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A Tarde Memoria

Por Cleidiana Ramos*

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 13 de novembro de 2021 às 6:01 h | Autor: Cleidiana Ramos*

Fateiras mostraram poder de articulação fazendo greve em 1937

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Matadouro no Retiro abastecia as fateiras | Foto: Arquivo A TARDE
Matadouro no Retiro abastecia as fateiras | Foto: Arquivo A TARDE -

Em janeiro de 1937, A TARDE denunciou, por meio de reportagens, o descumprimento de um tabelamento de preços estabelecido pelop oder público municipal. Café, pão, carne, peixe e fressuras, denominação para um conjunto de partes do boi, como as vísceras, tiveram seus custos estipulados de forma fixa. Mas consumidores queixaram-se da falta de fiscalização para cumprir a determinação. Já os vendedores apontaram os altos custos para disponibilizar seus produtos. Diante desse impasse foi uma categoria formada majoritariamente por mulheres negras, as fateiras, que tomou a decisão de fazer uma greve.

“Um grupo de mulheres exaltadas discutiam com alguns homens, alegando cada qual as suas razões contra o tabelamento e o repórter foi ouvindo. Imagine, dizia uma mulher, que o abatedor entrega aos intermediários a fressura e ofato, por treze mil réise este nos vende por 14$ e 15$000 ficando com o fato, que, beneficiado, lhe rende cinco e seis mil reis e sujo 2$500 e 3$000”. (A TARDE 15/01/1937, p.2).

Demonstrando um conhecimento profundo do negócio em que atuava, a entrevistada, de quem, infelizmente, não foi registrado o nome, desfiou os custos que tinha para fazer seu produto chegar ao consumidor final: era dois a três mil reais de pagamento a quem ela chamou de ganhador, ou seja, quem transportava a mercadoria do abatedouro até ela sem incluir o preço do bonde; os 500 réis das taxas de fiscalização e outros:

“Ora o tabellamento nos obriga a vender tudo por 18$300, de accordo com os preços aqui marcados: fígado, 6$000 (pesando três quilos); coração 1$500; 2 faceiras 1$600; 2 bochecinhas, 1$200; 1 coto (rabo), 1$000, 1 miolo, 1$500; pé de língua, 1$; 1 língua 2$; 1 pulmão, 1$500; 2 fraldas, 1$, bocca de coração a garganta, $500 a 18$300”. (A TARDE, 15/01/1937, p.2).

Imagem ilustrativa da imagem Fateiras mostraram poder de articulação fazendo greve em 1937
Greve mudou rumo do tabelamento || 15.1.1937

A descrição pormenorizada do que se vendia dá algumas pistas sobre como se aproveitava praticamente tudo de um boi abatido na Salvador da década de 1930. Também é um indício do que era possível chegar à mesa de quem estava em uma faixa de baixa renda. A chamada “carestia”, assunto constante nos jornais, era um problema crônico não apenas na capital baiana, mas em todo o estado. Quando assumiu o governo em 1947, Otávio Mangabeira, por exemplo, diante de tantos problemas identificou o que chamou de “enigma baiano” e, dentre as providências determinou a recuperação do Matadouro do Retiro onde a maioria das fateiras adquiriam seus produtos.

Projeção

Doutoranda em Desenvolvimento Econômico, mestra em Economia e professora da Unijorge, a economista Karina Oliveira aponta semelhanças do contexto apresentado na matéria com o panorama atual não apenas da Bahia, mas do Brasil. “A alta dos preços da carne e de outros gêneros alimentícios estão levando os mais pobres a comprar vísceras e pés de galinha. Os processos inflacionários continuam a atingir de forma perversa os mais vulneráveis”, avalia a economista que é também analista de projetos sociais no governo da Bahia.

Embora o procedimento tenha uma certa complexidade devido a muitas variáveis como moedas com valores diferentes - no caso reis e real - Karina Oliveira conseguiu fazer uma estimativa que permite comparar o preço da fressura apontado na reportagem a valores atuais. Com base em um aplicativo do jornal Estado de S. Paulo, que calcula preços a partir de quanto custava o seu exemplar na década de 1930, a economista chegou a R$ 217, em moeda atual, como o preço equivalente da fressura em 1937, quando era vendida por 13 mil reis.

“Considerando que seja um mix de produto (vísceras) vendido sobretudo às classes socioeconômicas mais baixas, sem acesso aos cortes de carne, é um preço elevado. Em valores de hoje corresponde a quase 20% do salário-mínimo. Vale ressaltar que o salário-mínimo só foi regulamentado no Brasil em 1938, no primeiro governo de Getúlio Vargas, indicando que o preço era ainda mais impactante naquele período”.

Karina Oliveira aponta como as fateiras ocuparam um espaço em que as atividades comerciais formais não possuem tanto interesse. Além disso, os alimentos relacionados na matéria, como ressalta a economista, continuam presentes no cardápio da população baiana como o bife de fígado e o xinxim de bofe.

Herança de luta

Essa ocupação de mulheres, majoritariamente negras, no comércio de alimentos em Salvador tem detalhes reunidos e analisados no trabalho de referência desenvolvido por Cecília Soares, doutora em antropologia e professora da Uneb. Intitulado Mulher Negra na Bahia no Século XIX, o livro foi publicado há 15 anos pela Fundação Palmares e Eduneb. Em conjunto com Aline Santos, mestra em História pela Uneb e superintendente de políticas de Promoção de Igualdade Racial do município de Lauro de Freitas, a professora Cecília Soares analisou a reportagem publicada em A TARDE sobre a greve das fateiras. Aline Santos foi orientada pela professora Cecília Sores na elaboração da dissertação intitulada O trabalho em talhos e barracas: africanos, libertos, crioulos e escravizados em Salvador, Bahia (1850-1888), universo que dialoga com o ofício das fateiras.

De acordo com as duas especialistas, a notícia sobre a greve evidencia a permanência das mulheres negras no campo da venda de comida em espaço público, que foi ambulante quando elas circulavam com gamelas ou tabuleiros apoiados na cabeça, mas também funcionou em pontos fixos determinados pela administração da cidade. “Para além da questão do tabelamento, medida adotada pela Câmara Municipal para controle dos preços dos gêneros alimentícios, as mulheres na notícia de A TARDE, em 1937, denunciavam o não controle de fiscalização da tabela, o que refletia em seus ganhos diários trazendo prejuízos ao trabalho e subsistência. Essas medidas foram estabelecidas desde o período escravista e permanecem vigentes, apenas foram substituídas por outra legislação”, apontam as pesquisadoras.

Elas salientam que Salvador dependia desse pequeno comércio para o consumo de proteínas. Com a carne vermelha inacessível para os mais pobres, a articulação dessas mulheres para a oferta das partes menos nobres, mas que se tornaram pratos bem elaborados e que caíram no gosto popular com protagonismo ainda hoje, como a moqueca de fato, foi o caminho para a sua emancipação financeira. “Desse comércio as mulheres empreenderam e tornaram-se hábeis negociantes e nesse setor puderam conquistar, para além dos assíduos fregueses, o sustento delas e de suas famílias. Muitas eram mães solteiras”, afirmam.

As pesquisadoras destacam os muitos caminhos percorridos para a sedimentação dessa força feminina neste tipo de comércio, como a arrematação de barracas para a venda de carnes e vísceras. “O fato de protagonizarem a matéria de A TARDE para além da simples notícia, evidencia sua importância naquele cenário social. Eram mulheres negras, pobres, articuladas, atentas às flutuações da economia local, às leis que regulamentavam suas atividades, à fiscalização, exploração e desvalorização do seu trabalho”, avaliam.

Estratégia

A consciência e coragem dessas mulheres para defender a sua atividade fica evidente também na reportagem publicada no dia 14 de janeiro. Embora o tabelamento incluísse outros produtos, como o café, elas mostraram ter a consciência política de que ficavam em uma situação de vulnerabilidade diante da aplicação das medidas de repressão do poder público.

A reportagem do dia 14 mostra como um fiscal age contra um vendedor de peixe que desrespeitou a tabela apreendendo a sua mercadoria, mas não teve o mesmo ímpeto contra uma barraca onde se vendia café fora do preço tabelado. Além disso, no texto, o anúncio de protesto foi feito apenas pelas fateiras. Uma delas fez uma análise perfeita da situação política vulnerável em que estavam:

“O governo só persegue os pequenos. Veja o sr. que no Matadouro compramos pelo preço que nos vendem, sem reclamos e para vender quer obrigar a gente a não ganhar nada. Empata-se 20$000 ou mais para não se ter lucro nenhum ainda com o risco de perder, se fica podre”. (A TARDE, 14/01/1937, p.2).

A vendedora que fez essa declaração foi ainda mais longe. Ela revelou qual era a sua estratégia para manter a resistência contra uma operação de negócio que a prejudicava:

“Eu, de minha parte, não me sujeito. Já não compro o que comprava. Senão vender pelo preço que me convém levo para casa e faço comida para os meninos. Assim perco pouco, mas não dou gosto a ninguém. Como o governo não obriga os donos do box a vender barato?”. (A TARDE, 14/01/1937, p.2).

Imagem ilustrativa da imagem Fateiras mostraram poder de articulação fazendo greve em 1937
Matéria trata do planejamento da greve | Foto: A TARDE | 14.1.1937

A força dessas comerciantes era, ao que parece, significativa. Como um registro de última hora na reportagem sobre a greve, o prefeito de Salvador, José Americano da Costa, que foi cobrado nas duas publicações para cumprir o tabelamento, tomou uma decisão em relação às fateiras: ele determinou que a fiscalização municipal suspendesse qualquer ato de apreensão que envolvesse a atividade delas até que se chegasse a um consenso sobre o que fazer.

É por conhecimento de lutas como essa que um dos lemas dos movimentos de mulheres negras aponta para o reconhecimento daquelas que as antecederam: “nossos passos vêm de longe”. E realmente, ao que parece, eles se originaram muito além do que ainda imaginamos.

A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE. Para saber mais: Mulher Negra na Bahia no Século XIX (Cecília Soares, Fundação Palmares/Eduneb, 2006); O trabalho em talhos e barracas: africanos, libertos, crioulos e escravizados em Salvador Bahia (1850, 1888) - (Aline Santos Oliveira - Dissertação em História - Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras (PPGEAFIN), Uneb, 2021. Trabalho orientado pela Professora Dra. Cecilia Soares. Confira mais conteúdo de A TARDE Memória, no Portal A TARDE, e em A TARDE FM.

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia

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