Seja Hundé celebra conquistas após problemas apontados em reportagem de A TARDE
Janeiro vai ser um mês especial para a comunidade do terreiro Seja Hundé, também conhecido como Roça do Ventura, e localizado no município de Cachoeira, a 115 quilômetros de Salvador. De nação, termo utilizado para definir a herança seguida por uma casa, jeje-mahi, que tem elementos culturais de povos que vieram da região do atual Benim, o templo afrorreligioso vai comemorar a finalização das obras de recuperação do espaço. É o desfecho de uma luta antiga e que A TARDE destacou na edição de 8 de fevereiro de 2009.
“O primeiro passo já foi dado para que o Seja Hundé ou Roça do Ventura, um terreiro que tem lugar especial na tradição afro religiosa da Bahia, receba o reconhecimento como patrimônio pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). No último dia 11 de janeiro, a comunidade da casa entregou ao órgão o pedido de tombamento. O reconhecimento do Iphan é importante para a valorização do seu status de bem simbólico para a cultura nacional, além de facilitar, por exemplo, a captação de recursos para questões como a reforma da estrutura, uma necessidade atual do Ventura”. (A TARDE 8/2/2009, p. A8).
Naquela ocasião, o Seja Hundé não tinha ligação elétrica adequada e as paredes das poucas estruturas construídas, como o barracão, estavam com as paredes rachadas. O terreiro segue uma tradição de privilegiar os recursos da sua vasta área verde. Além das matas, possui duas lagoas, duas fontes e um riacho. Essa reserva ambiental também sofria ataques, como seguidos incêndios que se desconfiava ser provocados por interessados em se apropriar da área para construções imobiliárias. Por esse motivo, o tombamento e a reportagem de A TARDE deram maior visibilidade a uma luta contínua da comunidade para manter seu território.
“Foi muito importante a divulgação dos nossos problemas por meio da reportagem de A TARDE, uma vez que a Roça do Ventura ganhou visibilidade, conseguindo assim auxílio do Ministério Público Estadual (MPE) e da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) para o tombamento provisório. Em seguida veio o definitivo com o processo correndo ao longo dos governos de Lula e Dilma Rousseff”, destaca o ogã Edvaldo Conceição, conhecido como Buda de Boboso, e presidente executivo da Sociedade Cultural da Roça do Ventura, que é a representação civil do Seja Hundé.
De acordo com Ogã Buda, a partir do reconhecimento da Roça do Ventura como patrimônio brasileiro ficou mais fácil percorrer o caminho para conseguir recursos destinados às obras de recuperação. “Além de impedir a destruição ou descaracterização da área, o tombamento foi determinante para conseguir a restauração dos espaços construídos”, acrescenta.
A reforma contemplou a restauração de espaços sagrados como os chamados “Hunkó” e “Abassá”, além da Casa de Hóspedes de Baixo, uma estrutura para acomodar visitantes e um novo cômodo que é a Casa de Hóspedes de Cima cuja construção seguiu todas as normas técnicas para se adequar às exigências de conservação de um imóvel tombado. A celebração da reforma terá um rito religioso no dia 2 de janeiro e um civil, com a presença de representantes do Iphan, no dia 6. Para a participação de convidados será exigido o cumprimento de protocolos de prevenção à Covid como teste negativo até 72 horas antes da participação na cerimônia; comprovante de vacinação com duas doses ou dose única e uso obrigatório de máscara.
Tradição
A reportagem de A TARDE também fez um registro valioso para a comunidade do Ventura: a batalha de um grupo de idosos pela preservação do território e dos ritos da comunidade com destaque para Ambrósio Bispo Conceição, conhecido como Ogã Boboso, e Bernardino Ferreira dos Santos. Ambos já faleceram. Embora a reportagem tenha sido publicada em fevereiro, a visita feita por mim e pelo fotojornalista Marco Aurélio Martins à Roça do Ventura ocorreu em 8 de dezembro de 2008. Na data, Ogã Boboso estava completando 93 anos oficialmente, mas ele afirmava que tinha dez anos mais.
Nessa visita, além das histórias do Ventura, um terreiro fundado na segunda metade do século XIX e vinculado à chamada Roça de Cima, foi possível constatar o amor da comunidade ao seu território. Dados da história do Ventura estão no livro A formação do candomblé- História e ritual da nação jeje na Bahia, livro de autoria do doutor em antropologia e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Luis Nicolau Parés.
“Embora algumas pessoas acreditem que Ludovina Pessoa foi a primeira doné ou gaiaku do Seja Hundé, a maioria dos informantes coincide em afirmar que a primeira mãe de santo foi Maria Agorensi, cabendo a Ludovina só dirigir os rituais para “plantar o fundamento”. A tradição oral afirma que Maria Agorensi conseguiu comprar as terras do candomblé vários anos após a sua abertura, o que implicaria ter esta acontecido antes de 1901. A hipótese mais conservadora seria datar a fundação do terreiro nos últimos anos da década de 1890”. (A formação do candomblé- História e Ritual da nação jeje na Bahia, p. 199).
O livro de Luis Nicolau Parés possui informações que são resultado de uma densa pesquisa realizada por ele na Bahia, no Maranhão e no Benim. O cuidado e comparação com dados diversos são uma das características do trabalho de Parés. Ele costuma checar as fontes documentais sem desconsiderar as coincidências e divergências destas com as histórias orais. Para este denso trabalho de pesquisa que resultou no livro, uma das fontes de Parés foi Ogã Boboso. A sua ligação com o Ventura, além de ser o local da sua prática religiosa, tinha um componente afetivo que chegava a emocionar os ouvintes, assim como as narrativas de Ogã Bernardino. Aliás, os dois eram inseparáveis e tinham o desejo de ver o Seja Hundé protegido.
“Tenho medo de partir. Ali não pode virar pasto nunca, nunca. Eu prometi”, diz ogã Boboso. “A gente prometeu aos que se foram”, completa ogã Bernardino”. (A TARDE, 8/2/2009 p.A8).
A promessa feita pelos dois ecoou também na geração mais jovem da comunidade da Roça do Ventura. Os assentamentos dos voduns, como as divindades são chamadas na tradição jeje, que estão nos mananciais - as fontes e lagoas - e ao pé das árvores agora possuem proteção oficial, mas tem uma ainda mais forte: a conquista de uma comunidade que persistiu e insistiu na defesa do que é seu por direito. O momento, portanto, é de se preparar para festejar a continuidade sob as bençãos de Bessen, Sogbo e Azansu, as divindades que são patronas do terreiro.
*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE. Para saber mais: A formação do Candomblé- História e ritual da nação jeje na Bahia- Luís Nicolau Parés, 3ª edição revista e ampliada, Editora da Unicamp, 2018. Confira mais conteúdo de A TARDE Memória no Portal A TARDE e emA TARDE FM.
Importante: A coluna A TARDE Memória vai fazer uma pausa durante o mês de dezembro. Em janeiro estaremos de volta com a publicação de novas histórias a partir do material que forma o acervo do Centro de Documentação A TARDE (Cedoc).
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia