Combate ao racismo é marca da trajetória de Ana Célia da Silva
Professora estabeleceu discussões sobre a forma de apresentação da população negra no livro didático
Este ano a Lei 10.639/2003, que estabelece o ensino de História da África e Cultura Afro-Brasileira completa 20 anos. Essa trajetória inclui algumas vitórias, como a condição de instituições de referência em Salvador na aplicação da lei. Dentre elas estão a Escola Parque São Cristóvão e a Eugênia Anna dos Santos, que funciona na área do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá. Mas antes da chegada da legislação, o debate estabelecido por ela era constantemente levantado em reportagens de A TARDE pela pedagoga e doutora em Educação Ana Célia da Silva com foco na denúncia da abordagem estereotipada da população negra brasileira nos livros didáticos.
Mestra e doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), a professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) dedicou-se a pesquisar os estereótipos e influência destes nos processos de aprendizagem especialmente nas escolas públicas. Livros de sua autoria como A Discriminação do Negro no Livro Didático, Desconstruindo a Discriminação do Negro no Livro Didático, dentre outros, são considerados referências em estudos sobre a necessidade de combate ao racismo no ambiente escolar.
Em 1994, em artigo para o suplemento A TARDE Cultural, Ana Célia da Silva já alertava sobre os riscos de não se dar atenção aos discursos que circulavam em sala de aula a partir dos livros didáticos:
“A negação, a distorção, a inferíorização do patrimônio histórico e cultural do povo negro produzem o aparente desinteresse do aluno por um ensino que não reflete a sua imagem de forma positiva, seu cotidiano e seu contexto social. O desinteresse, a apatia, a agressividade do aluno negro, a repetência e a evasão podem ser formas de reação a essa escola que o humilha”. (A TARDE, 26/11/1994, Cultural, p.9).
Meses antes também no caderno Cultural, o doutor em antropologia, Jeferson Bacelar destacava a importância do livro da professora que estava para ser lançado por conta do diagnóstico que ele apresentaria:
“Muito em breve, Ana Célia da Silva com o seu trabalho A discriminação do negro no livro didático no prelo para ser publicado ainda neste ano pelo Centro de Estudos Afro Orientais, Centro Editorial e Didático da UFBA e Editora lanamá oferecerá um expressivo diagnóstico da forma como tem sido passada para as crianças e jovens brasileiros a questão racial no que tange a presença do negro como um componente da nossa identidade nacional. Triste e lamentável será o quadro exposto, pela preponderância do despreparo (quando não absoluta ignorância) e marcante preconceito racial na produção editorial, que termina sendo assimilada pelos professores do 1º e 2º graus e, pior, inoculada na mente das primeiras gerações do nosso país”. (A TARDE, 10/09/1994, p.8).
Ativismo
Este olhar sobre a importância da educação no campo da luta antirracista já era uma preocupação da professora Ana Célia da Silva na sua condição de ativista do Movimento Negro Unificado (MNU). Em 1981 ao lado de outros membros da organização, como Jônatas Conceição, seu irmão, Carlos Alberto Menezes e Gildália Anjos, ela fundou o Grupo de Educação Robson Silveira da Luz.
A denominação do grupo foi uma homenagem ao jovem negro homônimo torturado e morto pela ditadura militar em São Paulo. O objetivo da iniciativa era promover a valorização da história e das culturas africana e afro-brasileira nas escolas públicas. Quatro anos depois as primeiras ações se tornaram efetivas. Por meio de uma parceria com o Centro de Estudos Afro-Orientais da Ufba (Ceao) ocorreu a introdução da disciplina “Estudos Africanos” em escolas estaduais de Salvador.
Articulação
Essa ação é uma amostra do ativismo multifacetado da professora Ana Célia. Suas articulações políticas por meio dos movimentos organizados incluem outros campos, como o Ilê Aiyê. Na edição de A TARDE de 1996, por exemplo, ela é apresentada como a responsável pelas gravações que resultaram em um livro precioso: Mãe Hilda- A História da Minha Vida, autobiografia da líder do Terreiro Jitolu e guardiã espiritual do Ilê. Ana Célia da Silva é filha de santo de Mãe Hilda. A organização da obra teve também a participação da professora Maria de Lourdes Siqueira.
Recentemente foi a vez da professora registrar essa sua rica trajetória por meio da autobiografia intitulada Fragmentos de Mim. Lançado em agosto desse ano pela Editora Katuka, o livro apresenta uma descrição das experiências da educadora e as reflexões que têm feito sobre elas. É dessa perspectiva que ela analisa o que considera poucos avanços nesses 20 anos de implantação da Lei 10.639/2003.
“Na minha opinião não ocorreram mudanças significativas devido à falta de uma implementação efetiva da legislação pelo MEC. Há uma demonização crescente de toda a temática que se refere às histórias e as culturas africanas e afro-brasileiras no nosso país, o que impede que as pessoas conheçam o outro, reconheçam o outro e construam interações para que as relações se fortaleçam”, destaca a professora Ana Célia da Silva.
Para fortalecer a aplicação da Lei 10.639, em sua avaliação, são necessárias medidas como a revisão dos materiais didáticos. “Isso especialmente no que se refere a todos os estereótipos e recalque das alteridades e elevação do outro que constitui o grupo minoritário dominante no nosso país; a formação continuada especialmente dos professores das séries iniciais e fortalecimento do ensino básico e médio para que não se precise em breve tempo das cotas”, analisa a educadora.
Ela afirma ter a esperança de que alunos que venham do ensino público tenham condições de competir em pé de igualdade com os alunos das escolas particulares. E, como conhece de perto o poder da ação, tem dado suas contribuições para resolver esses entraves por meio da denúncia e da pesquisa científica. Em relação ao ensino de cultura afro-brasileira, seu trabalho já mostrou ter uma perspectiva para além do presente.
“É preciso investir na permanência do estudante cotista de forma que ele possa ter transporte e outras condições dignas. É necessário sobretudo respeito a toda a alteridade. Nós, pessoas negras, somos cidadãs e cidadãos. Isso precisa ser respeitado”, reitera a professora Ana Célia da Silva.
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia
*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.
Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE.
Para saber mais: Fragmentos de mim, Ana Célia da Silva, Editora Katuka, 2023