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Legislação muda e reduz índice de casamentos de menores de 16 anos

Dados da Arpen-Brasil mostram 827 casamentos envolvendo jovens com 16 e 17 anos no ano passado

Publicado domingo, 21 de maio de 2023 às 05:35 h | Atualizado em 21/05/2023, 21:02 | Autor: Jane Fernandes
827 jovens com 16 e 17 anos assumiram casamentos em 2022 na Bahia
827 jovens com 16 e 17 anos assumiram casamentos em 2022 na Bahia -

O número de casamentos infantis registrados na Bahia caiu 32% entre 2019 e o ano passado, resultado da Lei 13.811/2019, que impossibilita autorização para o matrimônio de pessoas abaixo de 16 anos. Os dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) mostram 827 casamentos envolvendo jovens com 16 e 17 anos ao longo de 2022. 

Embora a legislação atual viabilize o matrimônio numa faixa etária da adolescência, a Organização das Nações Unidas (ONU) define casamento infantil como todo aquele envolvendo pessoas menores de 18 anos e busca combater essa prática. Mesmo sem mudanças recentes no arcabouço legal, nas últimas semanas a sociedade brasileira tem debatido o tema, por conta do casamento entre o prefeito de Araucária (PR), Hissam Dehaini, de 65 anos, e uma adolescente de 16 anos. 

Em 92,3% dos 827 casamentos infantis oficializados na Bahia no ano passado, a noiva tinha menos de 18 anos e o homem era maior de idade. Em 57 registros (6,9%), a situação se invertia, com o noivo tendo entre 16 e 17 anos, enquanto 26 casamentos (3,14%) foram realizados com ambos os cônjuges abaixo dos 18. 

Especialista em gênero e inclusão da Plan International Brasil, Ana Nery lembra que a mudança na legislação é resultado de uma longa mobilização de entidades e ativistas e, apesar de reconhecer o avanço obtido, argumenta ainda ser insuficiente. “Com 16, 17 anos, você pode casar com autorização judicial ou dos responsáveis. O que a gente pleiteia é que não tenha essa brecha, que o casamento antes dos 18 anos seja proibido”, declara.

Ana ressalta que não se trata de colocar o casamento como algo negativo, mas perceber que, de acordo com a ciência, adolescentes ainda estão em fase de amadurecimento no aspecto físico, biológico, psicológico e também nas habilidades socioemocionais.

“A gente entende que as políticas sociais, as políticas públicas precisam chegar a todos e todas, principalmente quem está numa situação de vulnerabilidade socioeconômica. Elas precisam chegar a todos os jovens, sobretudo as meninas que são as mais afetadas pelo fenômeno, para que o casamento não seja a única escolha possível dessa pessoa, dessa adolescente”, defende a representante da Plan.

Aos 18 anos é bastante provável que o ensino médio tenha sido concluído e se tenha um horizonte mais claro quanto a uma carreira profissional, o seguimento dos estudos, entre outros aspectos, pontua Ana. “Tenha um pouco mais de conhecimento sobre si, sobre o seu corpo, sobre os seus direitos sexuais, direitos reprodutivos, saúde sexual, saúde reprodutiva, já tenha acessado um pouco mais a política de saúde…”, completa. 

Naturalização

A naturalização do casamento informal na sociedade brasileira, em qualquer faixa etária, é um ponto a ser considerado e que não é alcançado pelas estatísticas oficiais. A organização Girls not Brides estima que mais de 2,2 milhões de crianças e adolescentes do sexo feminino são casadas ou vivem numa união estável no país, número correspondente a aproximadamente 36% dessa população.

Parte do povo romani, popularmente chamado de cigano, a ativista de direitos humanos Rebecca Souza, confirma que o casamento infantil está mais presente dentro dessa etnia, e na região Norte do país, onde vive, também ocorre com certa frequência fora desse grupo. “O que a gente tem que entender em primeiro lugar, tem que tirar essa ideia de que é cultura, não é cultura, é violência e vai ser violência para ambas as partes”, defende a ex-assessora da ONU Mulheres.

Ana Nery defende o tempo de ser apenas adolescente; casamento só após 18 anos
Ana Nery defende o tempo de ser apenas adolescente; casamento só após 18 anos |  Foto: Divulgação
  

Apesar do casamento infantil chamar mais atenção quando há uma grande diferença de idade entre os cônjuges, Rebecca ressalta que o mais comum no povo romani é ter ambos menores. “Quando a gente pensa em casamento infantil pensa muito na mulher, até porque tem a gravidez precoce e outras questões, quando a gente tem também meninos, que muitas vezes são obrigados a assumir um papel de homem, de provedor”, ressalta. 

Dados do Sistema IBGE de Recuperação Automática (Sidra) mostram que no estado de Rebecca, o Pará, quase 3% dos 34.563 casamentos registrados em 2021 envolviam menores de 18 anos. Na Bahia, a presença de cônjuges abaixo dos 18 aparece em cerca de 2% dos 60.794 oficializados em cartório. 

Nulidade

Ao apresentar números segmentados por idade, o Sidra chama a atenção para a existência de casamentos de pessoas com menos de 16 anos quando a Lei 13.811/2019 já estava em vigor. Na Bahia, o Sistema aponta um caso em 2021 e dois em 2020, no entanto, esses registros não constam nos dados da Arpen, segundo o presidente da Associação no estado, Carlos Magno. 

Magno afirma ser impossível ter clareza do que ocorreu sem informações que permitam localizar o processo, afinal são cerca de 600 cartórios de registro civil na Bahia. Ele considera provável ter havido algum equívoco no registro da idade dos noivos no cartório ou no fluxo de informações até a publicação das planilhas do Sidra. “A regra estabelecida pela lei realmente está sendo seguida e é de somente permitir para pessoas acima de 16 anos”, afirma. 

Caso tenha havido algum registro de casamento civil fora do determinado na legislação atual, que não prevê nenhum cenário para autorização de casamento abaixo dos 16 anos, esse matrimônio é totalmente nulo, explica a presidente da Comissão da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Bahia, Ana Caroline Silva.

“Como é um impedimento de caráter absoluto, então é como se não tivesse nem início, esse casamento não se consolida com o simples passar do tempo ou se esses jovens coabitam. O efeito dessa nulidade para o direito é como se esse casamento nunca tivesse existido”, reforça Ana Caroline. 

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