A TARDE apresentou cotidiano das vendedoras de doces em Salvador
Publicado em edição de abril de 1916, texto mostrou diversidade da venda de produtos em tabuleiro
A venda de comida foi crucial para a emancipação das mulheres negras diante da violência da escravidão e seus desdobramentos. Livres ou no chamado “ganho” elas comercializaram comida pronta, mas também frutas e carnes. Outros produtos cruciais no trabalho dessas vendedoras e que, às vezes, não alcançam tanto protagonismo nos registros são os doces. Uma reportagem publicada na capa da edição de A TARDE de 24 de abril de 1916 mostrou que, mesmo com o processo avançado de mudanças urbanas, como a construção de avenidas, que ocorria no período, o costume da venda de canjica, bolos e outras guloseimas em tabuleiros exclusivos para eles ou no comércio ambulante estava mantido.
“E o commercio não se faz apenas nos cafés, nas pastelarias, as vendedoras ambulantes mercam por toda a cidade: - São Francisco meu santo, quem me benze? Cocadinha quente! Tapioca! Está quentinha....”. (A TARDE, 24/4/1916, capa).
Para mostrar o quanto os doces vendidos nos tabuleiros encantavam a freguesia, o texto de A TARDE contou a história de como alguém com trânsito em altos escalões do poder local ficou devendo a uma vendedora de cocada cerca de 30 mil reis, a moeda da época. Segundo a reportagem, em Salvador a demanda por doces era tanta que se destacava a venda na porta das repartições públicas então localizadas no Centro Histórico.
“Das 11 às 13, o movimento é digno de nota no Thesouro do Pão de Lot, no do Município e na Secretaria de Segurança. Rodeada de funccionários, luzidia rapariga no seu banquinho envernizado attende a freguezia. Desenvolvem as scenas engraçadíssimas lembrando uma feira alegre. Todos querem ser despachados a tempo e a hora enquanto os doces estão quentinhos. -Agora eu, meu bem. -Mulata, olha seu caboclo; despacha-o logo”. (A TARDE 24/4/1916, capa).
Entrevistada, Joanna Maria do Espírito Santo contou que herdou o ponto de Maria que havia parido há pouco e por isso não podia ficar exposta à “quentura” do fogo e decidiu ir vender laranjas. O local era próximo à escada que dava acesso ao gabinete do secretário de segurança. A renda, segundo Joanna, não estava tão farta após o fim de atraso nos salários dos servidores da administração pública, pois com o dinheiro mais curto o doce era uma alternativa ao almoço. Dentre os preferidos daqueles que ela ofertava estavam a queijadinha, bolinho de goma e suspiros.
Clara, de quem não foi registrado o sobrenome na reportagem, tinha ponto na porta do Tesouro do Estado. No cardápio do seu tabuleiro constavam bolinho de São João, cocadinha, pão de ló, bolo de arroz, de aipim e de tapioca.
Já no Tesouro Municipal, o repórter de A TARDE encontrou um cenário com lamentos pela ausência da vendedora chamada Antônia. Ela estava doente. Dessa forma, os funcionários só tinham como opção, de acordo com o texto, as pastelarias dos espanhóis.
Cultura forte
A descrição no texto de A TARDE dá a indicação, portanto, de como a cozinha afro-brasileira absorveu também os doces a ponto de ter diversidade desde a cocada até o pão de ló. Tanto que no livro Açúcar, Gilberto Freyre propôs uma sociologia do doce no Nordeste do Brasil.
Freyre retoma sua narrativa sobre a formação cultural do Brasil a partir da economia da cana-de-açúcar para apresentar a interação entre as culturas portuguesa, africanas e indígenas. Em Açúcar ele retoma trechos de Casa-Grande & Senzala, sua obra mais conhecida. Em um dos capítulos do livro sobre o doce, Freyre apresenta a contribuição africana para o que chama de arte brasileira a partir da Bahia.
De acordo com o autor, Salvador desenvolveu uma “doçaria de rua” tão vasta a ponto de rivalizar com o doce feito em casa. Esse é um dos trechos em que ele utiliza as citações de Casa Grande & Senzala.
“Mas o legítimo doce ou quitute de tabuleiro foi o das negras forras. O das negras doceiras. Doce feito ou preparado por elas. Por elas próprias enfeitados com flor de papel azul ou encarnado. E recortado em forma de corações, de cavalinhos, de passarinhos, de peixes, de galinhas às vezes com reminiscências de velhos cultos fálicos ou totêmicos. Arrumado por cima de folhas frescas de banana. E dentro de tabuleiros enormes quase litúrgicos, forrados de toalhas alvas como pano de missa”, (Açúcar, de Gilberto Freyre, p.195).
Em outro trecho do livro, Freyre descreveu um cenário do século XVIII que é semelhante ao que a reportagem de A TARDE detalhou em 1916. Tanto que ele fez a observação de que, em 1933, quando publicou Casa-grande & Senzala, estas vendedoras já estavam em menor número.
“Dessas pretas de bolo e de fogareiro vê-se hoje uma ou outra na Bahia, no Rio, ou no Recife; vão rareando. Mas ainda sobrevivem traços da antiga rivalidade entre seus doces mais coloridamente africanos e os das casas de família. No preparo de vários quitutes elas ganham de longe: acaçá, acarajé, manuê. É nossa opinião que no preparo do próprio arroz-doce, tradicionalmente português, não há como o de rua, ralo, vendido pelas negras em tigelas gordas donde o guloso pode sorvê-lo sem precisar de colher. Como não há tapioca molhada como a de tabuleiro, vendida à maneira africana, em folha de banana”. (Açúcar, de Gilberto Freyre, p.196).
Inteligência
O doutor em antropologia e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Vilson Caetano de Sousa Júnior, aponta como a reportagem de A TARDE traz informações preciosas sobre o comércio de alimentos desenvolvidos por mulheres negras. “Ficamos sabendo pelos detalhes da reportagem que existia também o pastel da rua. Este possivelmente tinha o tempero a mais que aqueles oferecidos nas pastelarias, como a conversa e a brincadeira. É bem o estilo do que Gilberto Freyre apresenta em Açúcar ao definir uma espécie de disputa entre esse doce de dentro das casas e o de fora delas”, diz.
Outra questão que, segundo o antropólogo o texto mostra ser interessante é a expansão do tabuleiro, ou seja, a sua presença em diferentes partes do centro da cidade. “Se pensarmos hoje estão aí as caixinhas de doces, mas agora numa outra dimensão que é o industrializado”, completa Vilson Caetano.
Ele destaca que, as referências minuciosas do texto sobre o cardápio, como os mingaus, os bolos e as canjicas são uma demonstração da habilidade que as africanas e suas descendentes mostraram para a venda. “Essas mulheres souberam dar o toque a receitas de uma outra cultura como a de Portugal para alcançar a oferta de um certo requinte ao paladar. Estavam envolvidas com a venda de tantos produtos e encontramos mais uma amostra da especialização que construíram nessa atividade”, completa o professor que é o babalorixá do Ilê Axé Oba L´Okê, localizado em Lauro de Freitas.
A presença destas vendedoras era tão marcante em Salvador que deu à reportagem de A TARDE as condições de traçar um impressionante retrato do seu cotidiano ao manejar a arte do preparo da comida. E, mais do que subsistência, essa foi e é uma atividade que transcende em muito a habilidade de preparar o alimento. É uma aula sobre o enfrentamento de uma situação adversa por meio das potencialidades que as culturas oferecem.
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia