visão do paciente

Especialista em cuidados paliativos, o médico intensivista João Ramos avalia que a DAV é extremamente importante quando se pensa em cuidados centrados no paciente, que podem fazer ou não sentido diante de seus valores e desejos. Pois, destaca o médico, muitas vezes na prática, o indivíduo já não é capaz de expressar a sua vontade, seja por situações clínicas, uso de medicamentos ou complicações ao longo do tratamento que acabam alterando sua consciência.

“A presença de um documento que seja capaz de trazer a visão do que o paciente gostaria pode ajudar enormemente a equipe de saúde, junto com a família, a tomar a melhor decisão possível”, afirma.

Diretor médico da Clínica Florence, hospital de transição em cuidados paliativos e com experiência em outras unidades, ele não se recorda de já ter recebido um documento formalmente registrado em cartório. Mas já recebeu declarações informais, como cartas e registros de conversas com a família, trazendo o que paciente havia refletido. E destaca que a ausência de uma lei específica no país permite que os médicos absorvam esses outros documentos como instrumentos de reabilitação do desejo da vontade do paciente.

Dr. João explica que os casos mais comuns são de pessoas com diagnóstico de alguma doença degenerativa, como as demências, ou uma doença grave e progressiva, como uma neoplasia metastática.

“A primeira coisa que a gente precisa garantir é que essa recusa pelo tratamento é autônoma. Porque quando a pessoa tem uma demência, por exemplo, tem um câncer avançado, e ela sabe mais ou menos qual é a história natural da doença, a gente consegue prever como é que as coisas vão acontecer, consegue conversar com o paciente sobre como as coisas podem acontecer, e o profissional médico pode ajudar o paciente a tomar a decisão”, reflete.

Mas como nem sempre isso é possível, segundo o especialista, é preocupante a elaboração da Diretiva Antecipada de Vontade sem que haja uma discussão aprofundada sobre, por exemplo, como algumas decisões vão impactar os tratamentos.

Ele cita um caso discutido recentemente em um congresso em que participou, de um paciente com câncer, que tinha registrado em testamento vital que não gostaria de ser intubado e submetido a ventilação mecânica.

O documento foi feito pensando no contexto de uma progressão oncológica, quando os procedimentos não melhorariam a qualidade de vida. Só que o paciente infartou e para tratar o infarto precisaria ser intubado.

“Ai entra a reflexão do quanto que essa diretiva, feita fora de contexto, ajuda ou atrapalha na tomada de decisão. Como a gente interpreta aquilo que ele queria dizer?, questiona o médico, acrescentando que a DAV deveria ser discutida com um profissional de saúde, para que o contexto em que ela se aplique também fique bem claro. “Podem acontecer coisas no meio do caminho que não estavam previstas e a pessoa pode, inclusive, mudar de opinião”.

Decisões difíceis

Em seu doutorado na USP, o médico desenvolveu uma ferramenta para racionalizar a decisão de quais pacientes seriam ou não mandados para a UTI. O Hospital das Clínicas da USP tinha, na época, 1.200 leitos, com 100 de UTI, em uma disputa constante pelas vagas. Enquanto intensivista, recorda João Ramos, sofria muito com a necessidade de escolher.

“O que fiz lá foi organizar as informações sobre os pacientes, sobre os pedidos de vaga de UTI, trazendo-as para uma ferramenta de apoio à tomada de decisão do médico intensivista”, diz. Ele explica que a ferramenta foi validada, com quatro artigos, e que conseguiu reduzir as internações potencialmente inapropriadas de pacientes que provavelmente não se beneficiariam com os recursos da UTI, aumentando a dos pacientes que se beneficiariam, sem alterar o número de mortos. “Deixou de ir para a UTI aqueles pacientes que, de fato, iriam a óbito ainda e que eles fossem entrar a UTI”.

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