Reportagens mostram como são recentes as ações respeitosas do estado em direção ao candomblé
Na edição de 16 de janeiro de 1976, A TARDE trouxe o registro de uma cerimônia histórica. A imagem mostra o então governador Roberto Santos (1926-2021) ao lado de membros dos terreiros de candomblé da cidade. O texto informa sobre a assinatura do decreto nº 25.095 de 15 de janeiro daquele ano. Era a formalização para o fim da perseguição policial contra essa prática religiosa institucionalizada nas ações da Delegacia de Jogos e Costumes. Um ano antes, em 8 de março de 1975, A TARDE havia registrado uma outra ocorrência sobre a nova posição do estado baiano em relação às religiões afro-brasileiras: o governador Antônio Carlos Magalhães (1927-2007) recebeu para um almoço no Palácio de Ondina, a sua residência oficial, filhas de santo dos terreiros.
Em seu livro, O poder da cultura e a cultura no poder, o doutor em antropologia e professor titular da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Jocélio Teles dos Santos, diz que a recepção oferecida pelo então governador ACM às representantes de terreiros foi um divisor de águas na relação entre o Estado e as religiões afro-brasileiras na Bahia. A partir dali novas articulações e significados passaram a ser mais visíveis. Segundo o texto de A TARDE, após o almoço com o governador e auxiliares, as sacerdotisas de candomblé passearam pelos jardins do palácio:
“Os jardins da residência do Governador do Estado, em Ondina. tiveram ontem um novo colorido: ao rosa das flores e ao verde das árvores, o branco das vestes das mães de santo que foram almoçar com o Sr. António Carlos Magalhães e sua família e manifestar-lhes a gratidão dos terreiros de candomblé pela carinhosa atenção com que o Governador tratou as suas yaôs e axetãs, isto é, as novas e velhas filhas de santo das seitas religiosas da África remanescentes na Bahia. Lá também estavam o Prefeito Clériston Andrade, Camafeu de Oxóssi e Dorival Caiymmi que toram envolvidos pela ternura e pelo pitoresco da reunião”. (A TARDE 08/03/1975, capa).
Embora haja uma referência a mães-de-santo nenhuma foi citada, o que indica que foram enviadas sacerdotisas para representar terreiros como o Alaketo, citado no texto da reportagem publicada na página três.
“Nunca tomos tão protegidas e ajudadas: é com muitas saudades que abraçamos o Governador e o Prefeito pelo que fizeram por nós" — com estas palavras, proferidas por Mariazinha, filha de santo de Olga de Alaketo, oitenta "baianas"- axetãs e yaôs — manifestaram, ontem, aos Srs. António Carlos Magalhães e Clériston Andrade, no almoço que o Chefe do Executivo do Estado e Senhora, lhes ofereceram, seu apreço e gratidão pelo programa que desenvolveram no sentido da preservação do fetichismo negro na Bahia. Com suas saias e blusas brancas, deram, no passeio que fizeram, ao lado daquelas autoridades e do cantor Dorival Caimi, uma plasticidade rara aos jardins do Palácio de Ondina. Ao lhes dizer "axé', deixaram, em-mãos do Governador e do Prefeito, oferendas saídas dos segredos do seu culto”. (A TARDE, 08/03/1975, p.3).
Os termos usados na reportagem como “seita”, “oferendas” sendo retiradas do ambiente de segredo, dentre outros, são apenas uma amostra do que esse registro revela. O candomblé ainda era “estranho” ou “pitoresco” para alguns setores, inclusive a imprensa. Ele começava, portanto, a sair do ambiente da marginalização para o patamar de um dos signos do que alguns chamam de “baianidade” e que foi fortemente usado no primeiro governo de Antônio Carlos Magalhães, especialmente na política voltada para a expansão de negócios na área de turismo.
“Não conheço referência mais significativa que tenha se expressado tanto em termos numéricos- oitenta mulheres- quanto na explícita inserção do povo-de-santo em um dos maiores espaços de simbologia política do país. As interfaces do candomblé com o poder público adquiriam, por conseguinte, outros contornos. De religião secularmente perseguida pelo Estado, passava a ter relações positivamente publicizadas pelo poder público (O poder da cultura e a cultura no poder, Jocélio Teles dos Santos, p.145).
Ocorreram mais ações nesse sentido, segundo Jocélio Teles, como as comemorações pelo cinquentenário do sacerdócio de Mãe Menininha, ialorixá do Terreiro Gantois, ocorrido em 1972 e que teve a participação de ACM na condição de governador, além medidas como o conteúdo da revista Viver Bahia. Esta publicação indicava o endereço dos terreiros na seção “Templos” ao lado dos vinculados a outras religiões.
Fim da vigilância
Embora o estado tenha realizado ações no uso do candomblé como um dos signos da “baianidade”, do ponto de vista prático, um dos seus órgãos, a Delegacia de Jogos e Costumes, continuava com a sua função fiscalizadora e punitiva sobre as práticas nos ambientes dos terreiros. Esta relação com a polícia era um trauma antigo para o povo de santo devido às sessões de humilhações públicas de sacerdotisas e sacerdotes, inclusive registradas em jornais.
O livro Corujebó do doutor em antropologia e professor da Ufba, Vilson Caetano de Sousa Junior, traz um panorama sobre essa postura do Estado, que violentava as religiões afro-brasileiras. Sousa Júnior realizou uma extensa e pioneira pesquisa nos arquivos da Delegacia de Jogos e Costumes que estão no acervo do Arquivo Público do Estado da Bahia. O levantamento, que vai de 1938 a 1976, revela detalhes do que foi essa relação dúbia do poder oficial com o candomblé ora o enaltecendo como um poderoso elemento cultural, ora deixando que seus ritos continuassem a ser acompanhados como uma contravenção.
“No caso baiano, nos parece que a Polícia de Costumes, perseguindo e repreendendo as práticas afro-brasileiras aplicava por conta própria penas que podiam ser: a exposição pública, apreensão de objetos de valor, castigos corporais, prisões e multas. A informalidade e autonomia dispensavam inquéritos que exigiam certa organização burocrática e demandavam tempo”. (Corujebó, Vilson Caetano de Sousa Junior, p.26).
Por isso a importância da notícia veiculada em A TARDE na edição de 16 de janeiro de 1976.
“Todas as sociedades que praticam o culto afro-brasileiro na Bahia, estão liberadas do registro, do pagamento, de taxa e da licença das autoridades policiais para exercerem suas atividades religiosas, segundo determinação do Governador Roberto Santos, em decreto assinado, ontem. Durante o ato, muitas mães de santo foram ao Palácio da Aclamação, onde prestaram suas homenagens ao Chefe do Executivo, por tão significativa ação. O presidente da Associação Baiana do Culto Afro-brasileiro, Antonio Monteiro, mostrava-se muito feliz pela liberação do candomblé do controle policial, alegando que "esta é uma vitória, após 32 anos de luta". (A TARDE 16/01/1976, p.3).
A referência feita por Antônio Monteiro que esteve em tantas frentes- escrevendo artigos sobre festas e candomblé, inclusive para A TARDE, e na organização da Lavagem do Bonfim- dá a pista de que, desde 1944 ao menos, algum tipo de articulação entre as comunidades de terreiro estava ocorrendo para o fim da vigilância do candomblé pela polícia. É uma amostra sobre como essas relações entre Estado e comunidades se dão em diversas perspectivas e com a colaboração de diversos agentes tensionando ou se tornando mais flexíveis.
Um deles foi o professor Edvaldo Brito. Jurista, vereador por Salvador (PSD-BA), membro da Academia de Letras da Bahia (ALB), ex-prefeito (1978 e 1979) e ex-vice-prefeito da capital baiana 2009-2012), na época da publicação do decreto de 1976 ele era o secretário estadual de Justiça. Membro de uma família de grandes sacerdotisas e sacerdotes de candomblé, como Bida de Iemanjá e Nezinho de Ogum, Brito é babá egbé do Gantois. Filho do orixá Ogum, o seu posto tem como uma das responsabilidades proteger e viabilizar os interesses da sua comunidade. A sua iniciação religiosa foi conduzida por Mãe Menininha do Gantois. Era, portanto, um membro do povo-de-santo ocupando um posto de prestígio e estratégico nos espaços de poder.
“Minha tia, Bida tinha a expressão ´isso é um encanto´ quando se estava diante de uma situação difícil, delicada e sobre a qual se especulava muito. E isso que aconteceu no governo do doutor Roberto foi um encanto. Nós já havíamos nos aproximado durante seu mandato de reitor na Ufba, quando fui procurador, e, anteriormente, quase foi subsecretário na gestão dele como secretário de saúde no governo de Luiz Vianna. Por essas voltas do caminho eu estava no governo que conseguiu articular esse decreto”, diz Brito.
Sobre os bastidores, afinal com o decreto quebrou-se uma cadeia de poder e intimidação policial estabelecida há séculos, o professor Edvaldo Brito conta que a tensão foi mínima. Em sua avaliação a capacidade de liderança de Roberto Santos atenuou os conflitos que poderiam surgir. “Com ele funcionava assim: ele tinha a decisão na cabeça, mas para viabilizar a decisão ele ouvia todo mundo. Então não tinha como ocorrer resistência”, acrescenta.
Em setembro do mesmo ano, A TARDE publicou mais um registro sobre a celebração do candomblé em relação ao decreto assinado pelo governador Roberto Santos: uma programação com missa na Igreja da Misericórdia e a entrega a ele de um opaxorô- um cajado que é usado por Oxalá. A cerimônia foi realizada no terreiro Ilê Tomin Bokum, sediado no Beiru e liderado pelo babalorixá Rufino de Souza.
“Em sinal de gratidão, a Federação Baiana do Culto Afro-brasileiro concedeu, ontem, às 21 horas, o título de benemérito ao Governador Roberto Santos, quando lhe entregou um Opaxorô de Oxalá, em cerimônia realizada no terreiro llê Tomin Bokun, localizado no Beiru e em agradecimento pela suspensão da interferência policial nos terreiros baianos. A festa constou também da inauguração dos retratos do Sr. Roberto Santos e do ex-Governador Juracy Magalhães, às 16 horas, na galeria da entidade, e missa solene, às 19 horas na igreja da Misericórdia, sendo orador o padre Luiz Palmeira”. (A TARDE, 04/09/1976, capa).
Os ataques às religiões afro-brasileiras ganharam outras dimensões com o decorrer do tempo, mas ao menos no ambiente oficial as articulações, alianças e outras estratégias variadas resultaram em vitórias como a publicação do decreto de 1976. Parodiando uma expressão que tem sido largamente usada nas redes sociais, “Nunca foi sorte e sim luta inteligente”.
A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE.
Para saber mais: Corujebó- Candomblé e Polícia de costumes 1938-1976 (Vilson Caetano de Sousa Júnior, Edufba), O poder da cultura e a cultura no poder: a disputa simbólica da herança cultural negra no Brasil, Edufba.
8Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia