SAÚDE
Traumas causados pela pandemia assustam, mas têm tratamento
Apesar de todos terem sido expostos ao mesmo contexto, a resposta é particular
Por Matheus Calmon

Viver uma das maiores ameaças a longo prazo que a humanidade já enfrentou impactou a todos, mas a situação foi vivida de forma particular. Houve quem passou pelo período e conseguiu enfrentá-lo tranquilamente, mas também aqueles que sofreram fortes impactos psicológicos.
Segundo um estudo feito pela Universidade Flinders, da Austrália, que contou com pessoas de cinco países e foi publicado em janeiro de 2021, o contexto pandêmico possui grande potencial para desencadear sintomas do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT).
A pesquisa apontou que, dos 1.040 participantes, 13,2% apresentaram sintomas de estresse pós-traumático como resultado da pandemia. A situação é agravada no caso de quem foi infectado pelo vírus e/ou perdeu entes queridos para a doença.
Após dois anos sem ir a festas ou eventos, Thainá Dutra, 32, tem a sensação que não conseguirá mais frequentar locais sociais com a presença de outras pessoas. Ela não teve sintomas quando contraiu a Covid-19 nem sofreu a perda de familiar ou amigo, mas a situação geral a deixou assustada. "A pandemia me deixou com trauma de aglomeração. Não consigo me imaginar em um lugar com outras pessoas, principalmente sem máscaras, se abraçando. Só de me imaginar no meio de uma multidão, já fico nervosa", conta.
Por ser mulher, Thainá tem mais propensão ao TEPT, segundo Danielle Admoni, psiquiatra na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo e especialista pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
"Os fatores de risco para o Transtorno de Estresse Pós-Traumático são mais frequentes no gênero feminino, em pessoas com baixo nível socioeconômico, pessoas que já têm transtornos psiquiátricos prévios. Temos alguns fatores de risco que ficam mais intensos para algumas pessoas desenvolverem um trauma", explica.
Segundo Danielle, trauma pode ser considerado como qualquer situação em que a vida da pessoa que o enfrenta foi exposta a risco, ou que ela tenha presenciado ou participado de uma situação extrema. A situação desencadeadora pode ter ocorrido também com pessoas próximas.
A especialista alerta, no entanto, que o trauma é individual, ou seja, duas pessoas podem ter passado pela mesma situação, uma delas ter o trauma desenvolvido e a outra não.
"Isso tem a ver com um monte de questões psíquicas e de resiliência de cada um mas, em geral, tem que ser uma coisa grave, uma doença muito grave, uma guerra, uma exposição, um atentado, algo muito importante", afirma.

"Em geral, a causa do trauma precisa ser algo importante, mas é uma questão muito individual. A gente pode pensar que a pandemia foi, sim, um fator de risco importantíssimo para desenvolver o Transtorno de Estresse Pós-Traumático e isso desencadeou vários tipos de estresse nas pessoas".
A psiquiatra afirma que ainda não há estudo sobre possível mudança de estresse pós-traumático antes e depois da pandemia, mas há uma percepção de que, em locais onde houve mais de um lockdown, as pessoas tiveram a vivência do transtorno.
Segundo relatos históricos, o alemão Herman Oppenheim, em 1889, foi o primeiro a pesquisar sobre a incidência de traumas. À época, o neurologista estudou perturbações relatadas por vítimas de acidentes ferroviários, como depressão, angústia e delírio.
Os estudos sobre o tema foram intensificados após a Primeira Guerra Mundial. O psiquiatra Sigmund Freud percebeu que as neuroses traumáticas resultantes do período não eram as mesmas investigadas pela Psicanálise, à época.
Além de guerras e pandemia, as origens mais frequentes para o trauma são sequestro, violência física ou sexual, estupro e assalto.
A doença do Transtorno do Estresse Pós-Traumático tem tratamento. Na psiquiatria, algumas das alternativas são a terapia cognitivo-comportamental e a psicoterapia.
"Dependendo do caso, acabamos medicando. Usamos antidepressivo, antipsicótico, dependendo do caso. Mas, sem dúvidas, a terapia ajuda a pensar o que aquilo causa, quais situações são revividas. Então a terapia é bastante importante nestes casos", diz Danielle.
O que diz a psicologia
André Dória, psicólogo e psicanalista da Holiste Psiquiatria, explica que o trauma faz parte da constituição do ser humano.
"O que está em jogo numa situação traumática para uma pessoa nunca está evidente, sobretudo para ela mesma. Muitas vezes, o banalizado diagnóstico de TEPT, ao invés de confrontar a pessoa com as questões não reveladas de imediado pela situação que gerou o trauma, acaba por aliená-la a mais um diagnóstico cujo tratamento será igual para todos com a mesma etiqueta. Hoje em dia, uma palavra, importada de alguns tipos de abordagem psicoterápicas, e sobre a qual poderíamos pensar que seria uma espécie de antítese do trauma, está absolutamente na moda: a resiliência".
Ele explica que o trauma só é descoberto quando ocorre a exposição à situação. "Do trauma, só conhecemos sua face mais visível, que se manifesta na ação de evitar um banco após ter sido assaltado em um local do tipo, por exemplo. O tempo da ação que gerou o trauma (um assalto, uma perda) e o tempo do surgimento do que estava recalcado (escondido), que a cena traumática não revela. Nesse sentido, não só as outras pessoas, mas a própria pessoa não conhece o que está em jogo".

"A pandemia foi uma experiência traumática por natureza. Ela afetou justamente as três formas de mal estar que Freud descreveu em sua obra 'O mal estar na civilização': a nossa relação com a natureza - sempre imprevisível e incontrolável, e de onde o vírus se originou -, a nossa relação com nosso corpo - também imprevisível e perecível, e onde o vírus se alojou - e a nossa relação com os outros - o isolamento social, como tentativa de escapar do vírus, além de uma certa paranóia com outro, possível contaminado".
Ele pontua que, apesar de não ser o recomendável, a impressão é que boa parte da população sobreviva com trauma e não busque por ajuda.
"Quanto à psicologia, temos algumas abordagens teóricas que entendem, pensam e interveem de formas bastante distintas. Se tivéssemos que destacar o que talvez possa ser uma característica importante do tratamento psicológico em si, independente da abordagem, é a ampliação do tratamento do sofrimento psíquico para além da abordagem médica, com o protagonismo da palavra. E, no fim das contas, é o paciente quem ganha com isso".
Hipnose pode ajudar
A hipnose é uma ferramenta que pode auxiliar no tratamento de traumas, aliada à psiquiatria e à psicologia. Sua atuação, em linhas gerais, busca resgatar o estado do paciente antes do período traumático e flexibilizar as crenças adquiridas na pandemia.
Sozinha, entretanto, a hipnoterapia não consegue resolver o problema como um todo. O terapeuta especialista em hipnose clinica Diego Wildberger explica que a ferramenta precisa ser atrelada a ferramentas da psicologia.
Ela tem o objetivo de desenvolver e reambientar a pessoa que possui o transtorno, fazendo com que racionalize o que está fazendo atualmente. "A pessoa com trauma não consegue pensar, a emoção toma conta, ela perde a razão", conta Diego.
Ele lembra que o período representou muita necessidade de mudança, o que não foi bem vivida por todos.
“O estresse é uma tensão para a mudança. Essa tensão requer habilidade de enfrentamento ou de adaptação. E muita gente acaba não conseguindo se adaptar por falta de habilidades, competência ou até de familiaridade com a situação. Imagina alguém que nunca teve uma relação interessante com computador ou celular, de repente precisa se adaptar. Sem contar nas questões de luto, não só por ter perdido alguém, mas por ter sido demitido, por ter falido uma empresa ou por não estar conseguindo bancar a família. Tudo isso leva ao estresse, que leva ao aumento de pessoas com estresse pós-traumático”.

"Talvez, desde a segunda guerra mundial, a gente não tenha vivido nada parecido com isso. As gerações que agora têm 40 anos não viveram esse tipo de coisa, que dirá os mais novos. Então, é resgatar as competências, habilidades, questionar, de fato, o que está acontecendo. A hipnose vem para flexibilizar as crenças que foram formadas nesses dois anos vivendo dentro de casa".
O assunto da hipnose sempre toca no imaginário popular daquela abordada em espetáculos, quando uma pessoa, por exemplo, é induzida a ver uma cebola e acreditar que é uma maçã. O especialista explica que o que acontece no show é real, mas a abordagem clínica é diferente.
"Os fundamentos são os mesmos, o que muda é o direcionamento e a abordagem. O que muda entre a hipnose clínica e a de palco é a teatralidade. A capacidade que o profissional tem de subir em um palco e dar um show. Os fundamentos de hipnotizar alguém, de programação da mente são os mesmos".
Com dez anos de atuação na área, ele conta que comumente pacietes lhe chegam com ideia diferente da realidade. "Chegam pensando que ficarão inconscientes, vão sair renovados, que vai acontecer uma mágica, um milagre, e vão esquecer tudo que aconteceu. E não é bem assim que funciona. É uma técnica terapêutica que acelera resultados".
Diego ressalta que a mente está sempre no passado ou no futuro, salvo quando em meditação. "Tanto a terapia convencional como a hipnoterapia vem com o papel de educar a pessoa, para que ela consiga assumir o controle sobre si mesma. Muita coisa que acontece na mente é lembrança ou é criação. Sempre está buscando uma referência passada ou criando algo para o futuro", frisa o especialista.
Em meio à instituição do trauma negativo, pensar no trauma positivo é o início para a volta à normalidade. “A mente é programada pelo que a gente vê e escuta. Se virmos muita coisa negativa, é normal a mente programar para acionar a sobrevivência. Muita coisa positiva faz se sentir confiante para enfrentar desafios. A hipnose vem com o objetivo de criar trauma positivo. Fazer ter a visão positiva e criar atitude mental positiva”.
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