CRIME ORGANIZADO
TCP e a fé armada: entenda o domínio do tráfico evangélico
Laços entre BDM e TCP fortalecem o tráfico entre Bahia e Rio de Janeiro
Por Luan Julião

Uma estrela de seis pontas, também conhecida como Estrela de Davi, estampa o alto de uma caixa d'água em Parada de Lucas, uma das cinco comunidades que formam o Complexo de Israel, na Zona Norte do Rio de Janeiro. O símbolo, que remete ao personagem bíblico Davi, vencedor do gigante Golias, hoje marca um cenário de violência e disputa territorial. O local é o quartel-general do Terceiro Comando Puro (TCP), facção carioca em constante confronto com o Comando Vermelho (CV).
O Complexo de Israel é composto pelas comunidades de Parada de Lucas, Cidade Alta, Pica-pau, Cinco Bocas e Vigário Geral. O domínio da região pelo TCP reflete a ascensão do grupo criminoso nos últimos anos, consolidando-se como uma das facções mais organizadas e violentas do Rio de Janeiro.
Quem é o Terceiro Comando Puro (TCP)
O Terceiro Comando Puro (TCP) surgiu em 2002, após uma cisão interna do Terceiro Comando, desencadeada por disputas entre lideranças. A ruptura ocorreu dentro do presídio de segurança máxima Bangu 1, quando a eliminação de antigos líderes possibilitou a ascensão de novas figuras, entre elas Nei da Conceição Cruz, o "Facão". Desde então, a facção tem se fortalecido, travando uma guerra territorial contra o CV.
Atualmente, entre os principais líderes do TCP estão Thiago da Silva Folly, o “TH”, que controla o tráfico no Complexo da Maré; Bruno da Silva Loureiro, o “Coronel”, com atuação na Zona Oeste; e Álvaro Malaquias Santa Rosa, o “Peixão”, comandante do Complexo de Israel. A facção também já teve envolvimento com milicianos, o que impulsionou sua expansão territorial.

Além da violência, o TCP se destaca pelo uso de simbologia religiosa para legitimar sua autoridade. Muitos de seus líderes são evangélicos e utilizam a fé como forma de influência sobre as comunidades.
Religião e poder
De acordo com a teóloga e pastora Vivian Costa, autora do livro Traficantes Evangélicos – Quem são e a quem servem os novos bandidos de Deus (2023), os criminosos do TCP se autoproclamam "soldados de Jesus" e se denominam Tropa de Aarão, em referência ao irmão mais velho de Moisés. Além disso, a frase "Jesus é dono do lugar" se tornou uma assinatura da facção para reforçar o domínio territorial.
Quem chega de trem a Parada de Lucas se depara com a bandeira de Israel logo na plataforma da estação, na placa que saúda: "Seja bem-vindo ao Complexo de Israel." O uso do símbolo reflete não apenas um aspecto religioso, mas também uma estratégia de controle social e territorial.
A doutora em Ciências Sociais Christina Vital da Cunha analisa esse fenômeno em um de seus artigos:
"O símbolo do complexo é uma bandeira israelense, significando o domínio da Tropa de Aarão e uma religiosidade evangélica pentecostal, que, segundo os moradores, é a religião do Peixão. Vale destacar que o uso de símbolos nacionais não é novidade em bailes funk ou grupos armados em favelas e bairros mais pobres. Exemplos bem conhecidos incluem o 'Baile da Colômbia', a 'Tropa da China', o 'Estilo Bagdá' e o 'Estilo Afeganistão'. Em todos os casos, como visto no Complexo de Israel por meio de entrevistas e material de mídia, a referência à força militar das nações é identificada. De forma única, no caso do uso da bandeira israelense, além de referenciar um Israel imaginário, guerreiro, forte, há também uma referência religiosa não judaica, justamente cristã, apresentada por meio dessa estética. Nesse sentido, a 'cultura pentecostal nos guetos' constitui a base para a valorização de Israel e dos 'judeus imaginários'. O 'Deus dos Mandamentos' ressurge nas pinturas dessas favelas, enfatizando particularmente uma 'marca' do tráfico local, da dominação de um comando sobre o território, ao mesmo tempo em que informa sobre uma experiência religiosa e cultural hegemônica, especialmente a de Peixão neste Complexo de Israel."
Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão
Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão, é o chefe do tráfico no Complexo de Israel e um dos principais líderes do TCP. Ele controla territórios em Parada de Lucas e Cidade Alta, em Cordovil. A influência de Peixão se estende além das fronteiras do Rio de Janeiro, sendo uma peça-chave na aliança com facções de outros estados.

Laços entre BDM e TCP fortalecem o tráfico entre estados
Nos últimos anos, o TCP ampliou suas conexões com o Bonde do Maluco (BDM), facção criminosa baiana. No dia 10 de outubro de 2024, uma operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro prendeu oito integrantes do TCP no Complexo de Israel, incluindo o baiano Jeimes Cassiano Lisboa, conhecido como "Jeimes" ou "Lavezzi". Segundo as investigações, ele atuava como elo entre as duas facções, negociando armamentos e munições para fortalecer o BDM na Bahia.
Em novembro do ano passado, um comunicado atribuído a membros da facção criminosa Bonde do Maluco (BDM), que atua na Bahia, começou a circular nas redes sociais. O texto anunciava uma mudança na estrutura e na nomenclatura da organização, que passaria a adotar o nome de seus aliados cariocas, o Terceiro Comando Puro (TCP), em vez de BDM.
Assinado pela "família BDM", o comunicado justificava a mudança como uma resposta à "estratégia de sufocamento" imposta por facções rivais, mencionando especificamente o Comando Vermelho (CV).
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A nota também relembrava a trajetória do BDM, fundado em Catu em 2008 e expandido para Salvador em 2014, destacando sua busca por fortalecimento e expansão no cenário criminoso. Com a nova identidade de TCP, a facção afirmava querer reforçar a união entre diferentes complexos que integram a organização, como o Complexo de Israel, Complexo da Serrinha, Complexo da Maré, Vila Aliança e Complexo da Pedreira. "Juntos somos mais fortes", dizia o comunicado, enfatizando a importância de preservar suas tradições e símbolos.
Por fim, o texto informava que Salvador, sua Região Metropolitana, o interior da Bahia e outros estados ligados ao BDM passariam a ser considerados parte do TCP. A mudança pode representar uma tentativa de fortalecimento da facção diante da concorrência e das ações repressivas das autoridades.
Com essa aliança, as forças de segurança acompanham atentamente a ampliação territorial do TCP e do BDM, prevendo um aumento da circulação de armas e conflitos interestaduais.
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O "Banco Paralelo" do TCP
Além do tráfico de drogas e da extorsão, o TCP estruturou um esquema de lavagem de dinheiro no Complexo da Maré, movimentando R$ 43 milhões em apenas seis meses. Segundo investigações da Polícia Civil do Espírito Santo, a facção operava um banco clandestino, apelidado de "Banco Paralelo", que permitia a movimentação financeira entre criminosos.
O esquema envolvia a utilização de loterias, empresas de fachada e contas de laranjas para dificultar a detecção do dinheiro ilícito. A facção ainda utilizava a técnica de smurfing, fragmentando grandes quantias em pequenos depósitos para não chamar a atenção das autoridades.
O banco criminoso também organizava saques controlados, com valores que variavam entre R$ 40 mil e R$ 50 mil diários. Para quantias maiores, era necessário agendamento, semelhante a um banco tradicional. Segundo um delegado envolvido na investigação:
"Conseguimos encontrar comprovantes de depósito de várias pessoas para uma única conta no Rio de Janeiro. Quando aprofundamos a investigação, descobrimos o banco paralelo operando dentro do Complexo da Maré."
A estrutura da operação financeira era discreta: uma pequena sala equipada com máquinas de contar dinheiro, notebooks e celulares, onde operadores registravam todas as movimentações.
"Só no Banco Paralelo encontramos mais de 10 aparelhos celulares, várias máquinas de cartões de crédito e anotações que detalham todo o esquema de lavagem de dinheiro", revelou o subsecretário de Inteligência da Sesp-ES.
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