Pesquisador analisa impactos de projeto pioneiro de A TARDE
Em homenagem ao Novembro Negro, quando se celebra a memória de Zumbi dos Palmares, os conteúdos de A TARDE Memória vão destacar temas relacionados à luta por cidadania da população afro-brasileira. A primeira destas edições dá destaque à publicação de especiais anuais realizada por A TARDE em 20 de novembro. Nesta edição virtual, o mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela Ufba e doutorando em Mudança Social e Participação Política pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP) analisa a importância desse projeto. Hugo Mansur vem pesquisando, desde a sua graduação, os Cadernos da Consciência Negra (CCN) de A TARDE.
Confira o artigo de Hugo Mansur
Para além das páginas do jornal
Hugo Mansur
Os feitos e efeitos da circulação ininterrupta da edição impressa dos Cadernos da Consciência Negra (CCN), publicados por A Tarde, ao logo de treze anos (2003 – 2015), ultrapassam as páginas do jornal e marcam, com notoriedade, a imprensa baiana. Os CCN, ainda pouco conhecidos e reconhecidos pelas empresas de mídia do país foram eficiente modelo estratégico, tão almejado pelas redações dos veículos nacionais, em trabalhar com temáticas da diversidade, em especial as pautas destinadas a reportar às culturas, identidades e religiosidades negras.
Encarte anual, o caderno especial nasce em 2003 favorecido por transformações internas e externas ao jornal. A virada de século estimula a reformulação do plano editorial, que abandona a cobertura dependente do auge da indústria musical dos anos 1990 e abraça o movimento de políticas afirmativas, implementado nas áreas da educação e segurança social.
Ano a ano, a crescente tiragem do jornal, nas datas do 20 de novembro, marco escolhido para levar aos leitores o fascículo engajado, não restringiu a presença do texto especializado à data comemorativa. O que se publicava como especial penetrou no cotidiano. Os CCN estruturaram uma equipe de jornalistas afrodescentes, que se dedicaram a atualizar as notícias de interesse da comunidade negra local, majoritária absoluta nas estatísticas demográficas.
Educativo, publicitário e militante, o CCN mobilizou reformulação editorial também para os demais cadernos e editorias do jornal. Se fez presente no cotidiano de seções como Cartas dos Leitores, Opinião, Esportes, A Tardinha, fascículo direcionado para o público infantil e reforçou às páginas do Caderno 2, o caderno de cultura, reduto de uma cobertura democrática, seção na qual historicamente o jornal publicou textos alusivos ao 20 de novembro.
Estiveram nas páginas de A Tarde recorrentes debates nas cartas dos leitores, repercutindo a cobertura originada pelos cadernos especiais. Nas prestigiadas páginas de Opinião vimos a introdução de articulistas negras e negros, de diversas áreas do conhecimento - incluídas duas ialorixás. Outro destaque é o surgimento da publicidade de homenagem, tanto de instituições públicas quanto privadas. Foram significativas as campanhas que trataram do Dia da Consciência Negra.
Os CCN atenderam como nunca antes a heterogeneidade social da audiência no território baiano. Com as páginas da Consciência Negra, o jornal renovou o público leitor, regimentou a possibilidade do surgimento de novas coberturas realizadas por outros veículos, tanto em rádios quanto tvs. Passamos a sintonizar programas hegemônicos tratando exclusivamente das religiões de matriz afro e sobre estima e beleza negra. Novas linguagens, novas imagens, novas diagramações, novas coberturas, renovados artigos, renovadas fontes preencheram as páginas de A Tarde entre um 20 de novembro e outro.
Nas palavras do leitor José Augusto Broasky: “Sou negro, a minha identidade confirma. Sou negro como a lama que protege pérolas finas. Sou negro sim. Sou o negro que quebrou os grilhões e as correntes, se livrou das chibatas e arrastou através do sangue o progresso para o futuro melhor. Eu sou negro, o que fazer se a minha identidade confirma? Sou o negro, o negro dos teus olhos que enxergam o brilho da vida. Por isso sou, simplesmente, negro”, lemos poema através da carta publicada em 25/11/2004, ano da segunda edição do Caderno de Consciência Negra, quando, cinco dias após sua circulação, os leitores ainda repercutiam seu conteúdo.
Hugo Mansur é doutorando em Mudança Social e Participação Política pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP) e, em 2019, defendeu a dissertação Ebó de Palavras: uma leitura afirmativa das páginas da Consciência Negra em A Tarde (BA, 2003 – 2015) no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da UFBA (Pos Afro), sob orientação e coorientação, respectivamente, dos professores Jesiel Oliveira e América César.