DURA REALIDADE
Filme revela o que muitos tentam esconder sobre o crack em Salvador
‘O Primeiro Beijo’ dá voz às mulheres silenciadas pelo vício

Por Rafael Carvalho | Especial para A TARDE

Quando terminava o curso de Jornalismo e nem sonhava em ser cineasta, Urânia Munzanzu estava fazendo uma reportagem sobre mulheres que perambulavam pelo centro da cidade. Foi ali que ela conheceu Rilda, que vivia uma situação muito degradante nas ruas.
A tentativa de entrevistá-la não deu certo. Mas tempos depois, a mulher a abordou querendo que ela fizesse um filme. Munzanzu rebatia dizendo que não sabia fazer filme, era só jornalista. “Você não sabe ligar uma câmera?”, confrontava Rilda. “Você me filma e eu conto”, insistia.
14 anos depois e agora cineasta, Munzanzu lança nos cinemas O Primeiro Beijo, documentário que parte desse encontro, mas acabou ganhando um outro contorno temático: aborda a vida de mulheres negras atravessadas pelo uso dependente do crack, seja delas mesmas ou de pessoas muito próximas.
Rilda é uma dessas mulheres que emprestam a voz, o rosto e sua sofrida história para revelar a dura realidade dos adictos pela droga, em especial aqueles de uma parcela mais vulnerável da sociedade – a própria Rilda tinha o desejo de falar sobre o tema como uma forma de alerta.
Trata-se, portanto, de um filme duro, de tema indigesto que muitos gostariam de esconder, mas que pela câmera da diretora ganha um viés humanista, sem abdicar das dores que as trajetórias de cada uma já carregam.
Munzanzu começou então a investigar o tema e escreveu um projeto inicial de um documentário e, ao vencer o primeiro edital, começou a filmar os depoimentos de Rilda. Mas essa rede de tramas femininas só foi crescendo.
“Eu entendi que, embora tivesse sido Rilda que me fez esse chamado, esse era um tema que atravessava a vida de muitas mulheres negras”, pontuou a diretora em entrevista para A TARDE. Então, outras mulheres foram entrando no filme em depoimentos colhidos entre um longo período, de 2009 e 2019.
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Tratamento frontal
O Primeiro Beijo é um filme muito direto nas questões que busca abordar. Estão em evidência ali mulheres que vivem em situação de rua, outras que já passaram pelo sistema carcerário, que também sofrem violência física e psicológica, dentro e fora de casa, preconceito por orientação sexual ou dificuldade de conseguir emprego, tudo isso em confluência com o vício pelo crack.
“No filme, eu não estou interessada em me demorar na dor, em fazer uma exploração da situação desumana que essas pessoas vivem por conta da doença. Estou interessada em saber como é que elas estão lutando pela vida, alimentando alguma chama de esperança e desejo de futuro, apesar da droga e da total omissão do Estado”, revelou a diretora.
Munzanzu falou também da abordagem desenvolvida para conseguir colher os depoimentos. O primeiro ponto que facilitava a conexão é o fato dela ser também uma mulher negra, o que causa uma identificação imediata com as entrevistadas – a única diferença é que a diretora não deu “o primeiro beijo”, expressão que uma delas usa para falar do primeiro contato com a droga, que geralmente é crucial para o vício.
“Eu as deixava muito à vontade para falar o que quisessem, do jeito que elas quisessem. Eu ligava a câmera e a conversa ia desde o programa Minha Casa Minha Vida até como elas faziam o próprio crack”, revelou a diretora.
Ela contou também que filmou todos os depoimentos em um lugar fechado, fora das ruas, sem perigo e com discrição, oferecendo ali um lugar de acolhimento.
“Elas também se dispuseram muito porque têm consciência da urgência desse debate. Elas sabem que é preciso conversar sobre isso. O que elas não querem e não aceitam é a espetacularização que a mídia faz da dor delas. Elas querem falar, mas com o mínimo de dignidade”.

Ouvir as vozes
Outra escolha narrativa importante adotada por Munzanzu é que não há depoimentos de nenhuma autoridade ligada aos órgãos públicos nem algum especialista da área da saúde ou algo do tipo. A diretora contou que queria dar oportunidade para ouvirmos as vozes de quem a sociedade insiste em ignorar.
“Me interessava muito nesse filme a experiência do corpo que essa mulheres carregam porque essa é irrefutável. Nenhum argumento, nenhuma teoria daria conta disso. Como é que você atravessa o inferno e continua viva? Continua sonhando e pintando as unhas?”, questiona.
Nesse momento de debates e discussões em torno do Dia da Consciência Negra, celebrado ontem, O Primeiro Beijo oferece um ponto de vista penoso, mas salutar de ser encarado em termos de saúde pública. E, mais ainda, tratado a partir do contexto das lutas raciais e feministas que se imbricam fortemente na vida cotidiana dessas mulheres.

O Primeiro Beijo / Dir.: Urânia Muzanzu / Salas e horários: cinema.atarde.com.br
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