CINEMA NACIONAL
E se Lampião enfrentasse robôs? Esse filme baiano reinventou o sertão
Longa de animação de Ducca Rios transforma cangaceiros em figuras high-tech e revisita o banditismo sertanejo com estética steampunk

Por Rafael Carvalho* | Especial para A Tarde

Lá no início dos anos 2000, quando o cineasta baiano José Umberto Dias estava iniciando a preparação para o que viria a ser o seu longa de ficção Revoada (que só foi finalizado e lançado em 2015), o então produtor de objetos do longa – profissional ligado ao setor de direção de arte de um filme –, Ducca Rios, anteviu a possibilidade daquela trama ser uma história em quadrinhos.
Agora, muitos anos depois e já colecionando experiência como diretor de animações, Ducca lança na Mostra Internacional de Cinema São Paulo o longa Revoada – Versão Steampunk. É, de fato, uma releitura do filme de Dias em formato de animação, mas com um diferencial: o cangaço do filme ganha uma roupagem distópica, embebida em ficção científica, em que passado e futuro se misturam para revigorar os debates sobre violência, controle do Estado e opressão.
“Depois que eu fiz meu primeiro longa-metragem de animação, Meu Tio José [lançado em 2021], o primeiro longa brasileiro animado sobre a Ditadura Militar, eu pedi a José Umberto autorização para utilizar o roteiro de Revoada para eu fazer a minha visão do que era aquela história”, revelou Ducca em entrevista para A TARDE.
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Revoada – ambos os filmes – conta a história de alguns remanescentes do bando de Lampião e Maria Bonita depois que eles são mortos, dando início ao declínio do que se conhecia como banditismo sertanejo. Os que sobreviveram buscam vingança na medida em que são também caçados pela Volante, tropas especiais criada pelo governo brasileiro para combater o cangaço.
No filme de Ducca, entretanto, os cangaceiros são figuras metade humana e metade máquina, com braços ou pernas mecânicas, visores especiais e armamentos pesados como artefatos dignos de espiões high tech. Enfrentam um exército de robôs bem equipados e altamente letais, chefiados por um comandante que mais parece um líder fascista militarizado.
O filme fez sua estreia mundial na Mostra SP, na última quinta-feira, 16. Mas o longa contará com outra sessão dentro da programação do evento no dia 27 de outubro – desta vez, contando com a presença do diretor na sessão.
Sertão pop
O filme mescla muitos elementos de cultura pop com a identidade regional, nordestina e brasileira. Mas permanece a ideia central de pensar o cangaço como símbolo de resistência em meio à opressão social e mesmo geográfica. O cineasta disse também que nunca quis retratar a figura do cangaceiro como um herói.
“Ele é um bandido. Só que é também fruto do autoritarismo daquela época, de uma seca que foi projetada pelas castas dominantes e do abuso de poder dos coronéis contra o povo nordestino mais pobre, numa época em que o Nordeste era como uma terra sem lei. O cangaço é uma resposta a isso”, explicou o animador.
A partir desse viés, o diretor faz dessa sua versão um filme cheio de ação e adrenalina, incluindo aí a escolha em retratar a violência de forma muito gráfica e sem rodeios. O diretor cita, por exemplo, a influência de Quentin Tarantino, já que o cineasta norte-americano também gosta de usar animação em seus filmes.
“Eu homenageio, digamos assim, essa violência pop e estética do Tarantino, assim como eu busquei referências que vão desde a primeira versão de Duna, que seria feita por Alejandro Jodorowski, até a distopia de Mad Max, outra referência forte para mim”, revelou.

A própria ideia de essa ser uma versão em steampunk remete a uma estética que aliava a sociedade movida à tecnologia a vapor e mecânica, mesclada com uma ambientação retrofuturistas da ficção científica. No caso do cangaço, Ducca explica que é o couro que aproxima as duas coisas na sua obra.
“Para o cangaceiro, o couro era uma espécie de segunda pele, era a base de tudo. Como é para o vaqueiro. E isso cria uma referência estética que eu pude associar ao steampunk, que é também muito baseada no couro”, pontuou.
Atualidade da obra
Apesar de lidar com temas que remetem a um passado histórico sertanejo, o filme acaba mirando em discussões contemporâneas, especialmente na maneira como discute a presença das máquinas na sociedade. Os cangaceiros incorporam pedaços de maquinaria no seu próprio corpo, mas fazem isso para sobreviver e poder confrontar o inimigo que detém um poder tecnológico muito maior.
“No meu filme, eu deixo bem claro uma discussão contemporânea sobre o que é ser humano, especialmente com todo esse debate em torno da inteligência artificial. É algo que está entrando de forma muito feroz em todos os setores, sendo feita sem nenhum tipo de regulamentação”, alertou Ducca.
Ele revelou também que, desde que aceitou ter seu longa adaptado para uma animação, o cineasta José Umberto Dias não se envolveu mais com o projeto. Ele apenas viu o filme recentemente quando já estava pronto.
Nas suas redes sociais, sentenciou: “Adaptar uma obra é captar o lampejo da outra. Enquanto uma evoca o telúrico, terroso, a outra atira no espelho, punk. Assim se cruzam Revoada nas telas. Uma barroca, a outra sincopada. Há dois cangaços cinematográficos superpostos: um cria e outro recria. Moeda de duas faces”.
Com sua recriação, Ducca faz uma releitura do cangaço associada às discussões do seu tempo. Mas destaca também uma diferença crucial que existe entre os dois filmes: “Enquanto no filme de Dias o cangaço morre simbolicamente, na versão animada ele ‘ressuscita’. E essa suposta ressureição do cangaço representa, hoje e sempre, a resistência contra as forças da opressão”.
*O repórter viajou a São Paulo com apoio do evento.
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