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A Tarde Memoria

Por Cleidiana Ramos* | [email protected]

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 02 de outubro de 2021 às 6:01 h | Autor: Cleidiana Ramos* | [email protected]

Perfil do homem que foi zelador por 40 anos dos palácios de governo

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O imponente Palácio Rio Branco foi sede do governo da Bahia | Foto: Cedoc A TARDE |18.11.1984
O imponente Palácio Rio Branco foi sede do governo da Bahia | Foto: Cedoc A TARDE |18.11.1984 -

Amanhã, domingo, 3, essa coluna completa um ano. Para lembrar a sua estreia que trouxe como protagonista Jacaré, o orador que agitava as imediações do Palácio Rio Branco com discursos inflamados direcionados ao governador Octávio Mangabeira (1886-1960), a história de hoje é sobre outro personagem palaciano: Manoel Sant’Anna da Silva, um profissional de serviços gerais que trabalhou por 40 anos na sede do governo da Bahia e ganhou um perfil na capa da edição de A TARDE publicada em 15 de agosto de 1929.

O zelador Sant’Anna poderia ter sido uma excelente fonte para o jornalismo político, afinal começou seu trabalho em meio a uma mudança política, a Proclamação da República, e estava prestes a se aposentar em meio à ocorrência de outra: a chamada Revolução de 1930 que deixou o governo baiano sob intervenção federal por 17 anos.

“Depois de zelador, durante muitos annos, do palácio de residência, à Victoria, na Piedade e na Acclamaçâo, foi transferido para o palácio Rio Branco onde ainda trabalha”. (A TARDE, 15/08/1929, capa).

Segundo o texto, Manoel Sant’Anna tinha 18 anos quando começou a trabalhar no governo de Virgílio Damásio, o primeiro governador após a chegada da República que assim como aconteceria por quase cinco décadas seria marcada pela tensão na Bahia. Foram poucos dias dessa primeira passagem de Damásio, pois o objetivo ao que parece foi abrir caminho para o preferido de Ruy Barbosa: Manuel Vitorino.

No seu já clássico História da Bahia, Luís Henrique Dias Tavares (1926-2020) conta os detalhes do tumulto gerado em Salvador pelas notícias sobre a mudança de regime: boatos, tensão em unidades militares, disputas para a nomeação e por fim um acordo entre as elites locais.

“Empossado governador no dia 18, a 23 Virgílio Damásio transmitiu o governo a Manuel Vitorino Pereira, obedecendo insistente exigência do Governo Provisório, no qual Ruy Barbosa tinha posição decisória. Filho de imigrante português que chegou a proprietário de pequena fábrica de móveis, na qual o futuro médico, jornalista e político orgulhava-se de ter trabalhado como “simples operário”, detalhe que valorizava o seu esforço pessoal para chegar a médico de renome e professor da Escola de Medicina, Manuel Vitorino começou sua ascensão na política baiana em 1855 ao ser escolhido secretário do diretório do Partido Liberal na Bahia”. (História da Bahia, pp.298 -299).

Segundo Tavares, o primeiro governador no novo estilo não se considerava “republicano”. Chefe de redação do Diário da Bahia, um jornal de posição liberal, foi abolicionista e defendia a mudança do regime monárquico brasileiro de unitário para federativo.

“Conforme ele próprio se identificava, era liberal-federalista e admirador do regime presidencialista norte-americano. Na posição liberal-federalista, declarava-se correligionário de Ruy Barbosa”. (História da Bahia, p.299).

Após tomar posse, Manuel Vitorino dissolveu todos os partidos políticos que estavam atuando na Bahia e assinou atos organizando a área de educação. O ensino foi tornado público, obrigatório e leigo, além de contar com um fundo para o seu financiamento permanente.

Na política, o governador comprou uma briga com os latifundiários, chamados de coronéis por todo o interior baiano, quando resolveu nomear pessoalmente os intendentes, um cargo hoje equivalente ao de prefeito.

“Esse ato uniu os antigos liberais e conservadores aos republicanos históricos ressentidos com a nomeação para o governo de um estranho aos seus quadros políticos tradicionais e, ademais, com atuação personalista. Eles entenderam que o governador se preparava para ser o grande eleitor da futura Constituinte. Associaram-se e combateram-no”. (História da Bahia, p.300).

Com ataques direcionados de vários setores como os jornais e militares, Manuel Vitorino transmitiu o governo ao comandante das Armas, marechal Hermes Ernesto da Fonseca, que foi nomeado governador do Estado da Bahia. Em 2 de Julho de 1891, José Gonçalves da Silva, um proprietário de terras do município de Senhor do Bonfim e antigo membro do Partido Conservador do Império foi eleito governador republicano constitucional pelo parlamento que elaborou a primeira Constituição Republicana da Bahia.

Imagem ilustrativa da imagem Perfil do homem que foi zelador por 40 anos dos palácios de governo
Antônio Moniz foi o único governador de quem Manoel Sant’Anna queixou-se | Foto: Reprodução || 29.01.1980

Crises

A partir desses primeiros embates e arranjos, Manoel Sant’Anna deve ter presenciado, de forma privilegiada, o ir e vir de agentes importantes nas seguidas crises, como a da Guerra de Canudos, ocorrida de 1896 a 1897 quando o governador era Luiz Viana. Novas lideranças surgiram, como J. J. Seabra, e as oposições ferrenhas a estas.

Na foto que acompanha o texto publicado em A TARDE em 1929, percebe-se que Manoel Sant’Anna era negro. Ele está de terno, tem os cabelos totalmente aparados e um grande bigode. Nas declarações que lhe foram atribuídas fica evidente seu bom trânsito com políticos.

“No governo do dr. Araújo Pinho, meu patrão, dr. Severino me nomeou para a Alfandega, mas lá não fiquei. No governo do dr. Seabra, no primeiro, o cel. Faria foi me buscar para o palácio da Acclamação. Comecei ganhando 40$000 que naquelle tempo era mais do que 200$000, que eu tenho hoje e que me deu o dr. Calmon”. (A TARDE, 15/08/1929, capa).

Às vésperas da sua aposentadoria, que infelizmente não sabemos se conseguiu logo, Sant´Anna assistiu a 19 governos. O último, se levarmos em conta o ano em que o seu perfil foi publicado, era o de Vital Soares.

Com base nas informações do texto, Manoel Sant´Anna estava bem à vontade na condição de um homem que passava a rotina em um espaço de poder político. Tanto que não fugiu à proposta de fazer uma análise dos titulares que viu assumir o governo baiano. Fez a crítica apenas a um: Antônio Moniz, que governou a Bahia de 1916 a 1920.

“Todos são bons, meu amo. Dr. Virgilio não era mau homem; mas o aborreciam tanto que ele se zangava. Dos outros quasi não tenho que dizer. A falar verdade, queixa mesmo só tenho do governo do dr. Moniz. Eu estava no palácio da Piedade. Era uma trabalheira. Não tinha tempo para nada. Depois, foi ali que me inutilisei, por occasião da mudança, com um geito que dei no corpo. No dia da "carestia da vida" tomei uma pedrada. Um horror, meu amo., Quando ele saiu, deu emprego a todo mundo, e bons, de muito dinheiro, e a mim nada” (A TARDE, 15/08/1929, capa).

Imagem ilustrativa da imagem Perfil do homem que foi zelador por 40 anos dos palácios de governo
Edição publicou o perfil de Manoel Sant’Anna da Silva, que trabalhou em sedes do governo da Bahia por 40 anos || 15.08.1929

A aspiração de Sant´anna, portanto, era garantir a aposentadoria e um pouco de sossego, afinal, da posição privilegiada em que estamos sabemos das confusões que estavam prestes a chegar no ano seguinte.

“Vosmicê não acha que eu, que tomo conta de tudo há 40 annos, fiel, sem faltar nada e além disso me estraguei no serviço, tenho direito de me aposentar? — De certo, respondeu o Jornalista”. (A TARDE 15/08/1929, capa).

A história de Sant’Anna com projeção na capa do jornal tem muito a ensinar sobre o jornalismo. Uma das lições confirma a observação da professora Cremilda Medina, autora de obras como Entrevista – o diálogo possível, sobre a capacidade desse campo para alçar o anônimo ao protagonismo ao menos uma vez na vida. Geralmente é com esses personagens que as melhores histórias são contadas. Outra constatação é a de que fontes interessantes para o colunismo político podem estar ali à espreita do off por trás de uma função que muitas vezes é até invisível para olhos que enxergam, mas não veem além dos protagonistas do poder.

A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE, História da Bahia (Luís Henrique Dias Tavares, Edufba)

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia

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