Ciclo do Bonfim alimenta uma dinâmica ininterrupta de festas nas ruas
Com descartes e absorção de elementos, a principal comemoração da Cidade Baixa resiste
As quadrinhas cheias de humor foram durante cerca de três décadas a forma mais constante de A TARDE marcar a segunda-feira que se seguia à celebração solene em homenagem ao Senhor do Bonfim. Em 1923 esse traço marcante da cobertura da festa ganhou a assinatura de Lulu Parola, pseudônimo do jornalista Aloísio de Carvalho (1866-1942). Chamada de Segunda-Feira Gorda e, mais tarde, Festa da Ribeira, essa é uma das muitas comemorações que compõem o ciclo do Bonfim.
“Querem saber? Contarei:/Fui, p’ra saltar na Ribeira,/Que é onde, segundo a lei,/Mais ferve a SEGUNDA-FEIRA./O'carro partiu voando.../Pois, entre nós, abusando,/O auto não corre, – voa!/E ao cabo de quasi sete/Minutos, a “marinetti”/Largou-me na Madragôa...” (A TARDE, 21/1/1933, p. 3).
Embora sem programação, como a participação de trios elétricos, a Segunda-Feira Gorda continua a ser celebrada de forma simples, mas resistente à memória de participantes em outros tempos. É consenso entre os donos de barracas e bares da orla da Ribeira que ainda aparecem foliões para beber e comer o famoso cozido na segunda-feira seguinte à Lavagem do Bonfim, embora esse rito também ocorra semanalmente. É uma forma de celebrar, por meio da memória, aquela que foi uma das muitas dinâmicas do chamado ciclo do Bonfim, que era composto ainda pelas homenagens a Nossa Senhora da Guia e São Gonçalo do Amarante.
A devoção foi iniciada no século XVIII a partir do cumprimento da promessa do capitão Teodósio Rodrigues Farias. Português, ele construiu uma igreja em agradecimento ao Senhor Bom Jesus do Bonfim, ou seja, o Senhor da Boa Morte, após ter escapado de um naufrágio. A região onde a igreja foi erguida era o ponto de veraneio da elite baiana e acabou ganhando um calendário de festas extenso. Com os dias mais quentes antes do início oficial do verão, muita gente já chegava à Península de Itapagipe para passar o Natal. Era comum, portanto, o aquecimento para festejar o Bom Jesus com o desfile de ternos e ranchos.
Transformações
Após acontecer em datas variadas, a Festa do Bonfim foi oficializada no segundo domingo depois da celebração litúrgica católica da Epifania, comemorada em 6 de janeiro, segundo Mariely Cabral de Santana no livro Alma e Festa de Uma Cidade. A Festa da Epifania é considerada a memória, na liturgia católica, do dia que Jesus foi revelado ao mundo, pois os magos são representantes dos continentes conhecidos na época. De acordo com a mesma autora, em 1804, a Arquidiocese de Salvador comunicou à Mesa Diretora da Devoção do Bonfim o teor da autorização do papa Pio VII sobre o período para celebração da festa.
Nos primeiros tempos da celebração, as referências são para os ritos católicos e em um só dia, o domingo, ainda de acordo com a pesquisa de Mariely Santana. Logo, os devotos passaram a se deslocar cada vez mais cedo e os dias de celebração foram aumentando. A pesquisadora também afirma que apesar da falta de informações é possível imaginar como a festa foi ganhando o espaço do largo. Segundo ela, a presença da população negra foi invisibilizada nos relatos mais antigos. Já nas primeiras menções de A TARDE sobre a festa, após o início da sua circulação em 1912, a participação negra tem destaque.
“Na altura do Papagaio, 6 pretos retintos, de branco com seis parceiras de chapéus de papel com borboletas douradas, cantavam: O forte de S. Marcello/É forte de primasia/De cinco em cinco minutos. Queimava a Delegacia/E o coro respondia ao pé da letra:/Mas o forte do Barbalho/Foi quem teve a preferência/Indo arrombar o relógio/Lá na torre da intendência”. (A TARDE, 20/1/1914, capa).
Ainda no século XIX as festas de São Gonçalo do Amarante e Nossa Senhora da Guia passaram a integrar as celebrações no Bonfim. Não há uma data precisa para o início da lavagem, mas em 1889, Dom Luís Antônio dos Santos, titular da Arquidiocese de Salvador, editou um decreto proibindo o rito em todas as igrejas da cidade.
É um indício de que a lavagem e a sua característica de celebração sem o rígido controle das instituições já incomodavam. Ela é também um dos mais antigos elementos da festa que persistiu mesmo com obstáculos como as seguidas proibições. Já a Festa da Lenha e os desfiles de ternos acabaram descartados com o passar do tempo. Atualmente, há novos elementos como as festas em embarcações, logo após o fim da lavagem, o que prolonga a celebração. Geralmente, nestes passeios, que custam em média R$ 100, a bebida é livre. É uma festa de camisa em alto mar que tem como destino a região do Comércio ou a Barra. No domingo, dia da festa, ocorrem outras celebrações como a Procissão dos Três Pedidos à tarde.
A alegre Segunda-feira
Campo do samba de roda, a Segunda-Feira Gorda e depois Festa da Ribeira não tinha ritos religiosos associados. Sem missa ou procissão, era uma extensão de largo que resistia ao fim dos ofícios religiosos no Bonfim. Em A Cidade das Mulheres, a antropóloga norte-americana Ruth Landes fez uma descrição detalhada da animação que marcava essa comemoração.
“A festividade final do Bonfim se realizou na segunda-feira, 16. Os negros patrocinavam, mas todo mundo participou. Centralizava-se no cais chamado Ribeira, no bairro de Itapajipe, bastante perto do Bonfim para que se vissem as bandeirolas tremulando nos postes plantados sob as palmeiras. Barcos de pesca cruzavam no horizonte e as suas velas traçavam maravilhosos desenhos contra os azuis do céu e do mar. Jangadas a remo tripuladas por dois ou quatro rapazes movimentavam-se lentamente, graciosas e frágeis à distância, como desenhos das cavernas do período magdaleniano. E, como de costume, a gente se divertia cantando e marchando, marchando e cantando, em bandos de rapazes e moças de braços passados pela cintura uns dos outros, vestidos de todas as maneiras possíveis. Os desconhecidos podiam dar-se os braços e movimentar-se em fieira, gingando e cantando samba, jubilosos embora o sol lhes tostasse a pele do rosto. Algumas pessoas alugavam carros para percorrer acima e abaixo as ruas, apreciando, até que não aguentavam mais e rompiam também a cantar e a dançar”. (A Cidade das Mulheres, Ruth Landes, p.308).
Atrelada aos festejos do Bonfim, a denominação Festa da Ribeira passou a predominar ao menos em A TARDE, como uma comemoração independente na década de 1950. Dez anos depois já tinha uma conotação mais carnavalesca.
“O povo bahiano saudou, ontem, na Ribeira, o Carnaval de 1962, brincando a valer na tradicional e famosa “Segunda-feira Gorda”. Calcula-se que mais de vinte mil pessoas desfilaram, brincaram, cantaram, sambaram ou apreciaram os festejos populares de ontem, todos indiferentes ao forte calor, o mais intenso dos últimos tempos nesta capital A alegria reinante foi bem uma prova do prestígio da festa da Ribeira. Inúmeros turistas misturavam-se entre os populares conhecendo a alegre festa bahiana. ( A TARDE, 16/1/1962, p.3).
Rapidamente, o samba de roda foi perdendo espaço para o som avassalador dos trios elétricos. Com eles, começaram também os discursos sobre a violência tomando conta da festa o que foi afastando mais e mais frequentadores, sobretudo a partir da década de 1990. Na edição de A TARDE de 21 de janeiro de 2002 foi informado que moradores estavam tentando revitalizar a festa, mas diferentemente do movimento que resgatou a comemoração de Itapuã, na Ribeira a celebração perdeu suporte do poder público e já não há nenhuma programação organizada. Ficou a memória de foliões que ainda resistem fazendo o rito de ao menos beber e comer cozido, mas como ensina a dinâmica das festas este pode ser um sopro de recomeço, pois elas encontram suas próprias dinâmicas de sobrevivência.
Confira as páginas de A TARDE:
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia