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A Tarde Memoria

Por *Cleidiana Ramos

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 18 de setembro de 2021 às 6:04 h | Autor: *Cleidiana Ramos

Discursos em seções dirigidas às mulheres apontam para temor sobre a sua autonomia

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Os cabelos têm sido elemento comum a tensões de gênero | Foto: Cedoc A TARDE | 28.08.1988
Os cabelos têm sido elemento comum a tensões de gênero | Foto: Cedoc A TARDE | 28.08.1988 -

Na década de 1920, o corte a la garçonne, uma tendência no campo da moda, mexeu com um dos símbolos da feminilidade padrão: os longos cabelos. O nome em francês lembra que era Paris o principal centro difusor do que se considerava elegância no campo da estética, mas na prática a expressão significa cabelo curto, estilo garçom, ou seja, masculino. Dá para imaginar a repercussão dessa moda na Bahia, pois na edição de 15 de agosto de 1924, logo na capa, A TARDE alertou às mulheres que esse costume poderia ter um efeito colateral preocupante: calvície.

“A notícia não pode ser mais alarmante. Leiam-na as moças bahianas que acompanham a moda dos cabellos cortados e...acautelem-se. Em sessão annual da Associação dos Cabellereiros Norte-Americanos, Charlez Vistie leu uma nota inquietante para as senhoras que rendendo culto à moda usam hoje cabelleira à la Garçonne. Segundo a opinião desse technico de reconhecida autoridade, as mulheres ao fazerem cortar o cabelo, como os homens, correm o mesmo perigo de vir a sofrer de alopecia”. (A TARDE 15/08/1924, capa).

Imagem ilustrativa da imagem Discursos em seções dirigidas às mulheres apontam para temor sobre a sua autonomia
Capa da edição de 15 de agosto 1924 || 15.8.1924

A jornalista e doutora em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), Adriana Jacob destaca que corte a la garçonne fez sucesso entre artistas e ícones da moda dos anos 1920 exatamente por representar as conquistas das mulheres em relação à autonomia. Era o símbolo de que elas ousavam ter comportamentos antes acessíveis apenas aos homens.

“É o período em que muitas mulheres passaram a trabalhar fora de casa – inclusive em fábricas e indústrias, atividades antes exclusivas dos homens – e a usar calças. Era um corte de cabelo mais curto, mais simples de cuidar e mais seguro porque não se prendia nas máquinas da indústria. Portanto, os cabelos curtos representavam uma ameaça sim, mas não pela calvície, e sim por romperem as tradições do comportamento recatado das mulheres, aprisionadas a antigos padrões”, avalia Adriana Jacob.

Ela destaca o pseudo apelo científico para mascarar o visível temor de perda de controle sobre o padrão de comportamento das mulheres. Isso porque a explicação apresentada para o alerta foi comparativa e sem bases sólidas: se os homens que tinham o hábito frequente de cortar o cabelo ficavam calvos o mesmo aconteceria com as mulheres diferentemente do tempo em que elas só usavam o cabelo comprido. Por fim mais um alerta de que nos primeiros a calvície era tolerável. Já em relação a elas o problema seria considerado incontornável.

“Será esta a razão que determina a mulher da Europa a deixar a moda de cortar o cabello? Bom é que aqui se saiba e que haja uma prevenção “defensiva” porque se no homem pode passar e tolerar-se a falta de cabelos, o mesmo não se dá com a mulher, que tanto necessita do adorno da cabeleira, que é um dos marcos da sua belleza”. (A TARDE 15/08/1924, capa).

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Estética e saúde e moda | Foto: Cedoc A TARDE | 20.9.1930

Analisando da nossa confortável posição no século XXI, o texto pode ser lido provavelmente acompanhado de riso. Mas mesmo com toda a mobilização dos movimentos feministas, especialmente o das mulheres negras, estamos ainda bem próximas das tentativas reiteradas de nos deixarem aprisionadas por padrões, inclusive com o uso da saúde como justificativa.

Em uma rápida incursão por redes sociais milhares de conteúdos têm como especialização o treino “seca barriga”, o programa alimentar para queimar calorias ou o novo método de rejuvenescimento. Na cosmética voltada para os cabelos há um campo de guerra mesmo disfarçado com a capa de proteção à diversidade, afinal oferta-se produtos para cabelos cacheados e, mais timidamente embora de forma mais constante que em outros tempos, para os crespos.

Vozes silenciadas

Em 1930, A TARDE publicava a coluna denominada Feminina. Veiculada aos sábados, a seção trazia dicas sobre saúde, mas com foco na estética sob a rubrica “Consultório Médico”, além de conselhos sobre comportamento considerado ideal para vida afetiva e informações sobre o que era considerado atual na moda.

Em “Consultório Médico”, para Miralda, de Salvador, foi recomendado lavar a cabeça com sabonete de Araxá e em seguida enxaguá-los com água enriquecida por bicarbonato de sódio. A recomendação incluiu a a aplicação de um preparado com água de rosas e álcool. A fita aderente foi apontada como elemento central no processo de finalização do tratamento no estilo dos atuais “tutoriais” disponíveis no Youtube. A receita era para obter cabelos ondulados.

“Em seguida passe em torno da cabeça nastros de fita formando as ondas que deseja. Fique assim durante duas a 3 horas. Depois retire os nastros e verá como o cabelo estará geitoso. Tenha perseverança com este tratamento”. (A TARDE 16/08/1930, p.6).

Na mesma edição, dentre os conselhos sobre a vida afetiva, estava o que assegurava que as mulheres deveriam se casar a partir dos 30 anos. A justificativa foi a de que, nessa faixa etária, as preocupações com divertimento e “toilletes” seriam menores.

“Uma mulher de trinta annos já sabe que a vida não é essa ninharia de trapos de luxo essas diversões sociais por vezes bem más. E por isso será mais feliz e, portanto, fará mais tranquila e mais venturosa a vida do seu marido”. (A TARDE 16/08/1930, p.6).

Ainda nessa mesma página há uma série de dicas para agradar os homens: não “fazer” drama; ter cuidado com o que diz a ele em público; ser agradável aos familiares do seu companheiro, mesmo com aqueles que lhe causem aborrecimento e sempre ser pontual. E, nos casos dos dias de mau humor, guardar uma certa distância até esse sentimento passar.

“Por conseguinte, procura ser alegre, bondosa, interessada e interessante, generosa, em vez de bella. Nunca te canses com demasiadas carícias: porém tenha sempre preparado o teu amor para o momento opportuno e seja compreensiva quando se necessita comprehensão e sympatia”. (A TARDE 16/08/1930, p.6).

Não há muita diferença sobre o que se espera das mulheres ainda hoje por parte considerável do chamado senso comum, principalmente o masculino. Aliás esses dois trechos da coluna construíram parte da minha suspeita de que a autoria era de um homem, afinal o jornalismo ainda estava longe de se tornar uma atividade de maioria feminina como é hoje no Brasil.

Infelizmente, não encontrei ainda informações mais detalhadas sobre a seção Feminina de A TARDE, inclusive a sua autoria. Na edição de 16 de agosto, um texto sobre um levantamento demográfico com dados referente ao que parece a capital de Portugal, Lisboa, e a história de Edith Zeisler, uma dançarina que ficou 75 minutos equilibrando-se na ponta dos pés em Budapeste, o que foi considerado um recorde, veiculada em 20 de setembro, me levaram a considerar que a seção era produzida fora da Bahia ou até do país.

Para Adriana Jacob, os textos da coluna indicam que o tratamento dispensado às mulheres se baseava no entendimento de que elas eram seres em situação de fragilidade que precisavam de proteção e que tinham a função de satisfazer o outro, geralmente o homem. “Há um reforço da beleza como o ideal máximo das mulheres e, associado a isso, a moda como um de seus principais interesses. Isso se percebe nas diversas dimensões da vida da mulher apresentadas nos próprios títulos e seções da coluna: Consultório de beleza, A idade do casamento, O que interessa às mulheres e Contra a magreza, por exemplo”, aponta.

As observações de Adriana Jacob, que é autora da tese intitulada A "Bolada" das redes: um estudo sobre entrelaces de gênero, humor e mídia nas redes sociais onde foram analisadas questões de gênero no personagem Dilma Bolada, inspirada na presidenta Dilma Rousseff, mostram o quanto é importante a crítica sobre esses conteúdos em meios de comunicação. Adriana Jacob analisou, para a tese orientada pela professora Linda Rubim, as possíveis tensões e relações com questões de gênero nos textos criados por Jeferson Monteiro que vivia o personagem na rede social Facebook, especialmente durante o período de impeachment que levou Dilma Rousseff a perder o cargo.

A pesquisadora aponta as relações entre um texto contemporâneo e o publicado na coluna Feminina, na edição de 20 de setembro de 1930 em que se afirma que as mulheres “superiores” riem pouco e “sorriem mais”, ou seja, o riso aberto é indicativo de mau gosto e falta de educação. “Isso me remeteu diretamente à matéria "Bela, recatada e do lar”, publicada em abril de 2016 pela Revista Veja. São quase cem anos de diferença entre os dois textos, mas o perfil sobre Marcela Temer destaca a discrição e o recato como virtudes desejáveis para as mulheres do século XXI”, completa Adriana Jacob.

Ela apresenta ainda um outro dado: apesar do avanço na cobertura jornalística, inclusive o feito por mulheres, os estereótipos foram constantes na abordagem do governo de Dilma Rousseff, primeira mulher a assumir a presidência do Brasil. “Logo na posse de Dilma Rousseff, uma grande parte da mídia destacou que “a beleza” da vice-primeira-dama Marcela Temer roubou a cena. Era um momento histórico, em que pela primeira vez uma mulher chegava ao cargo máximo do Poder Executivo do país. Tantas questões fundamentais poderiam ser levantadas, mas esse foi o destaque que uma parte da mídia brasileira deu ao fato”, acrescenta.

Estas reflexões vêm reforçar o quanto é importante uma análise do jornalismo sob a perspectiva de memória. Forma de registro do cotidiano dia a dia, ele mostra exemplos para lembrar que o passado não é algo tão distante como às vezes acreditamos.

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE.

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

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