A TARDE contou história de João Agostinho de Moura, que passou anos preso por erros processuais
O excesso de animação durante uma festa iniciou o drama de João Agostinho de Moura. A adesão mal calculada a uma comemoração com foguetes usando uma arma de fogo desatou a série de acontecimentos que lhe levaram a cumprir uma pena de 11 anos sem assistência jurídica na Penitenciária do Estado. A liberdade chegou apenas quando o conselho penitenciário revisou a sentença e identificou diversos erros processuais. Mas já era tarde para João Agostinho, pois estava velho, doente e sem vínculos familiares. A história contada em detalhes na capa da edição de A TARDE de 14 de setembro de 1926 conduz aos caminhos dos entraves do sistema prisional que, em número significativo de casos, violentam as bases dos direitos elementares de cidadania.
O princípio da justiça, em tese, é que ninguém deve ser considerado culpado e punido até que se prove o delito com todas as possibilidades de defesa para o acusado. Mas para pobres e, especialmente, negros, essa regra continua exceção. No texto de A TARDE João Agostinho é classificado etnicamente, mas na categoria de sertanejo, o que de alguma forma o relaciona ao perfil das maiores vítimas dos casos de abandono no sistema prisional ou de punição além do que foi o delito ainda hoje: homens e mulheres de pele escura (pretos e pardos).
“O doloroso calvário de um sertanejo! Foragido nas mattas, ou nas grades da prisão foi um sofredor resignado. Na liberdade, João Agostinho só espera a morte”. (A TARDE, 14/09/1926, capa).
O tom dramático da chamada para a reportagem é adequado ao que se narra em seguida. João Agostinho era de Alegre e com a mulher e filho chegou à Santa Luzia. O município baiano que encontrei apenas com uma denominação parecida foi Campo Alegre de Lourdes, localizado no norte do Estado. A localidade mais próxima com o nome de Santa Luzia é um município, mas no território de Alagoas. O que fica na Bahia está na região sul e distante de Campo Alegre. A reportagem, infelizmente, não deu informações que permitam a localização exata, inclusive por conta das dinâmicas de desmembramento e outras ocorridas na criação dos municípios ao longo do tempo.
Em Santa Luzia, segundo o relato de João Agostinho, estava acontecendo uma ladainha. Quando houve a queima de fogos, muito comum nestas celebrações, empolgado, ele deu tiros para o ar com uma garrucha. Desafiado, depois de um bate-boca, fez mais um disparo. Houve a acusação de que acertou uma pessoa. Resolveu fugir.
Depois de oito anos desse dia, voltou a Alegre. Soube que a mulher e o filho estavam mortos e os parentes desaparecidos.
“Que fazer? Desconhecido na terra que fora sua, Agostinho andava assombrado. Preferiu ser punido, diz ele. Foi quando o prenderam”. (A TARDE, 14/09/1926).
Passou oito anos na cadeia local e depois foi levado para a penitenciária em Salvador onde cumpriu o resto da pena. Saiu em 1926 quando houve a revisão e a conclusão do conselho penitenciário da existência de falhas no processo condenatório. A resposta do Estado foi deixá-lo sob a responsabilidade da caridade do diretor adjunto da penitenciária.
“O ex- 73-como era conhecido na Penitenciária- está agora meio demente na residência do sr. José Araújo, diretor interino daquele presídio a quem ele chama de “meu protector”. (A TARDE 14/09/1926, capa).
Ciclo perverso
Everaldo Patriota, advogado há 39 anos, presidente da Coordenação de Acompanhamento do Sistema Carcerário do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), vice-presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB e membro do Conselho Nacional de Direitos Humanos desde 2015, afirma que casos como o de João Agostinho continuam a ocorrer com frequência. “Hoje vários Agostinhos são liberados para morrer até mesmo na porta do presídio. Somos o terceiro país do mundo em população carcerária. Diante da nossa população esse é um quadro aterrador, que se torna mais greve, na medida em que 35% a 40% da população carcerária é de presos provisórios que ainda não foram julgados. Vários destes sequer tiveram o direito a uma audiência de custódia”, completa.
Patriota citou dois casos parecidos ao de João Agostinho ocorridos este ano. Em setembro, Cícero Maurício da Silva, 63 anos, infartou na porta do presídio, em Maceió, de onde havia sido liberado após 32 dias de prisão por uma acusação antiga de estelionato. A ordem de prisão foi rastreada quando ele tentava tirar um documento de identidade. Há seis meses, um jardineiro, com o mesmo prenome, Cícero José de Melo, foi solto em Juazeiro do Norte, Ceará, depois de cumprir 15 anos por um homicídio que ficou comprovado não ter cometido.
São histórias como essas que Everaldo Patriota, militante no campo de direitos humanos desde a sua passagem pelo movimento estudantil, tenta, por meio das atividades de debate e denúncia, não deixar repetirem-se. Não tem sido uma batalha fácil.
“Da mesma forma que o sertanejo João Agostinho de Moura, dentre os 252/308 mil presos provisórios, se consideramos uma população de 720.000 mil presos, alguns milhares, quando forem julgados, já terão cumprido a pena, permanecendo no cárcere, mais do que a pena cominada na sentença. Outros tantos serão considerados inocentes, ou se constará que o seu caso não seria de pena de reclusão e por aí vai”, analisa.
Para Patriota, os casos de prisões sem os trâmites corretos revelam um sistema penal seletivo e profundamente baseado no racismo estrutural e institucional. “Nele se pune mais os negros e os mais pobres. Basta se constatar o perfil da população carcerária e ainda hoje o ex-73, como era conhecido João Agostinho, se enquadra nele que é o da maioria dos que estão nas penitenciárias”, diz Patriota.
Ele destaca a persistência de um modelo centrado na herança da escravidão, onde após a aprovação da Lei Áurea, em 1888, se criou o tipo penal de vadiagem e, sem trabalho, negros libertos estavam à mercê desse tipo de enquadramento. O advogado destaca também que o sistema judicial é majoritariamente formado por brancos - outro indicativo do racismo operando fortemente.
“O sertanejo ontem, o negro hoje, ainda são vistos como uma ameaça. Há algumas décadas o sertanejo era associado a jagunço, a cangaceiro, a um bárbaro. Tudo o que fizeram com o sertanejo João Agostinho de Moura, hoje se repete nas abordagens, lembrando que havia nas orientações operacionais de instrução das polícias militares, o seguinte: ‘se encontrar um negro malvestido, aborde, ele é um suspeito’. Ainda não nos livramos dessa chaga que foi a escravidão”, diz Patriota.
Não houve, nos dias seguintes, uma reportagem sobre o desfecho da tragédia vivida por João Agostinho de Moura. Só ficou a certeza de como ela continua se repetindo em muitos e muitos corpos parecidos ao dele.
A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE.
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia