ITENS DE ORIGEM ANIMAL
PL propõe novas regras em microproduções sem deixar cuidado sanitário
Entenda melhor a proposta e os posicionamentos de alguns pequenos produtores
Por Lucas Franco
Aprovado no plenário da Assembleia Legislativa da Bahia (ALBA) em 4 de outubro, o Projeto de Lei 25.046/2023, de autoria do deputado Bobô (PCdoB), deve ser sancionado em breve, confirmou o governador Jerônimo Rodrigues (PT).
A proposta do texto é fazer com que itens de origem animal produzidos por pequenos agricultores e pela agricultura familiar tenham mais facilidade para ultrapassar as fronteiras municipais e chegar em novos mercados, sem que os cuidados sanitários deixem de ser levados em consideração.
Entenda como acontece hoje
Produtores que comercializam itens de origem animal, independentemente do porte, podem ter diferentes tipos de certificação, de acordo com as suas finalidades. Para o produtor que se propõe a comercializar esses itens apenas no seu município e na área do consórcio do qual sua unidade está sediada, é aconselhada a cerificação pelo Serviço de Inspeção Municipal (SIM), fornecida pela prefeitura local.
Se a produção for maior e existe a necessidade de que estes produtos cheguem em outros municípios do estado fora do consórcio, o Serviço de Inspeção Estadual (SIE), que é emitido pela Agência de Defesa Agropecuária da Bahia (ADAB), pode suprir todas as necessidades.
Caso as vendas aumentem e surja a necessidade de expansão não só para outras unidades federativas, mas para o exterior, o produtor então pode buscar o Serviço de Inspeção Federal (SIF), de responsabilidade do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA). O MAPA audita a ADAB, que por sua vez audita as gestões municipais.
Uma queixa frequente entre pequenos produtores e agricultores familiares é que faltava um olhar mais atencioso dos órgãos públicos com suas especificidades. A avaliação é que o grupo não deveria receber as mesmas exigências dos grandes produtores. "A gente tinha que ter uma lei que facilitasse a vida do pequeno produtor, do agricultor familiar", afirma Bobô, que diz enxergar que o PL vai melhorar a economia da Bahia e a vida das pessoas do campo que comercializam produtos de qualidade.
"É um debate que já tem três anos, não é de agora. Apenas nós colocamos a lei em 2023, formatamos o conteúdo do projeto e ouvimos a CAR [Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional] e os órgãos fiscalizadores", continuou o autor do PL.
O governador já confirmou que a matéria será sancionada. "Eu combinei com o deputado [Bobô] e com a bancada para a gente poder achar o momento ideal, em que faremos um ato de lançamento e assim vou sancionar a lei", afirmou o govenador, que é engenheiro agrônomo e foi secretário estadual de Desenvolvimento Rural (SDR) entre 2015 e 2018.
Está previsto, dentro do Projeto de Lei, a instalação do Sistema Unificado Estadual de Sanidade Agroindustrial Familiar, Artesanal e de Pequeno Porte (SUSAF) na Bahia, que se propõe a ser um sistema com as atenções voltadas ao público citado na sigla. Não está especificado com detalhes, porém, como funcionará o novo sistema e como serão propostas as mudanças no segmento.
Produtores na ilegalidade
É proibido que um produtor comercialize seus itens de origem animal fora da área de alcance da sua certificação. Por exemplo: um pequeno produtor em Salvador que só tiver a certificação do Sistema de Inspeção Municipal (SIM) da capital baiana não pode vender seus itens em Juazeiro. Para chegar ao Vale do São Francisco, o item precisa do selo do Serviço de Inspeção Estadual (SIE), do Sistema de Inspeção Federal (SIF) ou do Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (SISBI-POA).
O que é o SISBI-POA?
Antes do PL de autoria de Bobô, uma outra política pública se propôs a ampliar as possibilidades de comercialização de itens de origem animal para pequenos produtores e agricultores familiares, embora não seja destinado exclusivamente a eles: o Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (SISBI-POA).
A Agência de Defesa Agropecuária da Bahia (ADAB) recebe do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) a outorga para exercer a fiscalização dos produtores com o selo do SISBI-POA, que podem comercializar seus itens em todo o país, mas ao contrário do Serviço de Inspeção Federal (SIF), não podem exportar para o exterior.
Para receber a certificação do SISBI-POA, o produtor precisa ser de um município que faz parte de um consórcio licenciado. "É um processo de evolução que os consórcios puderam ir se estruturando. Quando o Governo do Estado adotou uma política de apoio ao serviço de inspeção municipal, então foram diversos convênios assinados entre consórcios públicos e o estado da Bahia, que puderam capacitar os consórcios", disse o prefeito de Castro Alves e presidente da Federação dos Consórcios Públicos da Bahia (FECBAHIA), Thiancle Araújo. A Bahia tem 29 consórcios públicos multifinalitários intermunicipais, que abrangem 395 dos 417 municípios da Bahia, distribuídos por 27 territórios de identidade. Dos 29 consórcios, 22 estão associados ao SISBI-POA.
Pequenos produtores contam suas histórias
Da pequena Casa Nova, município do norte baiano com 72.086 habitantes, a queijeira Nia começou com a certificação municipal, o SIM, mas já pretende receber o SISBI-POA, o que permitirá a comercialização de seus queijos em Petrolina, cidade pernambucana a 60 km. “A maior dificuldade que eu tive com SISBI, mas que não foi tão assustadora assim porque eu já vinha cumprindo as normas do SIM, foram as planilhas, pois há mais planilhas do que eu pensava”, conta Nia.
“Agora dependemos de poucos ajustes para [ter] o SISBI, que são a aquisição do proscópio e do tanque”, alega a queijeira, que produz 3 kg por dia junto com o marido e os dois filhos. No início, quando Nia produzia 400 gramas diárias, seu queijo era vendido na feirinha da cidade. Seu crescimento e formalização surgiu quando servidores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) conheceram seu trabalho.
“A gente foi em uma associação em que ela [a Embrapa, com seus representantes] estava. Chegando lá, aconteceu uma roda de conversa e falaram que eu produzia queijo. Aí [os servidores da Embrapa] me perguntaram se seria possível visitar minha propriedade e eu disse que podia, que ficaria muito grata”, continuou.
Os frutos da visita foram novas tecnologias e cursos, como o de sanidade animal. Para Nia, os pequenos produtores e agricultores familiares que estão na clandestinidade não deveriam ter medo de buscar as agências reguladoras. “Vale a pena sair da clandestinidade. Quando se diz que vai se receber um órgão fiscalizador, o pequeno se treme todo, achando que vai ser multado e que sua mercadoria será apreendida. Mas, se você chegar junto, conversando, a gente sempre vai vencendo. Foi o que aconteceu comigo”, argumenta Nia.
Posicionamento semelhante tem Fred Jordão, que veio do povoado de Lagoa de Dentro, no município de Miguel Calmon, e que está à frente da cooperativa Coopag Alimentos, que produz e comercializa iogurtes para toda a Bahia. “Enxergo o órgão fiscalizador como uma consultoria grátis para o meu negócio. Quando o fiscal chega e diz que eu preciso melhorar em algo, vai dar um prazo. Trinta, sessenta ou noventa dias para você se adequar. Se você perceber que não consegue adequar o seu negócio dentro desse prazo, você vai colocar um ofício dizendo para ele que não foi possível cumprir. E normalmente eles aceitam [postergar o prazo]”, conta.
O primeiro empreendimento de Fred foi de polpa de frutas, há 24 anos. Por ser de origem vegetal, as polpas requeriam licença do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) para serem comercializadas. Na época, o atual diretor-comercial da Coopag pedalava em uma bicicleta para recolher as frutas. A transição para os iogurtes foi desafiante, segundo Fred, pois ele descobriu na época que a cooperativa não tinha nenhum tipo de autorização para produzir laticínios.
“Não era possível ter a licença estadual porque se exigia que a gente construísse um pé direito da indústria, pois foi construído baixinho. Então, ficamos uns seis ou oito meses sem inspeção nenhuma, de forma ilegal”, narra Fred, que desconhecia o serviço de inspeção municipal. “Se eu soubesse, migraria para a inspeção municipal e depois migraria para a estadual, como estamos hoje”, alega. A Coopag hoje tem o selo do serviço de inspeção estadual e busca o selo federal do SISBI-POA.
Para o governador Jerônimo Rodrigues, o medo que muitos pequenos produtores e agricultores familiares têm dos serviços de inspeção tem a ver com gestões anteriores às do PT no Governo do Estado. “No passado, o papel da ADAB e do MAPA [Ministério da Agricultura] era punir mesmo. Era uma disputa para favorecer os grandes. Os grandes protegiam-se e os pequenos eram perseguidos”, argumentou o petista, que enxerga uma mudança das gestões nestes órgãos a partir de Lula em 2003, no Governo Federal, e a partir de Jaques Wagner no Governo do Estado, em 2007.
“ADAB não pode existir para a punição. A ADAB tem que ter seu papel de garantir a segurança de um produto de qualidade. Se está dentro do padrão, ele não tem que ficar perseguindo. Não é a ordem de ninguém da gente”, disse. “Nós criamos um outro ambiente. Só que nesse ambiente, a transição é lenta mesmo. Então, nós vamos fortalecer a cultura do conhecimento e da assistência técnica para garantir que ele [pequeno produtor e agricultor familiar] possa produzir, beneficiar e comercializar com qualidade”, concluiu o governador.
ADAB analisa flexibilização das regras sem deixar cuidados
O diretor-geral da ADAB, Paulo Sérgio Luz, diz enxergar que a ADAB passa por um novo momento. “A ADAB vai estar mais fortalecida com a chegada do SUSAF, pois é mais um instrumento para credenciar e trazer para a legalidade muitos pequenos produtores de alimentos que hoje estão na clandestinidade. Isso vai aumentar a renda, os empregos e a autoestima do proprietário”, afirmou.
O SUSAF, assim como acontece como as prefeituras que emitem o SIM, será fiscalizado pela ADAB. “A ADAB leva a fama de ser muito dura, mas na verdade ela é cuidadosa com a saúde. A gente lida com a saúde da população”, justifica Paulo Sérgio.
“Obviamente, a gente está procurando a forma mais segura para flexibilizar mais essa legislação. Estamos discutindo inclusive a elaboração de um novo decreto de inspeção sanitária no nosso estado, de novas portarias, que mantenham a qualidade dos produtos, mas também facilitem que empreendedores que não dispõem de selos de inspeção passem a ter esses selos”, conclui o diretor-geral da ADAB.
Autor do PL que propõe a instituição do SUSAF, Bobô diz ter sido bom o diálogo com a ADAB. “Essa pecha que alguns colocam na ADAB, de que é burocrática demais, eu não vi isso. Eu enxerguei técnicos preocupados, claro, em fazer com que esses pequenos produtores, sobretudo de agroindústrias de pequeno porte, possam comercializar seus produtos, desde que passem, claro, pelas inspeções”, afirmou o deputado estadual.
Por sua vez, o diretor de inspeção sanitária da ADAB, José Ramos, diz enxergar que o diálogo tem sido eficaz. “A ADAB sempre tem todas as suas atividades baseadas em legislação. Acredito que com o SUSAF não será diferente. Dentro do que nós compreendemos que está sendo construído, a própria ADAB terá também a possibilidade, a oportunidade de estar cada vez mais capacitando, treinando e orientando principalmente os serviços municipais”, disse Ramos.
“O objetivo do SUSAF deve ser atender um grupo caraterizado especificamente como muito pequenos, de micro e pequeno porte, principalmente voltado à sua capacidade produtiva. Para que quem sabe essas possam futuramente migrar para um SISBI-POA”, continua Ramos.
Presidente da Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), empresa vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR) responsável por tarefas que vão do saneamento rural até a construção de agroindústrias e malhas viárias, Jeandro Ribeiro enxerga que a viabilidade do SUSAF se torna possível por conta de políticas públicas anteriores.
“Ele [SUSAF] sozinho não poderia resolver nada [para pequenos produtores e agricultores familiares]. Ao longo dos anos, várias ações precisavam ter seu marco regulatório. Foi assim em 2009, quando o ex-governador Jaques Wagner criou a lei de cooperativismo. Em 2010, quando ele criou o selo de certificação de agricultura familiar. E em 2014, quando criou a SDR [Secretaria de Desenvolvimento Regional]. Isso tudo são os marcos regulatórios que foram traduzidos em ações efetivas”, argumenta.
“Fizemos uma fotografia em 2018 e percebemos que, dos 417 municípios baianos, apenas 43 tinham leis de inspeção sanitária aprovadas em suas Câmaras Municipais. Então, a gente se debruçou sobre esse problema, convidamos os consórcios públicos a estarem presentes nessa ação e hoje temos mais de 300 municípios com leis de inspeção aprovadas em suas Câmaras Municipais. A partir desse cenário, percebemos que era preciso dar um passo seguinte, que era a ampliação do raio de permissão desses produtos transitarem, então chegou o SUSAF”, concluiu Jeandro.
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes