Dois de Julho celebra aliança entre povos indígenas e africanos
Os Caboclos, símbolos da Independência da Bahia, recebem homenagens e reverências destinadas aos Encantados
No dia Dois de Julho, terreiros de candomblé em Salvador e no interior da Bahia costumam realizar a festa para aqueles que são chamados de “Encantados das Terras Brasileiras”: os Caboclos. De difícil definição, eles estão presentes nas mais variadas tradições das religiões afro-brasileiras: candomblé, umbanda, jarê e outras manifestações. As suas características religiosas dominam o entendimento de parte considerável do público que participa do Cortejo da Independência da Bahia. Seguindo essa perspectiva, em 2 de julho de 2006 A TARDE publicou o especial intitulado Dia de Caboclos, que destacou o protagonismo deles na comemoração da maior data cívica da Bahia.
“Os tambores soam no 2 de Julho para divindades que têm origem em ancestrais indígenas. São diferentes, em alguns pontos, de inquices, orixás e voduns, nomes que são dados aos deuses, respectivamente, do candomblé angola, ketu e jeje, mas também chegam até os terreiros para estar em comunhão com a comunidade ali reunida e distribuir, principalmente, solidariedade nos problemas que lhe vão ser apresentados”. (A TARDE, 2/7/2006, Especial Dia de Caboclos).
Durante o cortejo do Dois de Julho alguns desses momentos da face mais religiosa dos Caboclos ficam evidentes. Quando as estátuas são colocadas debaixo do caramanchão em frente à Câmara Municipal, após a primeira parte do desfile, é comum a presença de pessoas que rezam, agradecem ou fazem pedidos diante das estátuas. Bilhetes com pedidos ou agradecimentos são adicionados aos carros que levam as imagens do Caboclo e da Cabocla.
Durante os dias que os carros ficam no Campo Grande aos seus pés são colocadas as comidas votivas para os Caboclos quando eles são celebrados nos terreiros de candomblé: abóbora acompanhada de fumo e muitas frutas.
Outro momento importante relacionado às interações religiosas acontece quando as estátuas dos Caboclos chegam ao Pelourinho. Os carros emblemáticos são colocados de frente para a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e os membros da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos às Portas do Carmo, com suas vestes oficiais, vão até porta para saudá-los enquanto os sinos repicam. Essa interação remonta à aliança feita entre os povos que vieram do território da hoje Angola, no chamado primeiro ciclo da tragédia da escravidão, com os indígenas brasileiros. Essa interação ocorreu em centros urbanos como Salvador, mas também nos quilombos e nas muitas estratégias de resistência à violência colonial.
Os candomblés de tradição angola foram, portanto, os primeiros a incorporar o culto aos Caboclos em seus ritos. Isso porque passaram a reconhecer esses Encantados como os donos ancestrais das terras brasileiras. Essa interação consistiu também na troca de elementos de práticas religiosas parecidas como o uso de ervas em um extenso conhecimento sobre a sua aplicação para a cura de doenças.
Reverência
“Para nós é muito importante fazer essa homenagem a esses ancestrais dessa terra. Os povos do candomblé de tradição angola entenderam desde cedo a importância desse culto a esses Encantados que são antepassados de quem estava aqui desde sempre”, diz o tata Chuchuca Mwoxikingoma. Esse é o nome sagrado de Esmeraldo Emetério de Santana Filho que é xicarangoma título para o sacerdote músico, do Terreiro Tumba Junsara, um dos mais antigos da tradição angola no Brasil e que é reconhecido como patrimônio do país pelo Iphan.
Nos dias de festas para Caboclos a decoração dos barracões dos terreiros, onde acontecem as festas públicas, costumam ganhar as cores da bandeira brasileira. Além disso, os cânticos nesse dia são em português ou línguas relacionadas às tradições indígenas.
“É interessante a nossa posição de sacerdotes músicos em relação aos Caboclos. Nas festas para eles, a gente, geralmente, só toca porque, diferentemente das divindades como inquices e orixás, eles mesmo puxam as suas cantigas. É algo muito bonito”, diz Tata Chuchuca.
Diversidade
Os Caboclos são reconhecidos em categorias que costumam ser indicadas pelos nomes que eles apresentam e a sua ligação com elementos ou um determinado local: os “de pena” são os que possuem ascendência indígena como Tupinambá, Tupi, Jurema, dentre outros; os “de água” ou “marujos”, se apresentam como pescadores, marinheiros e outras ocupações relacionadas às águas; “os de fogo” são os relacionados a ofícios especialmente do sertão como Boiadeiro e Capangueiro.
Outra característica marcante desses encantados está relacionada à irreverência e impulsividade. Os Caboclos costumam dizer que “não têm pai, nem mãe”, ou seja, não estão vinculados a um rito iniciático, como as divindades do candomblé que necessitam da liderança de uma autoridade religiosa para se estabelecer em um processo complexo e cheio de detalhes. Os Caboclos também chegam e vão embora na hora que decidem. No candomblé é comum avisar aos convidados que a festa para os caboclos só tem hora para começar. “Caboclo costuma falar de uma forma muito direta, sem muito rodeio. Quando eles querem dar um conselho ou um aviso vão direto ao ponto”, acrescenta Tata Chuchuca.
O culto aos Caboclos costuma ser muito associado à cura para problemas de saúde. Ele ocorre também nas chamadas sessões de mesa, o que ultrapassa a forma de celebração via festa. Esses Encantados demonstram um profundo conhecimento sobre o uso de ervas e outros preparados para resolver os mais diversos problemas que atormentam o corpo, mas sempre lembrando que este tem o poder de adoecer também o espírito. Por isso são considerados mesmo em meio à sua irreverência e discurso que pode até soar como meio rebelde, seres dotados de imensa sabedoria.
É belo que algo de base tão complexa tenha ganhado ainda mais elementos em meio a uma comemoração cívica. A preservação dessa homenagem apresenta também o aspecto de que os povos indígenas não desapareceram de uma hora para outra como muitos discursos tentaram fazer parecer. Eles estavam e continuam muito presentes e não à toa tomaram conta da maior festa da Bahia no plano cívico, mas também religioso. Nessa perspectiva contaram com a firme contribuição dos povos africanos, especialmente os que vieram de angola e que foram os primeiros a reconhecer uma hospitalidade que ganhou ares de aliança para além das batalhas terrenas.