Em 2003 A TARDE iniciou série pioneira para celebrar o Dia Nacional da Consciência Negra
Intitulado Qual a sua cor? A Vida em um mundo racista, o especial publicado na edição de 20 de novembro de 2003 de A TARDE iniciou a trajetória de uma experiência pioneira em um jornal comercial: a elaboração de conteúdo especializado sobre questões étnico-raciais. Essa primeira publicação deu origem a uma série de 13 edições, veiculadas, anualmente, até 2015, com indicações e condecorações em premiações especializadas. Neste mês em que se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra, a coluna A TARDE Memória vai resgatar algumas dessas edições começando pela pioneira de 2003 e a de seis anos depois, que venceu o Prêmio Banco do Nordeste nas categorias Mídia Impressa Regional I e Mídia Impressa Nacional.
“Os Cadernos da Consciência Negra me pegaram como leitor e me transformaram em pesquisador. Foi leitura à primeira vista. Desde a graduação em jornalismo, as páginas deste fascículo me estimularam no aprofundamento pela compreensão da sociedade na qual estava inserido, mas que, de algum modo, até então, não encontrava representada”, avalia Hugo Mansur, mestre em Estudos Étnicos e Africanos e doutorando em Mudança Social e Participação Política pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP).
Em 2009, Hugo Mansur defendeu a dissertação intitulada Ebó de Palavras: uma leitura afirmativa das páginas da Consciência Negra em A TARDE (BA, 2003 – 2015), no Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Ufba (Pós Afro) sob orientação do professor Jesiel Oliveira e coorientação da professora América César. A cobertura especializada de A TARDE continua a guiar a pesquisa de Mansur.
“Estou dedicado a investigar os efeitos da presença de um jornalismo feito por, para e sobre negras e negros. Observo, com felicidade, a audiência construída ao longo dos 13 anos de circulação dos cadernos, que possibilitou o surgimento de atrações no rádio e na TV, dedicados ao que se propunha as páginas da Consciência Negra de A TARDE que era reportar as culturas, as identidades e religiosidades negras”, completa o pesquisador.
Experiências
Em jornal impresso, o tempo que nos norteia é com 24 horas de antecedência. Assim, hoje já é ontem quando se está escrevendo ou editando para este meio. Na manhã de 20 de novembro de 2003, portanto, eu estava entre o cansaço feliz de um desafio superado e a ansiedade de imaginar quando faria algo tão vibrante como as contribuições dadas para o especial que estava circulando naquela manhã em A TARDE. Antes de terminar o dia, a incerteza virou esperança de que a cada ano eu estaria de volta à adrenalina de produzir os conteúdos que me mobilizaram tanto, pois ficamos sabendo que a procura pelo jornal em banca estava maior do que normalmente, a ponto de se enviar para a rua os exemplares reservados para projetos institucionais.
Com 12 páginas, “ Qual a sua cor? A vida em um mundo racista” apresentou a influência do racismo na base das desigualdades e como até a ciência acabou por produzir obras que o referenciaram. Na página seis foram publicados depoimentos como o do ator Lázaro Ramos, que sofreu violência racial mesmo em meio à fama:
“Principalmente à noite, tenho dificuldade de pegar táxi e sei que isso acontece por causa da minha cor. Já fui seguido por segurança dentro de supermercados. Uma vez, em Salvador, fui sacar dinheiro em um banco depois das 23 horas. Quando estava saindo, fui abordado por policiais que estavam em uma viatura. Os policiais me revistaram e foram agressivos, jogando meus documentos de identidade no chão. Eu já fazia parte do Bando de Teatro Olodum, onde aprendi a me defender de atitudes como aquela, tão truculenta. O policial se justificava dizendo que eu era um tipo suspeito”. (A TARDE, especial Qual a sua cor? - A vida em um mundo racista, 20/11/2003, p.7).
Repórteres de A TARDE também contaram em primeira pessoa o resultado de uma experiência de campo que consistiu em passar a manhã percorrendo lojas de um shopping para observar o tratamento dispensado. Eu, por exemplo, experimentei a sensação de ser ignorada como consumidora na prática de um clássico do racismo que é o entendimento do agressor de que estamos fora do lugar que ele espera para nós.
Ao longo das páginas, o especial apresentou outras respostas para a enquete publicada de forma mais ampla na segunda página onde as pessoas foram levadas a se autodefinir do ponto de vista da cor da pele. As respostas foram variadas, como “negra”, “negão”, “café com leite”, dentre outras.
“A Bahia se apresenta aos olhos do mundo, como uma terra de convivência irmanada de todas as cores e crenças. Mas será que no dia-a-dia é mesmo assim? Um olhar mais profundo mostra que ainda estamos longe deste paraíso que poderia servir de espelho a um mundo dividido por ideologias religiosas e de raça. Aqui, o racismo se esconde. É tão forte que a maioria da população de pele escura continua a perder para a minoria branca. Hoje, Dia da Consciência Negra e dedicado a Zumbi, símbolo da luta que todo negro ainda precisa manter para ser cidadão, A TARDE mostra as respostas que foi buscar quando cor da pele está em jogo”. (A TARDE, especial Qual a sua cor?- A vida em um mundo racista, 20/11/2003, p.2).
O cuidado no tratamento editorial do caderno chegou até a capa do jornal. Uma das fotos do ensaio cedido para o projeto por Mário Cravo Neto foi aberta de cima a baixo. A manchete alertou: “Racismo - O crime sobrevive”.
Pauta ampliada
O especial começou a partir de uma pauta, que é a proposta de tema para uma reportagem. Em 2003, A TARDE estava em meio a uma reforma editorial gerenciada pelo jornalista Ricardo Noblat. Repórter de Economia, Daniela Silva fez a sugestão de construir uma reportagem sobre racismo em Salvador, cidade que se declara como a mais negra do Brasil. Noblat desenvolveu a proposta de que fizéssemos o texto, mas a partir da experiência de repórteres negros e não negros em lojas de um shopping. Em consulta ao professor Roberto Albergaria, uma das minhas fontes mais criativas, surgiu a possibilidade de ampliar o debate. O projeto de um caderno - um conjunto de reportagens em um único volume - foi elaborado, mas ele ficou à espera de uma ocasião especial.
Em outubro, quando voltei de férias, Ricardo Noblat já havia saído de A TARDE, mas Olenka Machado, editora-coordenadora da seção “Salvador” na época conseguiu aprovar o projeto de um caderno especial como vínhamos formatando. Além de mim e Daniela Silva, a equipe de reportagem contou com Manuela Barros e Gilson Jorge. A edição foi feita por Marlene Lopes. Iansã Negrão e Ana Clélia Rebouças criaram o projeto gráfico e esta última ainda realizou a diagramação, que é a distribuição de texto, fotografia e outros materiais gráficos pelas páginas.
No ano seguinte, Qual a sua cor? foi finalista do Prêmio Imprensa Embratel na categoria Regional Nordeste. Não levamos o prêmio, mas colocamos o debate sobre racismo no mapa de uma premiação que reuniu veículos do Brasil inteiro. Foi mais uma sinalização de que estávamos fazendo algo importante e novo.
Primeiro prêmio
Os cadernos sempre partiam de um tema geral. Para 2009 propomos o debate sobre como a cultura afro-brasileira inspirava negócios em Salvador. Identificamos informações surpreendentes como a renda anual de R$ 75 milhões, em média, na produção de cremes para cabelos crespos.
“Em Salvador, há uma forte presença de negócios inspirados na cultura afro-brasileira. Geralmente, eles são criados e gerenciados por negros. É uma economia que movimenta milhões, mas que ainda permanece de certa forma invisível nos levantamentos oficiais, por exemplo. É uma pena, afinal a população negra continua a ser a líder dos números de dificuldade de inserção no mercado de trabalho e o empreendedorismo pode ser uma saída para este problema. São questões como esta que este especial aborda. O nosso desafio foi mapear alguns destes negócios”. (A TARDE, especial Produtores de Owó, 20/11/2009, p.2)
O especial também destacou a moda especializada de estilistas como Saraí Reis, da Ifá Veste, e Madá Preta que começava a tornar a Negrif uma referência. O segmento de alimentação e os negócios relacionados às religiões afro-brasileiras presentes nas feiras e espaços especializados, como as galerias do Edifício Themis, situado na Praça da Sé, também foram abordados.
Produtores de Owó teve a novidade de mostrar alternativas para auxiliar a formação de jornalistas especialistas em questões étnico-raciais. Por meio de uma parceria com o Instituto Mídia Étnica (IME), a jornalista Juliana Dias, na época ainda estudante, foi selecionada para participar do especial. A proposta do IME é a de proporcionar cursos de aperfeiçoamento para estudantes negros dos cursos de comunicação social. Alana Fraga, Juracy dos Anjos e Tássia Correia completaram a equipe de reportagem. As fotografias foram de Haroldo Abrantes. Eu e Meire Oliveira dividimos a edição do caderno, mas também escrevemos textos. A coordenação de núcleo foi de Simone Ribeiro e Axel Augusto desenvolveu o projeto gráfico.
Com o projeto de convergência entre os canais do Grupo A TARDE, nos dias anteriores ao 20 de novembro eu e Meire Oliveira realizamos entrevistas com fontes especializadas, como o professor Jaime Sodré e o doutor em antropologia e professor da Ufba, Vilson Caetano Júnior, além de Saraí Reis e Madá Preta para A TARDE FM. Parte do conteúdo anunciado no caderno foi publicado exclusivamente no blog Mundo Afro hospedado no portal A TARDE.
A edição de 2009 foi reconhecida como referência por meio do Prêmio Banco do Nordeste, edição 2010, em duas categorias: Mídia Impressa Regional I e Mídia Impressa Nacional. Premiações são boas medidas para a busca da excelência e diálogo com os pares, mas a constante renovação dos cadernos era sempre encarada, por nós que os produzimos, como a maior das condecorações.
A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE.
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia