DIAS CONTADOS
Bahia se prepara para fechar o Hospital de Custódia e Tratamento
Prevista em lei e reforçada por resolução de Conselho, desativação total está prevista para agosto
Por Jane Fernandes
O Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico da Bahia, situado em Salvador, não recebe novos internos desde o dia 31 de janeiro e será totalmente desativado em agosto deste ano. Com o fechamento da unidade destinada ao cumprimento de medidas de segurança por pessoas com doenças mentais, a sociedade tem questionado o destino dos 179 internos, resposta que está sendo analisada caso a caso, segundo informado pelo Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA).
Supervisor do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do TJ-BA, o desembargador Geder Luiz Rocha Gomes ressalta que o tema é antigo, pois essa mudança está definida em uma lei aprovada há 23 anos, mas ganhou novo fôlego após o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) baixar a Resolução 487, no ano passado, determinando o cumprimento da Lei 10.216/2001.
A iniciativa do CNJ resultou na criação de um grupo de trabalho (GT) com diversos órgãos e instituições - na Bahia e vários outros estados - do âmbito jurídico e do setor de saúde, para estabelecer o procedimento a ser adotado com novos casos de pessoas inimputáveis em conflito com a lei e também o encaminhamento dos internos do Hospital de Custódia e Tratamento (HCT).
“Hoje tem um mapeamento das estruturas do Estado, Caps (Centro de Atenção Psicossocial), unidades hospitalares com vagas especializadas, até rede privada conveniada com o Município com ou com o próprio Estado. Tem mapeamento de Samu, de transportes municipais, dos próprios organismos de assistência social, e das unidades prisionais no interior onde você dispõe de algum serviço de saúde, por exemplo para fazer os exames de insanidade mental”, explica o desembargador.
Segundo Gomes, o GT elaborou uma espécie de manual com o passo a passo para cada situação. “Antes era uma decisão judicial pura e simplesmente, agora não. Agora é preciso que haja uma orientação da área de saúde sobre o que fazer com esse paciente. O médico vai dizer se é o caso de remédio A, remédio B, se é um caso de atendimento ambulatorial, se é um caso de internação…” exemplifica. “Você muda a concepção de punição para acompanhamento por saúde”, reforça.
Adequação
Um dos integrantes do Grupo é o Ministério Público do Estado, por meio da 4ª Promotoria de Justiça de Execução Criminal. Embora a Lei 10.216 determinasse a internação de pessoas com doenças mentais como medida de exceção, a promotora Andréa Ariadna observa que não era o que estava acontecendo com aqueles em conflito com a lei, acrescentando haver encaminhamento para o HCT até em delitos que não ensejariam privação de liberdade - caso fossem cometidos por pessoas sem doença mental.
Tanto para recepcionar novos casos quanto para absorver os internos do Hospital é preciso ter rede de atenção psicossocial. A promotora lembra que alguns serviços desta rede são previstos apenas para municípios de maior porte, a exemplo dos Caps, obrigatórios para populações acima de 20 mil habitantes. “Isso não quer dizer que a atenção psicossocial não seja obrigatória. Ela precisa existir e o município precisa apresentar uma solução para isso”, pondera.
Parte fundamental desta articulação, a Secretaria da Saúde do Estado (Sesab) afirma que “esse processo de desinstitucionalização vem sendo feito de forma cuidadosa, levando em consideração a procedência das pessoas, a vinculação com o Caps local, com a casa onde vai morar e com os outros moradores que lá estão”. Ainda segundo a Sesab, o Estado tem garantido incentivo financeiro para a implantação e custeio de Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) nos municípios. Atualmente, a Bahia tem 15 SRTs.
Em nota, a Secretaria de Administração Previdenciária e Ressocialização (Seap) aponta estar trabalhando em conjunto com as instâncias de saúde para “promover o retorno dos internos com medidas de segurança extintas e liberados pela Justiça para o convívio social”. O HCT é uma unidade sob gestão da Seap, que aponta ainda que muitos internos “já perderam os vínculos familiares e estão há mais de dois anos com a medida de segurança extinta”.
Diante do cenário apresentado, a União dos Municípios da Bahia (UPB) defende “a necessidade da capacitação dos atores envolvidos e a destinação de recursos para a concretização dessa política no município”. A UPB alerta para uma sobrecarga para a gestão local, pois “é na esfera municipal, onde, de fato, o cidadão acessa os principais serviços públicos e ter mais essa responsabilidade acarreta a formulação de nova estrutura para atender a demanda imposta”.
A preocupação é reforçada pelo Conselho Estadual de Secretários Municipais de Saúde da Bahia (Cosems), que aponta “a falta de estrutura mínima para implementação da política antimanicomial e dos aspectos relacionados à segurança dos pacientes e profissionais de saúde envolvidos”. Apesar da tensão, o Cosems enfatiza seu reconhecimento da “necessidade de assegurar, às pessoas em sofrimento mental custodiadas, dignidade, acolhimento humanizado e atenção integral à saúde”.
O desembargador Geder Luiz Rocha Gomes aponta que a maioria dos internos do HCT são do interior, mas aqueles sem laços familiares tendem a permanecer em Salvador. A Secretaria Municipal da Saúde está ciente dessa demanda e sinaliza, em nota, que ampliará o número de beneficiados com acompanhamento na capital, “por compreender a realidade densa de estigmas relacionados às pessoas que cometeram delitos para que retornem aos seus municípios de origem”.
Luta antimanicomial
Especialista em segurança pública e professor da Faculdade de Direito da Ufba (Universidade Federal da Bahia), Misael França relata já ter trabalhado no sistema prisional, tendo a oportunidade de conhecer a realidade do Hospital de Custódia e Tratamento (HCT). Com base nesta vivência, ele afirma que a unidade se aproximava muito mais de uma penitenciária do que de um hospital.
“Tem a finalidade de permitir que pessoas consideradas inimputáveis ou semi-imputáveis possam cumprir uma modalidade de sanção penal que é uma resposta ao desvio, à prática de um injusto penal”, conta França, sobre o objetivo desses hospitais. Ele acrescenta que “essa sanção penal deve ter a finalidade de tratamento até cessar a periculosidade do agente”.
O professor ressalta que essa mudança é parte da luta antimanicomial e tem acontecido em todo o mundo, reafirmando as pessoas com doenças mentais como cidadãos com direito ao convívio social. “O dilema é como fazer isso!”, alerta, observando a necessidade de maior envolvimento da sociedade civil e dos profissionais de saúde mental nessa discussão.
Falta de articulação
Com visões divergentes sobre a desativação do HCT, o presidente da Associação Psiquiátrica da Bahia, Rogério Jesus, e a coordenadora da Comissão de Saúde do Conselho Regional de Psicologia da Bahia (CRP-03), Chaiane dos Santos, concordam na crítica à ausência de articulação com os profissionais da saúde mental nesse processo de desinstitucionalização dos internos.
Para Chaiane dos Santos, a desativação do HCT é um avanço importante na política antimanicomial. Ela cita a existência de pesquisas que apontam um perfil predominante de pequenos delitos entre os internos desses hospitais em todo o Brasil. Outro aspecto ressaltado pela psicóloga é a constatação de muitos casos de longa permanência, com pessoas sendo esquecidas e abandonadas nesses locais por décadas.
“Vemos com muito temor, muita preocupação”, afirmou Rogério Jesus sobre a posição da Associação. Ele reconhece a privação de liberdade imposta pelo modelo dos HCTs, mas argumenta que o paciente “está no local com acompanhamento de profissional de saúde, tem avaliação técnica contínua, recebe a medicação correta, o diagnóstico e tudo que é possível ser feito para a patologia dele”. Em sua avaliação, fora desse ambiente não há garantia plena de oferta e adesão ao tratamento.
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