BAHIA
Vítimas resgatadas de exploração no trabalho reconstroem vida na Bahia
Associados recebem materiais e equipamentos para produzir alimentos saudáveis e garantir renda
Por Da Redação
Equipe do Projeto Vida Pós Resgate, coordenado pela Fundacentro, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), realizou visitas às associações de trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão. Os trabalhadores também receberam materiais durante o mês de abril. Eles têm se dedicado a diferentes ações, como a construção de instalações, preparação do solo ou cultivo agrícola.
Atualmente, o programa apoia três associações no território do sisal baiano, em Conceição do Coité, São Domingos e Monte Santo, a Vidacacau, em Una, e a Associação Agroecológica de Aracatu Bahia (Aagroab), em Aracatu.
Criação de ovinos
Os empreendimentos serão iniciados em locais cedidos gratuitamente em regime de comodato às associações. Cada aprisco, que já tem projeto técnico, poderá abrigar até 200 animais em regime de confinamento, método de criação escolhido pelas dimensões reduzidas dos terrenos. “A criação dos animais inicialmente terá maior dependência da compra de insumos, sendo subsidiada nos primeiros ciclos e buscando gradual independência por meio das receitas das vendas, e ampliação da renda dos associados, com o incremento da produção interna da alimentação dos borregos.”, acredita o coordenador da Fundacentro.
Nas últimas semanas, os associados receberam materiais e equipamentos e iniciaram os trabalhos para a construção dos apriscos, como limpeza e nivelamento. Assim que estiverem prontos, serão adquiridos insumos, como alimentação e material veterinário e, por fim, os borregos (filhotes dos ovinos) para o início da criação propriamente dita. Os trabalhadores vinham de um processo de reuniões, oficinas, discussões e trâmites burocráticos para a formação e formalização das entidades, como as Associações Coité do Sisal e Vida Pós Resgate do Sertão.
Uma equipe do Vida Pós Resgate esteve em Conceição do Coité e São Domingos, para se reunir com os associados, prefeituras e colaborar na organização das atividades, em 23 e 24 de abril. Também foi a Monte Santo para se reunir com os trabalhadores e visitar as atividades de construção do aprisco nos dias 25 e 26. Nas três cidades, as associações contam o com apoio técnico das prefeituras, que disponibilizaram profissionais para auxiliar os trabalhos.
“A tomada de inciativa pelos associados, particularmente de modo horizontal e coletivo, é algo complexo, mas essas etapas iniciais de trabalho têm sido muito promissoras e podem colaborar para a formação de uma identidade sólida que faça frente aos inúmeros desafios que se colocarão às entidades”, avalia Vitor Filgueiras.
Produção de hortaliças e verduras
A Aagroab é outra associação com formação incentivada pelo Projeto Vida Pós Resgate. Localizada em Aracatu, é composta por trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão na colheita de café no interior de São Paulo.
Um conjunto de insumos suficiente para o início da produção de hortaliças está à disposição da associação. São caixas d´água, material de construção para a instalação de bases para acomodá-las, elementos para a irrigação, equipamentos, ferramentas, fertilizantes e uma variedade de sementes de hortaliças, frutos e verduras - quiabo, milho híbrido. abóbora jerimum, alface, coentro, tomate, couve, cenoura, beterraba, pimentão, pimenta malagueta e pimenta de cheiro.
O transporte dos materiais, a preparação dos terrenos e a construção das bases para apoiar as caixas d´água estão em execução. Entre os itens já transportados para o início das atividades, estão 9 caixas d´água de 10 mil litros, bomba centrífuga, fita de gotejamento, mangueira para irrigação, roçadeira, calcário, luvas, perneiras e óculos de segurança, protetores auriculares, aventais de proteção, enxadas, machados, sombrites, carrinhos de mão, facões, tesouras, cavadeiras, botinas e botas-chuva galocha.
As atividades produtivas serão desenvolvidas em três terrenos de associados cedidos para o uso pela entidade. Os associados decidiram se dividir em equipes de trabalho, segundo afinidade e localização. Um técnico agrícola, vinculado à prefeitura, orientará os trabalhos a partir da agroecologia. A associação conseguiu fazer seu registro no Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF) como pessoa jurídica, permitindo o acesso às políticas públicas de apoio, como financiamento e participação em editais públicos.
Para um acompanhamento mais sistemático das atividades produtivas, a Fundacentro selecionou uma bolsista de extensão para acompanhar a implementação da produção em uma perspectiva orgânica ou agroecológica, com foco na saúde e segurança dos trabalhadores e da comunidade. No dia 26 de abril, representantes do MPT, da prefeitura de Aracatu, da direção da Aagroab e da Fundadentro se reuniram, de forma on-line, para alinhar o apoio do município às demandas da associação.
Na ocasião, a prefeitura se comprometeu em ceder um engenheiro para apoiar as atividades necessárias em cada terreno, fornecer gasolina para que trator fazer serviços de preparação do solo para plantio nesses locais, além de conceder três meses de cestas básicas para apoiar o trabalho dos associados neste momento.
“Quando a produção das hortaliças estiver minimamente organizada, será possível voltar a pensar na adoção do sistema inspirado na Embrapa, seja com a criação de frangos, seja aproveitando a experiência com os ovinos do território do sisal", afirma Filgueiras.
Associação mais consolidada
O apoio do Vida Pós Resgate a uma associação de trabalhadores resgatados está mais avançado em Una. Trata-se da Associação Vidacacau, formada por trabalhadores resgatados em Ilhéus e Cabrália e seus familiares. O cadastro nacional de pessoa jurídica (CNPJ) da associação ocorreu em setembro de 2022, mas ainda não realizou cadastro no CAF.
A compra da Fazenda Pimenteira, com 23 hectares, duas nascentes e energia elétrica, em nome da Associação Vidacacau, foi consumada em um ano, tempo menor do que o intervalo médio de experiências de assentamento rural. “Os associados decidiram se mudar imediatamente após a formalização da compra, sem organização prévia, optando por ocupar as edificações precárias existentes. A prefeitura disponibilizou aluguel social para aqueles que preferissem ficar na cidade. Além disso, o projeto paga uma ajuda de custo temporária, sem qualquer contrapartida obrigatória, para que os associados possam se engajar no desenvolvimento da Vidacacau e assim possam trabalhar e tocar suas vidas autonomamente”, conta Filgueiras.
Para melhorar as edificações, o Projeto forneceu material para a realização das reformas, como tijolos, cimento, areia, brita, barras de ferro, caixas d'água, sacos de argila, telhas de fibrocimento, portas, fechaduras, dobradiças, janelas, vasos sanitários, tanques de fibra, assentos sanitários, lavatórios de plástico e de louça, pias, fios condutores, bocais de lâmpada, tomadas, lâmpadas de led, vasos sanitários, chuveiros, tanques e pias de cozinha. Um arquiteto foi ao local para dar assessoria sobre os possíveis trabalhos. Atualmente, das quatro edificações, duas estão sendo reformadas por alguns dos associados.
Na parte produtiva, a Vidacacau recebe apoio material e técnico do Projeto, da prefeitura e do governo do estado. O Vida Pós Resgate já forneceu à associação bombas para distribuição de água (umas delas à gasolina, para não depender exclusivamente da energia elétrica), roçadeira, sacos de calcário, sementes variadas para subsistência e comercialização, por exemplo, de quiabo, coentro, abóbora, alface, milho híbrido, couve manteiga, tomate e pimentão. Também foram entregues rolos de tela metálica para galinheiro, kit de segurança para roçadeira, regadores, foices, enxadas, cavadeiras, carrinhos de mão, botinas e botas. No dia 15 de abril, cinco mil mudas de cacau clonado foram fornecidas pela biofábrica do governo da Bahia para a fazenda Pimenteira.
No entanto, alguns conflitos internos dificultam a mobilização e conscientização dos associados sobre seu papel na associação. “Tem sido muito difícil que os associados se assumam como protagonistas, assumam que a associação é deles, e não fiquem esperando e atribuindo aos outros os problemas que são de sua responsabilidade resolver, inclusive os pessoais”, explica a procuradora do Trabalho, Lys Cardoso.
Nos últimos três meses, integrantes da equipe central do Projeto estiveram quatro vezes na fazenda para assessorar as atividades, com reuniões e oficinas sobre associativismo, resolução de conflitos, cotidiano administrativo da associação, técnicas e procedimentos para produção rural comercial e de subsistência, noções contábeis e financeiras.
“As famílias da Associação Vida Cacau estão contando com apoio técnico e insumos de elevada qualidade, numa região de solo fértil e regimes regulares e abundantes de chuvas. Considerando o período para início das primeiras colheitas dos cacaus recém-plantados, estão aptos a desenvolverem atividades agrícolas de ciclos curtos, com as sementes e insumos já adquiridos, capazes de gerar renda às famílias e ofertar segurança alimentar de subsistência. Dessa forma, esperamos que ao menos uma parcela dos associados se engaje efetivamente no desenvolvimento das tarefas e do trabalho na terra”, completa Ivan Barreto, agrônomo e doutorando em economia, integrante da equipe central do Vida Pós Resgate.
No dia 22 de abril, uma equipe do projeto esteve na fazenda Pimenteira para a realização de oficinas de produção agrícola comercial e de subsistência e orientação prática contábil financeira. Com o técnico agrícola cedido pela prefeitura, os associados foram orientados sobre o manejo das mudas de cacau. Também houve esclarecimentos sobre o plantio das sementes de culturas intermediárias, como milho, abóbora e quiabo, abordando o cultivo e manejo consorciado.
Na ocasião, destacou-se a importância de medidas sanitárias e de segurança no local para preservar a saúde de todos, além das hipóteses de atividades de subsistência para garantir a soberania alimentar dos associados, como a criação de aves. Por fim, foram coletadas amostras de solo para análise. Na parte contábil financeira, foram repassadas orientações sobre o cotidiano burocrático da associação, como os registros diários da associação, a prestação de contas e emissão de documentos, formalização de atas e decisões sobre entrada, saída de associados e resolução de conflitos.
Sobre o projeto
O Vida Pós Resgate promove associações para a produção de alimentos saudáveis, por trabalhadores resgatados da escravidão contemporânea, buscando garantir renda suficiente para torná-los livres do mercado de trabalho e da necessidade de sair de seus locais de residência. O apoio às associações se baseia em dois pressupostos básicos: que não tenha assalariamento na produção das associações, ou seja, que haja igualdade entre os participantes e democracia nas decisões; e que a produção busque um viés orgânico ou mesmo agroecológico, preservando a saúde dos associados e da comunidade.
O projeto busca facilitar todo o processo de formação e desenvolvimento das associações, das entrevistas e reuniões após o resgate, formação dos associados, provimento material dos empreendimentos, até o apoio para uma distribuição da produção. A compra dos meios necessários, como máquinas, equipamentos, instrumentos, animais, sementes e terreno para a produção, tem ocorrido com recursos de danos morais coletivos, oriundos de procedimentos administrativos do MPT ou processos da Justiça do Trabalho.
A preparação dos associados inclui formação sobre associativismo, questões jurídicas, contábeis, financeiras e técnico-produtivas. Parte das atividades é realizada diretamente pela equipe central do projeto, incluindo visitas periódicas aos locais, e outra parte ocorre por meio de instituições parceiras, como as prefeituras – já que as cinco cidades possuem termos de cooperação com o MPT, o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), a Embrapa e organizações não governamentais.
“A meta de longo prazo do Projeto é garantir, a todos os resgatados do trabalho análogo à escravidão que desejem se engajar em atividades rurais, uma possibilidade sustentável de vida digna e verdadeiramente autônoma”, conclui Vitor Filgueiras.
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