Comida tem importância central nas celebrações de largo de Salvador
Alimentos variados compõem o cardápio festivo; alguns deles se tornaram marca de uma determinada celebração
As festas de verão já conquistaram seu lugar na agenda da cidade. A programação variada de ritos religiosos, como as missas e procissões, combinadas a lavagens de escadarias das igrejas dentre outros elementos, as tornam especiais. Mas vale destacar que comida e bebida são fundamentais em uma celebração. No caso das comemorações dessa estação há um cardápio específico e muitas vezes marcante para cada festa. A feijoada, por exemplo, reina absoluta na celebração para Iemanjá e após a Lavagem do Bonfim; o consumo de frutas já foi uma marca forte da Festa da Conceição. Caruru é um prato central na celebração para Santa Bárbara e São Nicodemus. Já o acarajé atravessa todas as comemorações e o espetinho de churrasco tem ganhado cada vez mais proeminência. Coleções de reportagens do Cedoc A TARDE apontam para a importância da comida nas celebrações de largo.
“A cosinha bahiana é uma das mais bellas paginas da culinária universal Nunca estão vasias as barracas, onde se vendem o caruru, o vatapá, o sarapatel, o efó, o acarajé, o abará, a moqueca, etc. Freguezes de todas as classes raciais enchem as mesas, a guerra relâmpago aos nossos quitutes é sem quartel. Às 11 horas da noite, tia Genu confessou ao reporter: — Menino, de seis horas da tarde até agora, já fiz três panelões de caruru”. (A TARDE, 7/12/1940, p.2).
No Bonfim o apelo da comida regada a dendê era forte com destaque para o preparo sob o comando de mulheres negras:
“O vatapá. caruru, efó, acaragé e outras comidas de azeite, genuinamente bahianas, fazem parte integrante do programa das festas populares do Bomfim. saboreados por ricos e pobres que não vão à festa sem provar dos deliciosos petiscos. A vendagem das comidas faz-se ao ar livre por pretas, na sua maioria velhas, reminiscências do passado, peritas na arte culinária. Taes quitutes preparados com grandes panellas de barro e louça vidrada são entregues ao freguez num prato alvíssimo e saboreado de pé. Tem côr local”. (A TARDE, 14/1/1933, p.2).
A feijoada, hoje soberana na Festa de Iemanjá, teve os seus dias de glória na Festa da Ribeira antes do reinado do cozido:
“A feijoada promovida pelos moradores da Ribeira para os amigos e parentes é tradicional. Em quase todas as casas, há batida de limão e feijoada para os convidados e penetras”. ( A TARDE, 19/1/1970, p.3).
Pontos de sociabilidade
As barracas de madeira costumavam ser uma extensão de bares da cidade e da arte das especialistas em comida, pois as mulheres tinham proeminência no comando desses equipamentos. A oferta da feijoada, do mocotó, do sarapatel e dos itens que compõem o tabuleiro de acarajé migravam para as festas garantindo a fidelidade de clientes do dia a dia. Não é surpresa o protagonismo feminino, especialmente das mulheres negras, afinal elas foram a maioria na venda de comida como mostra o estudo da historiadora e doutora em antropologia Cecília Soares, autora do livro Mulher Negra na Bahia no século XIX.
A presença da comida como um elemento importante das comemorações de largo em Salvador pode ser visualizada na Festa de Iemanjá. A feijoada continua a atração dominante para as festas de camisa, ou seja, os eventos privados que acontecem por todo o bairro do Rio Vermelho durante o período à espera do rito central que é o momento da saída do presente oferecido pelos pescadores no final da tarde. O prato esteve no centro dos eventos privados ainda no tempo das celebrações nos hotéis, especialmente os que ostentavam cinco estrelas. Há também os moradores do Rio Vermelho que recebem em casa familiares e amigos com a feijoada como principal prato do encontro.
Inovações
Em tempos que a comida tem ganhado status de arte com as novas experiências gastronômicas e com a presença cada vez mais constante dos especialistas nessa área os projetos em memória social do Grupo A TARDE convidaram a chef Manuela Gomes, que assina profissionalmente como Mannu Bombom, para compor um cardápio inspirado no que se come nas festas de verão.
“Parti das minhas experiências nessas festas que adoro, principalmente a Lavagem do Bonfim e a Festa de Iemanjá. Tem também o toque da memória afetiva”, conta Mannu Bombom que atua como consultora para bares e restaurantes. Ela realiza também o serviço de personal chef que é uma assessoria especial na sua atividade de professora.
Um dos empreendimentos atendidos por Mannu Bombom é a Casa Sankofa. Localizado no Largo Dois de Julho, o espaço é voltado para dar visibilidade a projetos sobretudo de artistas negras e negros. Foi para a Casa Sankofa que Mannu Bombom assinou uma das atrações do cardápio e que foi uma criação sua surgida em busca de alternativas para a sobra de um prato bem baiano: o vatapá. “Fiquei incomodada porque havia sobrado muito de uma atividade que fiz e sou totalmente contra o desperdício”, relata.
Foi então que a chef encorpou o vatapá com farinha de trigo e um recheio de camarão seco para se transformar em uma paixão nacional quando o assunto é salgado: coxinha. É isso mesmo: coxinha de vatapá, um aperitivo que oferece uma experiência inesquecível para o paladar. O petisco oferece a cremosidade do vatapá feito com farinha de pão para em seguida chegar ao sabor marcante do recheio à base de camarão seco. É para comer agradecendo à potência da ancestralidade afro-brasileira.
Pensando na possibilidade de aproveitar a feijoada que sempre é feita para “render”, Mannu Bombom preparou deliciosos bolinhos fritos com a comida. Em outro prato ela buscou a inspiração da memória afetiva de infância: farofa de água com charque. “Minha mãe é especialista nessa farofa que é tão simples e ao mesmo tempo tão saborosa. E o charque, que muita gente conhece mais como carne de sertão, dá um toque ainda mais especial”, ensina.
Mannu Bombom preparou ainda o espetinho. Ela usou contrafilé bem temperado e linguiça toscana. Uma sugestão de consumo para ganhar aquele gostinho de festa de largo: passe o espetinho na farinha de mandioca e coloque rodelas de pepino, tomate e cebola.
Vale lembrar que é necessário tomar alguns cuidados para consumir comida na rua. Mesmo em meio à animação procure conferir as condições de higiene do local de preparo. E, se você já tem uma especialista que leva sua arte de preparar comida para as festas de largo, aí fica tudo mais fácil. Evite alimentos perecíveis, como aqueles à base de queijos e maionese. O álcool em gel, popularizado na época da pandemia de covid, é um auxiliar precioso afinal nem sempre tem água à vista ideal para higienizar às mãos. Cuidados adotados é só oferecer uma festa também para o seu paladar.
Confira as páginas de A TARDE:
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia