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A Tarde Memória

Por Andreia Santana*

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 14 de dezembro de 2024 às 5:00 h | Autor:

Carrancas misturam arte popular e religiosidade em Juazeiro e Cachoeira

Esculturas afixadas na proa das embarcações remontam ao século XIX e eram usadas para espantar os maus espíritos

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As carrancas do Vale do São Francisco
As carrancas do Vale do São Francisco -

Diz a crença popular vigente na região do Vale São Francisco, que quando uma barcaça corre o risco de bater nas pedras e virar, a carranca na proa da embarcação geme três vezes como alerta à tripulação, evitando assim o acidente. Esculturas milenares e adotadas na Bahia desde o século XIX, essas peças em madeira, que imitam expressões zangadas e seres míticos, não existem apenas para proteger viagens fluviais, mas também são obras de arte.

Por aqui, além de Juazeiro, polo carranqueiro famoso internacionalmente, as peças também são fabricadas na cidade de Cachoeira, no Recôncavo. Em comum, além do aspecto cultural, as carrancas das duas regiões do estado têm ligação com a devoção, principalmente, nas religiões de matriz africana.

“São cabeças esculpidas em madeira. Para muitos, um ser fantástico. Poderoso. A sua presença, dizem, dá boa sorte. Afugenta os espíritos maus”. A declaração é do escritor baiano Wilson Lins, ouvido em reportagem de A TARDE publicada em 11 de Julho de 1982, anunciando o I Festival de Carrancas do Médio São Francisco. Na ocasião, a iniciativa foi considerada pioneira por promover a expressão artística popular.

O evento daquele ano comemorou o centenário de nascimento de Francisco Biquiba Dy-Lafuente Guarany, considerado o autor de dois terços das carrancas usadas nas barcas que navegavam pelo rio São Francisco até a primeira metade do século XX. O festival realizado em Juazeiro teve concurso de carrancas esculpidas em madeira - existem também aquelas feitas de pedra e que lembram as esculturas da Ilha de Páscoa - e se estendeu até Salvador, com exposição no Instituto Mauá.

Carrancas não são uma particularidade da cultura baiana, mas aqui essas peças ganharam significados especiais e ligados às tradições afro indígenas. Na Bahia, elas se transformaram ao longo dos séculos, ganharam novos significados e, segundo estudiosos do tema, foram reinventadas a partir do trabalho dos escultores do Vale do Rio São Francisco e de Cachoeira.

As figuras de proa, aquelas esculturas que ficam à frente das embarcações, já existem há mais de seis mil anos e eram adotadas por povos antigos do Egito e da Fenícia, civilização antiga de exímios navegadores que floresceu nos locais onde hoje se situam o Líbano, a Síria e o norte de Israel. Povos da Europa, como os vikings da Escandinávia, também utilizavam figuras de proa, geralmente simbolizadas por esculturas de monstros marinhos e outros seres mitológicos.

Sereias e Exus

As carrancas do Rio São Francisco e de Cachoeira, nos moldes que conhecemos hoje, remontam ao século XIX. Elas surgiram do desejo dos barqueiros da época de protegerem suas canoas das fortes correntezas nos rios e dos espíritos malignos que assombram as águas, conforme as crenças da época.

As esculturas, que teriam poderes sobrenaturais, afastariam esses espíritos, permitindo que a navegação fosse segura. Diferente dos monstros marinhos da antiguidade, as carrancas baianas estavam associadas às divindades do panteão afrobrasileiro, como Iemanjá e Exu Marabô.

Para comunidades ribeirinhas do Vale do São Francisco e de Cachoeira, as peças são mais do que obras de arte ou artifícios estéticos para o embelezamento das barcaças e canoas, elas representam os seres sagrados nos cultos.

A criatividade dos escultores, no entanto, não se limita aos deuses ou seres míticos. Até o cinema e a cultura pop já serviram de inspiração para os carranqueiros de Juazeiro, como Seu Bitinho, personagem de uma reportagem da Revista Muito de 06 de outubro de 2019, que é considerado o criador das ‘carrancas vampiras’, aquelas com caninos salientes. Segundo ele contou para a revista na ocasião, sua inspiração foi um cartaz japonês do filme King Kong.

O fascínio pelas carrancas, seja pelo aspecto cultural ou religioso é tanto, que uma edição de A TARDE de 10 de novembro de 1999, destaca que as esculturas já eram famosas até na internet nos primórdios da rede mundial de computadores no Brasil.

“Contando lendas antigas que poderiam ser esquecidas, as páginas abrem espaço para a troca de informações sobre arte popular entre internautas, institutos de pesquisa e associações”, diz trecho da reportagem ilustrada com uma ‘carranca vampira’ e que enumerava sites ativos na época e que agregavam histórias ribeirinhas e estudos acadêmicos, além de fotografias de carrancas e outras peças.

Cachoeira

Almir Oliveira da Cruz, conhecido como mestre Mimo, nascido e criado em Cachoeira, ficou fascinado com as carrancas aos 7 anos. Nessa idade, ele acompanhava a mãe, lavadeira de ofício, ao rio Pitanga, onde ela lavava roupas. “Eu ficava curioso de ver um artista chamado Nô trabalhando e vendendo as peças dele. Aquilo ali trouxe um despertar dentro de mim e eu falei: um dia eu vou ser artista”, conta o escultor, que começou a criar peças aos 13 e já soma 44 anos de profissão.

“De 13 para 14 anos eu comecei a ingressar no rumo da arte e fui fazendo diversos tipos de trabalhos como máscaras, figas, carrancas, orixás… E estou até hoje trabalhando”, acrescenta mestre Mimo, que logo em seguida diferencia as carrancas de Cachoeira daquelas fabricadas no Vale do São Francisco. “Em Cachoeira, fazemos no estilo africano. Como Cachoeira é a terra dos orixás, procuramos fazer [as peças] que significam os temas da cidade”, afirma.

Mestre Mimo também enfatiza a relação da criação das carrancas com os barqueiros descendentes de africanos. “A carranca foi coisa criada pelos negros africanos, que colocavam essas peças na navegação, nos veleiros, para que abrissem os caminhos. Já que, na concepção deles, tinha um espírito maligno no mar que, toda vez que a embarcação passava, virava e matava muita gente. Foi quando o negro teve essa inspiração de fazer uma coisa horrorosa, assustadora, e colocar na frente dos veleiros de antigamente para afastar os espíritos malignos”, ensina.

O desejo cultivado desde a infância de tornar-se escultor tem relação também, para mestre Mimo, com a sua necessidade de auto expressão. “A gente procura botar para fora o que está sentindo”, define ele, que aprendeu a esculpir em madeira com um amigo chamado Adilson, filho de mestre Louco, um dos carranqueiros e escultores mais conhecidos de Cachoeira, e com outro mestre chamado Dori.

Atualmente, mestre Mimo inicia os filhos na arte de esculpir carrancas e outras obras de arte em madeira. “Quando eu não estiver mais aqui, vai ter meu filho também para contar a história do que eu fazia, da arte e das carrancas, que são um privilégio para poucos, para quem entende a cultura. Porque carranca não é o diabo, como às vezes muitas pessoas falam, é totalmente diferente”, enfatiza o artista, lembrando que as esculturas inspiradas nas religiões de matriz africana sofrem o preconceito baseado em racismo estrutural e religioso.

O sonho de mestre Mimo é que a arte da escultura seja ensinada nas escolas públicas para motivar a juventude a orgulhar-se de suas origens. “Os jovens de hoje em dia não são como os de antigamente, a cabeça é outra, a tecnologia é outra. Ligados sempre na tecnologia, eles esquecem a cultura”.

*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes

*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época

*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE

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