SAÚDE
Falta de emendas pode piorar crise em instituições filantrópicas
Santas Casas, Hospitais e Entidades Filantrópicas lamentam ausência de contrapartida em PEC aprovada no Senado
Por Daniel Brito
A crise que os hospitais filantrópicos e Santas Casas da Bahia e do Brasil enfrentam já não é nenhuma novidade. Importantes na assistência de saúde à população, essas instituições enfrentam grandes dificuldades financeiras. No estado, 52% delas estão endividadas com empréstimos bancários, segundo informações da Federação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas do Estado da Bahia (Fesfba).
A informação foi revelada pela presidente da entidade, Dora Nunes, em entrevista ao Jornal A TARDE no fim de abril. A situação, no entanto, pode se agravar. É que na quinta-feira passada, 2, o Senado Federal aprovou em plenário a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 11/2022, que visa garantir um piso salarial aos profissionais da enfermagem, como enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, além de parteiras.
O problema é que o setor tinha a expectativa de que uma emenda à proposta também fosse votada, o que não foi feito pelo relator da matéria, o senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP). A emenda previa que a União seria responsável por garantir às entidades filantrópicas e sem fins lucrativos o repasse financeiro para que elas tivessem condições de cumprir a lei, sem piorar a situação financeira. Em nível nacional, a Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB) lamentou o ocorrido.
Para Dora, caso a situação não seja revertida na Câmara, onde o texto ainda será votado, a nova lei sem a contrapartida financeira seria uma espécie de pá de cal jogada nas instituições brasileiras e baianas. A curto prazo, porém, isso não faria com que os locais fechassem por completo.
“Há instituições que fazem desde a parte laboratorial a atendimentos de média e alta complexidade. Algumas são as únicas de um município, como a de Campo Formoso, por exemplo. Elas buscarão diminuir custos e aumentar as receitas. E isso implica em fechamento de serviços e demissões, inclusive da categoria da enfermagem, uma vez que o impacto financeiro é direcionado para essa categoria”, afirma.
Ela alerta que o reajuste salarial sem o repasse federal representaria um impacto de 50% na folha de enfermeiras e enfermeiros. E, no caso dos técnicos de enfermagem, que são o maior contingente, um acréscimo de quase 120%. “Nenhuma entidade conseguirá arcar com isso. Posteriormente, se não houver soluções e a elaboração de políticas públicas que possam aportar recursos financeiros para essas entidades, muitas irão fechar as portas por completo”, adverte.
Subfinanciamento do SUS
O maior problema, ou a causa raiz de toda a situação, no entanto, é o chamado subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS), pelo qual as instituições atendem a população. A chamada tabela SUS, que estipula os valores dos serviços médico-hospitalares prestados pelos estabelecimentos conveniados à rede pública, não é atualizada há 15 anos, e não acompanhou o mercado de saúde em diversos fatores, como a inflação, aumentos de salários, convenções coletivas, reajustes de salários, entre outros.
Segundo a Confederação Nacional das instituições, desde o início do plano real, em 1994, a tabela SUS e seus incentivos foi reajustada, em média, em 93,77%, enquanto o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) aumentou 636,07%, o salário-mínimo em 1.597,79% e o gás de cozinha em 2.415,94%.
Dora Nunes analisa que o modelo de repasse utilizado pelo Ministério da Saúde está completamente errado e que a União possui o maior poder, mas ressalta que a responsabilidade deve ser compartilhada também entre estados e municípios. “Se paga por procedimento e com base nessa tabela. As contas não fecham. Entretanto, a responsabilidade de garantir a saúde, como está na Constituição, é tripartite, ou seja, envolve também estado e município. Todos têm a obrigação e a responsabilidade legal de financiar o SUS”, destaca.
Ela também defende que exista uma lei que obrigue um repasse igualitário a todas as instituições, sem que algumas recebam a mais ou a menos do que outras.“ Há estados que não entram com nenhuma contrapartida nos contratos dessas entidades, municípios que também não entram, outros entram. Esse também é outro ponto que se deve trabalhar. Não pode haver diferenciação”, enxerga.
“Se, por exemplo, o estado da Bahia entra com contrapartida de determinado percentual no financiamento dos contratos dessas entidades, ele tem que entrar para todas e não somente para aquelas escolhidas. E isso vale para os municípios também. Deveria ser transformado em lei para que não houvesse algumas disparidades contratuais que vemos, onde alguns recebem incentivos e outros não”, enfatiza.
O Portal A TARDE procurou as secretarias de saúde de Salvador (SMS), do Estado (Sesab) e o Ministério da Saúde. A Sesab afirmou que compreende os desafios do setor filantrópico, “sobretudo no que tange à necessidade de reestruturação financeira”. Segundo a pasta, por mês são destinados cerca de R$ 50 milhões do tesouro estadual para diversas entidades filantrópicas e santas casas.
“Isso justifica-se pelo entendimento de que, na ausência ou oferta insuficiente de determinado procedimento ou serviço de saúde pelo poder público, as entidades filantrópicas e santas casas são os parceiros preferenciais do SUS. Historicamente, os filantrópicos são responsáveis direta e indiretamente por aproximadamente 50% dos serviços relacionados à saúde pública”, destacou a secretaria.
Já a SMS e o Ministério da Saúde não retornaram a solicitação até o fechamento desta reportagem.
Déficits milionários
No caso das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), uma das maiores instituições filantrópicas do estado, o déficit é de R$ 24 milhões, e esse valor ainda pode aumentar em R$ 20 milhões até o final de 2022, totalizando R$ 44 milhões. Há cinco anos, os repasses federais não são reajustados. Para tentar amenizar a situação, em fevereiro a entidade solicitou um aporte financeiro urgencial ao Ministério da Saúde, mas até hoje não houve resposta positiva.
“Quando vamos analisar as contas do hospital, o dissídio coletivo - reajuste obrigatório dos funcionários - causou um custo para a instituição de R$ 19 milhões durante os últimos cinco anos. Foi o suficiente para causar um desequilíbrio enorme, sem falar nos insumos cada vez mais caros, como luvas, aventais e máscaras cirúrgicas, que não aumentamos o consumo, mas em 2019 gastávamos “x” e hoje, em 2022, gastamos “x + R$ 4 milhões”, expõe a gestora de saúde da Osid, Lucrécia Savernini.
“É uma conta que se torna impossível de ser fechada, e só não está maior por causa das economias que fazemos na instituição, pois nosso perfil é fazer o máximo com o mínimo. Mas o pouco está tão pouco que é impossível e insustentável se manter em uma situação como essa”, continua, revelando que a instituição vem pagando juros de R$ 100 mil por dívidas bancárias.
A Osid realiza 3,5 milhões de procedimentos ambulatoriais por ano, além de 23 mil cirurgias e 43 mil internamentos, além de servir cerca de 2,1 milhões de refeições aos pacientes.
Outra instituição que enfrenta dificuldades na capital, mas que também atende todo o estado, é o Hospital Martagão Gesteira, com foco no público infantil. A unidade possui um prejuízo mensal de R$ 700 mil reais. Antes mesmo da pandemia, os recursos obtidos pelo SUS já não cobriam as despesas e geravam um déficit mensal que variava entre R$ 450 e 500 mil.
Um relatório mais recente recebido em maio pela gestão do Martagão e que comprova as dificuldades foi o de que, apesar do custo da diária das Unidades de Terapia Intensiva (UTI) girar em torno de R$ 2.400 por mês, a instituição recebe apenas entre R$ 800 e R$ 1.200, o que gera a maior parte do déficit, segundo Carlos Emanuel Melo, presidente da Liga Álvaro Bahia Contra a Mortalidade Infantil, mantenedora do hospital.
O que ajuda a aliviar as contas, segundo o gestor, são as doações fixas que o hospital recebe. “Nós temos uma política de captação de recursos e uma estrutura de apoiadores que fazem doações mensais. É com esse recurso que conseguimos equilibrar as contas. Sem isso, não seria possível”, diz.
“Mas gostaríamos de usá-lo [o recurso] para melhorar a qualidade dos serviços, como na ampliação, reforma, estrutura e na aquisição desses equipamentos novos. Acabamos ficando privados disso, pois ele é utilizado para cobrir o déficit”, lamenta. Ao todo, o Martagão atende mais de 28 especialidades médicas, 80 mil pacientes por ano e realiza mais de 500 mil atendimentos.
A Santa Casa de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, também não escapa ilesa a essa realidade. Segundo o provedor da instituição, Luiz Costa Araújo, a unidade - que atende também as cidades do entorno - tem um déficit mensal de R$ 140 mil.
“Aprendemos a viver. Quando vamos fazer a compra de materiais e medicamentos, eles já entendem que o hospital tem o problema do déficit do SUS. Então vendem, damos o cheque pré-datado, parcelamos a fatura, paga quando pode. É na base de uma economia de palito”, lamenta.
Como resolver?
Enquanto a situação não muda de forma estrutural, as instituições vivem à base de doações, além de ajustes administrativos na tentativa de economizar sem prejudicar o atendimento aos pacientes. as contribuções da sociedade civil é que ajudam a pagar as dívidas.
De acordo com a presidente da Federação, o setor tem feito uma campanha para que as entidades não tomem mais empréstimos bancários para que não aumentem as dívidas, puxando para a União, estados e municípios a responsabilidade de financiar o SUS.
“Mas não dá para afirmar que elas vão seguir essa cartilha pois, na hora que o fornecedor bate à porta, na hora que a folha de pagamento fecha e os funcionários precisam receber, os gestores se desesperam e vão buscar esses empréstimos”, conta Dora.
Em relação à PEC 11, em particular, ela não crê que a situação possa ser revertida, mas a expectativa é de haja uma alternativa. “Existem algumas tratativas referentes à legalização do jogo do bicho, onde o percentual poderá ser direcionado às entidades filantrópicas na tentativa de fazer esse equilíbrio dos contratos. Há também outra sobre a arrecadação municipal onde a instituição está localizada, em que um percentual de um eventual aumento de impostos municipais poderia ir para ela.
“Mas são situações que também precisam passar por todo o processo burocrático que é exigido no Congresso para que virassem realidade, e o nosso temor é exatamente esse. Estamos em um ano eleitoral onde há limitações de prazos para que matérias sejam aprovadas e entidades não suportarão mais aguardar uma burocracia com as portas abertas”, alerta.
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