"Futebol é uma linguagem poderosa', diz Eryk Rocha
Num campo de várzea no subúrbio do Rio de Janeiro, perto do Maracanã, palco da final da última Copa do Mundo, outro campeonato acontece. Os times Juventude e Geração disputam o título de campeão dentre os 14 times formados nas comunidades vizinhas. O cineasta Eryk Rocha, filho de Glauber Rocha, leva sua câmera para o espaço do futebol amador, celebração de uma das maiores paixões nacionais. Faz um filme sensorial, observando com interesse e respeito a garra de quem joga e a vibração de quem torce. O documentário Campo de Jogo entrou em cartaz no Brasil na última semana e o diretor Eryk Rocha conversou com A TARDE sobre ele e futebol.
Como você travou contato com esse campeonato amador e como surgiu a ideia do filme?
Campo de Jogo nasce das minhas memórias. Frequento estádios e jogo bola desde os cinco anos. O filme une três paixões da minha vida: o futebol, o cinema e o Brasil. O desejo era deslocar o olhar para o futebol popular, de várzea, de pelada (ou como se diz na Bahia, o baba). Então descobrimos o Campo do Sampaio, Zona Norte do Rio, cercado de comunidades e a poucos quilômetros do Maracanã. Percebi que esse campo era uma síntese de muitos campos espalhados pelo Brasil.
O filme faz um contraponto ao mundo espetacularizado e multimidiatizado da Copa do Mundo, ao mesmo tempo em que o futebol profissional e a FIFA vivem uma fase complicada. Como você avalia essa situação?
O futebol brasileiro vive uma crise aguda e profunda dentro e fora das quatro linhas. O futebol, que é nosso patrimônio cultural e tem uma essência popular em toda sua dimensão, está se elitizando, foi cooptado pelo mercado e pela publicidade. Algumas empresas privadas se apropriaram desse bem público (o que não é novidade no Brasil) e vivemos um momento muito ruim. Por outro lado acho que nós nos distanciamos das nossas matrizes e da nossa força originária. Importamos o que há de pior do futebol europeu e, paradoxalmente, os europeus absorveram e se inspiraram no que há de melhor das matrizes do nosso futebol. Um exemplo vivo disso foram as duas últimas campeãs do mundo: Espanha e Alemanha.
Apesar disso, o futebol ainda exerce um fascínio muito grande em crianças e jovens no país.
Nesses campos espalhados pelo Brasil das favelas, da periferia, é onde surgiram muitos dos nossos maiores craques. Nesse caldeirão, nessas matrizes culturais, corporais, é onde estão a substância principal, original, singular do futebol brasileiro. Lamentavelmente muitos desses campos estão ameaçados de serem extintos, entre outros motivos, pela especulação imobiliária. Querem fazer com esses campos de terra a mesma coisa que fizeram com o futebol midiático oficial. A privatização do imaginário e do gesto.
Outros documentários seus perpassam pela questão da identidade (pessoal, brasileira e latino-americana). O amor pelo futebol é também um traço dessa identidade nacional?
No Brasil, o futebol não é só um esporte ou um jogo, é uma linguagem poderosa de expressão da nossa cultura, faz parte da formação do nosso povo. Então a crise e falta de imaginação no futebol brasileiro refletem a falta de imaginação e de um projeto de país (inclusive da política institucional de direita ou esquerda). Apesar de toda essa situação, o futebol tem algo de muito especifico e mágico que está no DNA do brasileiro, é quase "uma forma de se movimentar no mundo". A força, a paixão e a invenção humana que transbordam.
Os personagens do filme transmitem muita garra e força de vontade, além daquele ser um evento para toda a comunidade, que está ali muito perto e tem presença muito forte no filme. Como foi se aproximar desse universo?
Esses campos são talvez um dos últimos espaços de resistência do povo, são pontos de celebração e encontro da comunidade. Palco democrático onde o futebol e o ritual se fundem. Esse campo de jogo é também um campo de afeto, campo de batalha e de êxtases. Campo-terreiro. Isso representa muito para essas comunidades do entorno. Ali tem muitas igrejas, mas também a presença do tráfico. Não tem bibliotecas, salas de cinema, de teatro, de concertos (como aliás parte significativa do país). O próprio baile funk foi reprimido pela policia do estado. Então esse "campo" é um espaço potente e fértil, área de lazer, de respiro. A bola talvez seja a coisa mais democrática da cultura brasileira.
Quais são seus próximos projetos?
Em novembro iremos lançar Campo de Jogo na França e em dezembro no Estados Unidos. Fora isso, estou preparando meu novo filme, Breves Miragens de Sol, um longa-metragem de ficção que será todo filmado no Rio de janeiro. É a história de um taxista que vive na noite e testemunha essa grande transformação que está sofrendo a cidade. Também estou codirigindo uma série de TV com Paula Gaitán, minha mãe. Será exibido no Canal Brasil e se chama Os Resistentes. Fala de artistas, pensadores, ativistas, que marcaram, influenciaram, atravessaram várias gerações e ainda estão vivos em pleno movimento.