CINEMA
Laços familiares são postos à prova em filmes no Fest Brasília
“Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá” conta a história da cineasta Sueli Maxakali e seu companheiro, Isael Maxakal.
Por Rafael Carvalho | Especial para A Tarde*
O terceiro longa apresentado na competição do Festival de Brasília, “Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá”, continua na toada familiar, perfazendo um interessante processo de busca, dessa vez no contexto das vivências e da cosmovisão indígena.
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A cineasta Sueli Maxakali quer conhecer seu pai que vive em outra aldeia, andarilho sem pouso específico. Junto com o companheiro Isael Maxakali, também cineasta, mais o reforço dos não-indígenas Roberto Romero e Luisa Lanna na direção, Sueli empreende um processo de busca que, no caso daquela comunidade em particular, antes de ser voltado para o encontro físico, empreende uma busca pela retomada da narrativa.
“Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá” é essencialmente um filme oral, como dita a tradição milenar dos povos originários e como traço constitutivo do cinema que o casal indígena tem realizado nos últimos anos. Sueli e Isael têm se firmado cada vez mais no cenário do cinema independente brasileiro como cineastas engajados na produção de imagens e imaginários ligados às suas tradições, lutas e discursos.
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Mais do que forjar uma autoria específica, estes são filmes que empreendem uma criação narrativa imbuída de um sentido “indigenista”, se assim podemos colocar: possuem uma relação mais orgânica e menos intransigente com o passar do tempo, está baseado na troca oral das histórias e experiências, exercitam a escuta, especialmente dos mais velhos; cozinham, pintam, cantam e contam com a mesma toada dos afazeres do dia a dia.
A dinâmica da aldeia dos Maxakali é atravessada pela conquista recente da demarcação daquela terra indígena – a comunidade situa-se próximo ao município de Teófilo Otoni, no norte de Minas Gerais. E a separação entre pai e filha, que se deu ainda na primeira infância de Sueli, remonta ao período da Ditadura Militar em que muitos indígenas foram cooptados para servir na guarda policial, brutalmente separados de suas famílias.
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Daí que a experiência de ver “Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá” exige do espectador uma outra relação com a imagem e som de cinema, ao mesmo tempo que o filme tem a nos oferecer um recorte muito específico da constituição dessa família, mais os interpostos históricos que influenciam na formação e no rompimento dos vínculos sanguíneos dos indivíduos.
O sufoco das águas
Vem do Amazonas o quarto longa-metragem em competição neste Festival de Brasília. “Enquanto o Céu Não Me Espera”, da cineasta Christina Garcia, nos apresenta, antes de mais nada, uma geografia que se mostra inóspita a olhos menos treinados àquela realidade.
No interior do Estado, remoto e pobre, quase abandonado, uma família sobrevive em uma região de igarapés, isolada no meio do mato e cercada por um rio que não para de subir. Vicente (Irandhir Santos) e Rita (Priscilla Vilela) trabalham uma espécie de agricultura de subsistência, vivendo do plantio e colheita da juta, planta da qual se extrai uma fibra têxtil vegetal.
Recebem ajuda aqui e ali, mas sua antiga vizinhança minguou no últimos tempos. Quase todos foram tentar a vida nas cidades grandes, enquanto os dois, junto com seus três filhos, insistem em permanecer no local. A obsessão por ficar, na verdade, pertence mais a Vicente, já que aquele pedaço de território (não dá pra falar em terra, artigo raro ali), um casebre sobre as águas cada vez mais volumosas, pertencia a seus pais.
A necessidade de “aterramento” a partir das demandas familiares e identitárias vem sendo recorrente nos longas em competição do festival, e o filme amazonense envereda por esse caminho muito através de um sentido de resistência e persistência, não apenas pelas circunstâncias duras do trabalho, de que todos na família participam, até os filhos mais jovens – eles ainda são explorados por um poderoso local, a quem devem pagar uma espécie de tributo com parte daquilo que produzem, tal qual um sistema de vassalagem) –, mas sobretudo pelas intempéries implacáveis da Natureza.
A água não para de chegar, chove constantemente e o rio sobe cada vez mais, alagando a própria casa e escasseando a matéria-prima de subsistência, principal fonte de renda da família. “Enquanto o Céu Não Me Espera” é hábil em compor essa paisagem quase distópica. No entanto, o filme tem dificuldade em avançar nos conflitos para além do registro inóspito e peculiar que aflige aquelas pessoas, isoladas no tempo e no espaço. Prefere explorar apenas o sentimento de desolação que vai desestruturando o núcleo familiar até encontrar o seu limite.
*O jornalista viajou para Brasília a convite da organização do evento.
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