Reportagem de A TARDE mostra seguidas violências contra uma transgênero
Com altura mediana, 30 anos, e descrita como cabocla, uma moça chegou a Mutuns, distrito de Itabuna e situado a 20 minutos da cidade. Descalça e levando apenas uma trouxa com suas roupas estava procurando emprego “em casa de família”, como se dizia. Essa busca foi o que lhe fez viver um drama cercado de várias violências à sua dignidade como pessoa: foi parar na delegacia com a determinação de ser submetida a uma investigação de sanidade mental, além da suspeição de estar a serviço de Virgulino Ferreira, conhecido como Lampião e o mais temido líder do movimento denominado cangaço. O centro de todos os problemas em que esta mulher se viu veio da sua condição de transgênero na história que foi contada em detalhes na capa da edição de A TARDE do dia 6 de fevereiro de 1930.
O texto é curto, mas suficiente para registrar diversas violações a direitos que, infelizmente, continuam corriqueiras nas trajetórias de pessoas que são dissidentes a partir da perspectiva dos padrões normativos de gênero e sexualidade fixados na forma binária masculino-feminino. São 91 anos da publicação dessa reportagem em A TARDE, mas ela aponta como são necessárias as contínuas lutas dos movimentos que reúnem lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e as condições queer, intersexo, assexual e outras identidades que possam surgir a partir da complexidade humana e que por isso estão reunidas na sigla LGBTQIA+. Os debates sobre estas questões há cerca de 20 anos têm ganhado maior visibilidade na Bahia no mês de setembro, com diversas atividades por conta da realização da Parada do Orgulho LGBTQIA+ organizada pelo Grupo Gay da Bahia (GGB).
A personagem da história destacada em A TARDE foi exposta quando estava buscando trabalhar em um lugar distante da sua terra de origem: Santo Antônio de Jesus. A denúncia foi feita a partir da observação de um menino:
“— Essa mulher é homem! Olhem os pés della..
Começa então a discursão sobre o assumpto acreditando uns na descoberta do menino e outros não. Nesse interim, para garantir-se a “muIher-homem", compareceu a polícia sendo o seu transporte feito para Itabuna no dia seguinte constituindo a sua chegada no facto mais sensacional do ano”. (A TARDE, 6/2/1930, capa).
A partir daí o drama ganhou contornos mais violentos: sua bagagem foi revirada revelando roupas femininas que o texto afirmou estar “bem-feitas” e “bem cuidadas”. Coagida, ela foi levada a dizer que era “do sexo masculino” e justificou estar vestindo roupa de mulher há quatro anos por não ter encontrado um casamento. O nome masculino e até o do pai foi transcrito no texto. A notícia para A TARDE foi enviada por um correspondente de Itabuna alguns dias após a chegada da moça. Por fim informou-se que ela seria submetida a um exame para conferir a sua sanidade mental. O que não chegou a ser mencionado, dentre tantos detalhes e suspeitas, como ser da “tribu de Olivença”, o indicativo de que indígenas não eram bem-vistos na época naquela região, ou integrante do bando de Lampião, foi o nome que usava na reivindicação da sua identificação como mulher.
“Essa chamada mulher-homem não tem nome. Negaram a ela o que a sociedade ainda nos nega que é o reconhecimento da forma como queremos ser chamadas. São pessoas negando e violentando a nossa identidade”, avalia Paulett Furacão, 35 anos, que já se acostumou a abrir caminhos em áreas antes fechadas a transgêneros. Ela foi a primeira mulher trans a assumir um cargo na gestão pública da Bahia: a coordenação da pasta LGBTQIA+ na Secretaria de Justiça e Direitos Humanos. Depois, no mesmo órgão, cuidou do setor de políticas de combate ao tráfico de pessoas. Estudante de pedagogia na Universidade Federal da Bahia (Ufba), é assessora parlamentar no gabinete da deputada estadual Olívia Santana (PCdoB-BA), escritora, radialista, produtora do podcast Close de Favela e coordenadora do grupo LGBTQIA+ Lalesca de Capri, que faz do ativismo uma homenagem à mulher trans que foi assassinada devido a essa sua condição em 2004.
“Estou impressionada com esse registro de 1930. Ele é interessante por mostrar tantos níveis de informação sobre as violências históricas contra nós: tem a padronização dos corpos que tenta limitar as possibilidades inclusive das mulheres cisgêneros, afinal o menino aponta para o tamanho do pé que não cabe nesse corpo de mulher; depois de identificada ela vive, possivelmente o temor de ser linchada por populares; tem a negação da sua identidade, que pela época nem é possível para ela saber ao certo o que é. Tanto que tentam justificar essa identidade que ela reivindica na sua forma de apresentar-se com a explicação de patologia na referência a um exame para medir a sanidade mental, ou do crime, ao ser levantada a possibilidade de estar a serviço de Lampião”, completa Paulett Furacão.
Dissidentes
O registro em A TARDE tem ainda uma informação iconográfica importante. Um clichê que mostra a transgênero com um vestido e os cabelos na altura do pescoço. Essa apresentação foi pontuada no texto.
“Com os cabellos crescidos como usa a illusão é perfeita. Só mesmo a curiosidade do menino para descobrir tudo”. (A TARDE, 6/2/1930, capa).
Autor do livro Ensaios sobre raça, gênero e sexualidades no Brasil (Séculos XVIII-XX), Jocélio Teles dos Santos, doutor em antropologia e professor titular da Ufba, aponta que o uso dos termos pejorativos que estão no texto da reportagem determina classificações que apareciam em séculos anteriores. “Luís Mott em O Lesbianismo no Brasil aponta que no século XVII as lésbicas eram chamadas de “machão”. Nos anos 70 do século XIX encontrei a designação homem-mulher para classificar os travestidos que aparecem no jornal Alabama, como Rosalina que tinha se alugado como criada em uma casa em Salvador e que foi presa ao ser descoberta e identificada como rapaz”, destaca o antropólogo.
Sobre o texto publicado por A TARDE, o antropólogo destaca outras classificações como a “cor cabocla” relacionada à “tribu de Olivença”. “Provavelmente se referiam aos pataxós. A designação neste caso é de uma “mulher-homem” para um travestido. Por isso dá para perceber uma fluidez nas expressões. Daí que se percebe o uso de “falsa mulher” ou “pseudo-mulher” no texto. É falsa? É pseudo? Pela narrativa houve muito buxixo em Itabuna, pois a matéria afirma que houve discussão e imagino o episódio comentado em cada esquina e praça da cidade”, diz Jocélio Teles dos Santos.
Na época, Itabuna deveria ter uma população estimada na faixa dos 35 mil habitantes levando-se em conta os dados do Censo do IBGE de 1920 e 1940 que apontam pouco mais de 30 mil e 40 mil respectivamente. Hoje, segundo o Censo de 2010, Itabuna tem 204.667 habitantes. Daí, como observa o professor, a partir da reportagem, foi esse o fato mais sensacional de 1930 na cidade. Há ainda o aspecto da criminalização da pessoa trans.
“Trata-se de um caso visto como da polícia, que a remete a médicos para atestar a sanidade mental. Tem-se a junção polícia, a partir da moral e costumes, com autoridades científicas. E as alternativas para ela-ele na definição no microcosmo de Itabuna é um exemplo do que se manifesta localmente no país: Cangaceiro? Índio pataxó? Criminoso? Doente mental?”, analisa o antropólogo.
Mobilização
Presidente do GGB, o historiador e jornalista, Marcelo Cerqueira, coordenador da Política LGBT da Secretaria Municipal da Reparação (Semur) destaca que ainda é necessária uma atenção continuada não apenas aos direitos, mas a aspectos da saúde mental de quem desafia os padrões normativos de sexualidade e identidades de gênero. “Foram décadas de luta contra a inclusão da nossa condição como doença. Nesse mês de setembro além da questão do respeito à diversidade, estamos fortalecendo a luta por saúde mental com as campanhas de prevenção ao suicídio, pois as violências a que estamos submetidos nos adoece e nos leva a ter que manter frentes de luta que vão além das que exigem respeito”, acrescenta.
Cerqueira diz imaginar o quanto de solidão deve ter se abatido sobre essa personagem da reportagem de 1930. “Pessoas como ela são heroínas anônimas porque mesmo em meio a tantas adversidades estavam vivendo a condição com a qual se identificavam”.
Doutor em direito pela UFBA, professor de ensino superior e membro do Conselho Estadual dos Direitos da População de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais do Estado da Bahia, Efson Lima aponta para a importância da mobilização constante por conta da persistência dos modelos de violência contra esses grupos. “É importante ressaltar que o movimento LGBTQIA+ pautou a transexualidade como elemento da condição humana e não como doença. Essa pauta esteve em diversos debates. Não obstante, a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou em 2018 a transexualidade da lista de doenças ou distúrbios mentais e publicou a 11ª edição da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), que fez a exclusão do chamado “transtorno de identidade sexual” ou “transtorno de identidade de gênero”. A partir de 2022 entra em vigor a nova classificação da OMS”, diz.
Essa conquista apontada por Lima são vitórias de batalhas em uma guerra que não dá tréguas. Infelizmente, a moça de 1930, que permanece anônima na perspectiva da sua identificação como mulher, não pôde, possivelmente, sequer sonhar com a liberdade de viver sob a condição de gênero em que se sentia confortável. Nos dias seguintes já não houve mais menção no jornal ao que aconteceu com ela. Mas ao longo do tempo histórias como a sua alimentaram a busca de caminhos que aos poucos vão se alargando em meio a muita luta.
*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE.
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia