Menu
Pesquisa
Pesquisa
Busca interna do iBahia
HOME > ARTIGOS
Ouvir Compartilhar no Whatsapp Compartilhar no Facebook Compartilhar no X Compartilhar no Email

OPINIÃO

O Labirinto das Letras: quando a Geografia decide quem pode falar no Brasil

Confira o artigo do escritor Matheus Peleteiro

Por Matheus Peleteiro*

21/07/2025 - 23:49 h
Matheus Peleteiro é escritor há 10 anos
Matheus Peleteiro é escritor há 10 anos -

Há uma ferida aberta na literatura brasileira. Uma ferida profunda, reprimida, que sangra silenciosamente nas periferias do mapa. Uma ferida que nós, escritores baianos, pernambucanos, cearenses, paraenses, manauaras — artistas de qualquer coordenada longe do eixo Sul-Sudeste — conhecemos bem. E, se pudéssemos defini-la, acredito que a chamaríamos de algo parecido com “a surdez sistemática de nossas vozes”.

Trata-se de uma ferida que muitos escritores carregam em silêncio, com medo de pronunciá-la em voz alta por receio de que suas denúncias soem como ressentimento, lhes rendam o cancelamento e fechem ainda mais as portas de espaços que já precisariam arrombar para entrar. Sobretudo num tempo em que se naturalizou a ideia — alimentada por discursos da extrema-direita — de que toda denúncia é um disfarce para interesse pessoal.

“Mas em que consiste essa ferida?”, o leitor já deve se perguntar, lendo este texto com a impaciência de quem se acostumou com a rapidez dos feeds de notícias das redes sociais. E, compreendendo-os, adianto a resposta: a ferida consiste numa metáfora que expressa um problema que parece alheio aos escritores iniciantes e aos leitores em geral, que comumente escrevem seus primeiros livros acreditando que lhes bastará o envio de alguns e-mails para que apresentem o manuscrito a grandes editoras, e associam as publicações de autores de fora do eixo em editoras pequenas ou independentes a rejeições de grandes editoras, como se fosse impossível que uma grande obra fosse rejeitada por uma grande editora.

Escrevo este texto, portanto, para expor o fato de que mesmo o direito a um “não” nos é negado. E que a nossa indignação não consiste em nenhum ressentimento diante de rejeições — que ao menos pressupõem um diálogo, uma escuta, um contato. Refiro-me ao vácuo. Ao silêncio absoluto que engole originais enviados a editoras e agentes, sem retorno algum.

Um sumiço que nos condena à dúvida permanente: nosso livro foi recusado ou sequer foi lido?

Saber disso já aliviaria um pouco, já nos permitiria pensar que tentamos e não conseguimos, e ao menos saberíamos que nossas obras não vingaram por mérito estético, e não por invisibilidade. Não por estarmos à margem do mercado editorial. Acontece que até essa negativa mínima exige de nós uma verdadeira epopeia: anos de tentativas, articulações em redes e eventos que não nos incluem senão como produtos, ou a coincidência rara de um alinhamento cósmico no mercado editorial.

Não à toa, costumo dizer — não sem um certo amargor —, que se um escritor baiano surgisse hoje com um novo “Mar Morto”, sem o respaldo de um padrinho influente, sua obra morreria afogada ainda na gaveta. O que lhe restaria seriam as sobras do mercado: publicações sem revisão, edições que beiram o crime tipográfico e tiragens simbólicas de 50 exemplares, esgotadas não pelo interesse do público, mas pela boa vontade de amigos e familiares.

O preço dessa exclusão geográfica se evidencia nas escolas, através de professores comprometidos com a educação que frequentemente me confessam em eventos: “Queremos apresentar autores locais aos alunos. Escritores que possam vir à escola e falar sobre seus livros. No entanto, quando vamos às livrarias, só encontramos nomes já consagrados e falecidos, como Jorge Amado e João Ubaldo, ou autores reconhecidos, antes de tudo, por outras áreas além da literatura, como Lázaro Ramos e Caetano Veloso.” E, também, por meio de professores corajosos que, ao exigir trabalhar com um livro publicado por uma editora menor, esbarram num paradoxo kafkiano: pais indignados porque não encontraram a obra na Amazon ou na Livraria do shopping. De maneira que a exclusão editorial transforma-se num apartheid cultural. Um triste fato que escancara uma ferida antiga: no Brasil, o que não é vendido pelo Sudeste dificilmente é considerado digno de ser lido no Norte e no Nordeste. E esse cenário se agrava ainda mais quando pensamos que, na Bahia, o escritor só costuma ser celebrado depois de receber o aval de fora — especialmente de São Paulo. Como se o reconhecimento precisasse primeiro atravessar a fronteira geográfica e simbólica do Sudeste para que, só então, seu povo se sentisse autorizado a celebrar e gritar: “é nosso”.

Por fim, quando as grandes editoras nos "encontram", impõem-nos um figurino. Ao autor nordestino, exigem sertão, seca e terreiro. Ao nortista, botos, tacacá e assombrações da floresta. Como se não coubesse ao soteropolitano escrever sobre violência urbana, ou ao manauara escrever prosa poética de apartamento. É uma violência suave: reserva-se o direito ao universal (o urbano, o diverso) para o eixo; condena-se o "regional" ao papel de criador de mitologias exportáveis. Querem-nos como cartógrafos do exótico, nunca como filósofos da condição humana.

Mas eis que, nos últimos anos, rachamos o muro. Avançamos não por benevolência, mas por uma confluência de forças: a demanda por vozes negras e periféricas (autênticas ou não), as cotas geográficas em feiras literárias, o cansaço de um Brasil que se recusa a se ver monocromático, os clubes de leitura — tudo isso tem impelido o mercado a abraçar essa diversidade. Confesso que celebro este avanço com os dentes cerrados, pois sei que ele vem envolto em contradições, mas, ao mesmo tempo, reconheço que é pela fresta que a luz entra.

Pensando nos últimos dez anos, para além de Itamar Vieira Jr. — que julgo um fenômeno à parte — temos conseguido furar a bolha de um jeito que me impressiona. Autores como o próprio Itamar e seu Torto Arado, Franklin Carvalho e seu Céus e Terra, Luciany Aparecida e seu Mata Doce, Evanilson Gonçalves e seu Ladeira da Preguiça, Elisama Santos e seu Mesmo Rio, Davi Boaventura e seu Mônica vai jantar, Ian Fraser e seu Cartografia para caminhos incertos, Renata Belmonte e seu Mundos de uma noite só, Ruy Espinheira Filho e seu A invenção da poesia, eu e meu Gael e a Terra dos Vivos, ainda soam como invasores nos catálogos das grandes editoras. Muitas vezes, associados a produtos de discursos. Ainda assim, seguimos avançando.

Eu sonho com o dia em que lerão nossos livros não como curiosidade etnográfica, mas como parte indissociável do corpo literário nacional

Eu sonho com o dia em que seremos buscados não para suprir demandas de mercado ou de representatividade, mas para tratar da condição humana, seja no sertão ou na cidade. Mas, enquanto esse dia não chega, cabe aos escritores seguir na resistência: escrevendo com a raiva de quem foi ignorado e a elegância de quem sabe que a grande arte não pede licença — ocupa espaços.

Seguimos a passos lentos? Sim, é provável. No entanto, cada obra nossa que atravessa a cortina de ferro editorial nos deixa mais próximos deste sonhado destino. Pois não nos cabe ser vistos como “literatura regional” nas prateleiras. Queremos ser a literatura brasileira que nasce no Nordeste, no Norte, no Centro-Oeste — sem prefixos redutores.

Gosto de acreditar que permanecemos em gavetas por tanto tempo, que as transformamos em trincheiras.

*Matheus Peleteiro é escritor, editor, tradutor, dramaturgo e produtor do Podcast 1Lero. E-mail: [email protected]

Compartilhe essa notícia com seus amigos

Compartilhar no Email Compartilhar no X Compartilhar no Facebook Compartilhar no Whatsapp

Siga nossas redes

Siga nossas redes

Publicações Relacionadas

A tarde play
Matheus Peleteiro é escritor há 10 anos
Play

Pontes para o Consensualismo

x