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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 16 de março de 2024 às 0:00 h | Autor:

Capoeira conseguiu derrotar discurso e ações que a criminalizavam

De prática considerada contravenção ela conquistou segmentos com o turismo e a educação

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Da rua aos espaços fechados, a prática da capoeira venceu longa batalha para se tornar símbolo cultural
Da rua aos espaços fechados, a prática da capoeira venceu longa batalha para se tornar símbolo cultural -

Na edição de A TARDE de 9 de dezembro de 1922, uma nota conta a história de uma briga no Barbalho. Foi durante uma partida de futebol. Um dos envolvidos recebeu uma cabeçada o que fez soar o alerta que dá título ao registro: “Ressurgem as capoeiras?”. É um vestígio dos tempos em que a capoeira, hoje um dos signos da cultura afro-brasileira, foi considerada contravenção e prática que deveria ser combatida pelo Estado especialmente por meio das suas instituições de segurança.

Nas primeiras décadas do século XX, Salvador experimentava o contexto do intenso debate sobre a modernização que atingia desde a questões da urbanização da cidade, com o alargamento de ruas mesmo que isso significasse colocar abaixo imóveis seculares, até o combate a práticas que eram consideravas símbolos do atraso, como o candomblé e outras heranças africanas. “Foi a época de um Estado liberal, com uma política de branqueamento e do outro lado uma população que vivia na rua. A disputa era muita intensa entre esses agentes sociais”, analisa o doutor em História, Luis Vitor Castro Junior.

Da rua aos espaços fechados, a prática da capoeira venceu longa batalha para se tornar símbolo cultural
Da rua aos espaços fechados, a prática da capoeira venceu longa batalha para se tornar símbolo cultural | Foto: Data: 02/05/1982 | Cedoc A TARDE

Professor titular-pleno da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), Luís Vitor coordena o grupo de pesquisa e extensão intitulado Artes do Corpo: Memória, Imagem e Imaginário. Discípulo do Mestre João Pequeno, ele é autor do livro Encruzilhada Fotográfica de Marcel Gautherot: quando o corpo na capoeira é festa e labuta (1940-1960), dentre outros.

De acordo com o professor a capoeira, diante de tantas potencialidades continua uma prática que não pode ser associada a uma única categoria, como luta, esporte ou dança. “O Mestre Caiçara dizia que ´Capoeira é Capoeira´, ou seja, capoeira é em si mesma. Tem uma outra máxima, que é do Mestre Pastinha: ´Capoeira é mandinga de escravo e ânsia de liberdade. Seu princípio não tem fim e seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista´. Portanto é preciso entender a capoeira em toda a sua complexidade, como um movimento global em que é preciso saber tocar, saber dançar. Nada na Capoeira está dissociado”, acrescenta Luis Vitor.

Da rua aos espaços fechados, a prática da capoeira venceu longa batalha para se tornar símbolo cultural
Da rua aos espaços fechados, a prática da capoeira venceu longa batalha para se tornar símbolo cultural | Foto: Data: 02/10/1989 | Cedoc A TARDE

Conquistas e tensões

De contravenção, a capoeira, por meio dos seus agentes, foi se impondo e desafiando limites e proibições. Na década de 1930, Manoel dos Reis Machado (1899-1974), conhecido como Mestre Bimba associou à prática movimentos de artes marciais e abriu as academias da linha que ficou conhecida como Capoeira Regional. Já Vicente Joaquim Ferreira Pastinha (1889-1981), o Mestre Pastinha, conquistou seguidores ao codificar os movimentos da chamada Capoeira Angola, defendendo o que dizia ser os movimentos aprendidos com a ancestralidade.

Mestre Bimba criou a Capoeira Regional
Mestre Bimba criou a Capoeira Regional | Foto: Data: 07/05/1978 | Cedoc A TARDE

Na década de 1960, a capoeira conquistou os segmentos do turismo e da educação. No caso do primeiro, as rodas passaram a integrar as apresentações para os visitantes de Salvador e de cidades do recôncavo, como Cachoeira. O outro movimento é o da reivindicação do campo do esporte. A capoeira, segundo o professor Luiz Vitor passa a ser considerada uma “ginástica nacional”, o que também abriu espaço para uma ameaça: a tentativa de diminuir a herança africana que ela carrega. “São as tensões próprias do ambiente cultural em meio às relações de sociabilidade”, explica o professor.

Da rua aos espaços fechados, a prática da capoeira venceu longa batalha para se tornar símbolo cultural
Da rua aos espaços fechados, a prática da capoeira venceu longa batalha para se tornar símbolo cultural | Foto: Data: Agosto de 1984 | Cedoc A TARDE

Com a superação do período de contravenção, essas transformações exigiram o desenvolvimento de diferentes práticas pedagógicas. Para ensinar mais e mais alunos são necessários métodos que cada mestre procura adotar sempre observando os princípios da tradição que segue.

Mas ainda assim, a capoeira, ao chegar a esse ambiente de ensino, ganhou novos espaços como as academias de ginástica somando-se a práticas como musculação e outras. No ambiente escolar novos debates foram instituídos, inclusive sobre o papel dos mestres.

Mestre Pastinha codificou os movimentos da Capoeira Angola
Mestre Pastinha codificou os movimentos da Capoeira Angola | Foto: Data: 24/07/1979 | Cedoc A TARDE

“É sempre necessário observar que há vários fatores para se considerar, inclusive como as mulheres e homens responsáveis por esse ensino vão ser vistos no ambiente escolar. Elas e eles são donos de uma sabedoria que necessita ser reconhecida e remunerada”, acrescenta o professor Luis Vitor.

Homenagem

Em 20 de novembro de 2010, A TARDE fez uma homenagem à capoeira por meio do caderno comemorativo ao Dia Nacional da Consciência Negra. Intitulado Ê, Camará, o especial mostrou como a capoeira é capaz de acolher a diversidade, as civilizações africanas que deixaram suas marcas nos elementos da prática; as referências em linguagens artísticas, os detalhes sobre a orquestra, a conquista de espaço pelas mulheres, dentre outros temas.

“No Alto da Sereia, no Rio Vermelho, uma roda de capoeira está montada. No comando, ao invés de homens, como tradicionalmente ocorre, duas mulheres. Elas ditam as regras. Na história dessa manifestação cultural, poucas ocupam esse posto, o que as tornam parâmetro para uma nova geração. O Instituto Nzinga de Estudos da Capoeira Angola e Tradições Educativas Banto no Brasil foi criado, em 1995, por Rosângela Costa Araújo, Mestra Janja. Paula Barreto, a mestre Paulinha, conta que o grupo foi fundado em São Paulo e depois se expandiu para Salvador, Brasília, Cidade do México (México), Marburg (Alemanha) e Maputo (Moçambique)”. (A TARDE, Especial Ê, Camará, 20/11/2010, p. 10).

As páginas centrais do especial foram dedicadas à biografia das duas principais referências da capoeira: Mestre Pastinha e Mestre Bimba.

  • Mestre Pastinha codificou os movimentos da Capoeira Angola
    Mestre Pastinha codificou os movimentos da Capoeira Angola |
  •  Mestre Bimba criou a Capoeira Regional
    Mestre Bimba criou a Capoeira Regional |

“A persistência em defender sua arte e a falta de reconhecimento no final da vida une as histórias das maiores referências da capoeira: mestres Pastinha e Bimba. O primeiro optou por preservar os conhecimentos que obteve, desde o início da prática, e foi responsável por instituir regras que formalizaram o ensino. Defendia o jogo rasteiro e malicioso dos seus antepassados. O segundo, também com a mesma formação, preferiu inovar. Reuniu golpes de outras lutas e criou outro estilo: a regional. Sua ousadia já lhe rendeu o título póstumo de doutor honoris causa da Ufba, pelos serviços prestados à cultura baiana. No entanto, eles não colheram frutos do legado que deixaram. Considerados referências nos caminhos que trilharam, ambos terminaram a vida sem o devido reconhecimento”. (A TARDE, Especial Ê, Camará, 20/11/2010, pp. 6 e 7).

O especial de A TARDE é uma amostra de como a resistência e desafio às regras de quem a queria marginal deu à capoeira um legado potente. Sedutora, é sempre um espetáculo para os espectadores, mas ainda dotada de mistérios apreendidos apenas por quem é iniciado em suas cadências e formas. Ela se mantém como tributo às estratégias que a fizeram douradora e sempre em movimento de continuidade.

CONFIRA AS PÁGINAS DE A TARDE SOBRE A CAPOEIRA:

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Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

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